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Mundializações Tentaculares no Chthuluceno

Por:   •  3/10/2018  •  Pesquisas Acadêmicas  •  4.712 Palavras (19 Páginas)  •  190 Visualizações

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DONNA HARAWAY

“Mundializações Tentaculares no Chthuluceno”[1]

O Chthuluceno é uma saída do Antropoceno?

Não exatamente. Penso o Chthuluceno como sendo simultaneamente sobre passado, presentes e o que está por vir. Penso o chthuluceno como o tempo dos seres terrâneos , os seres terríveis, os processos e os seres de uma mundialização terrânea e que os ctônicos são, na mitologia dos modernos sempre relegados ao passado, ao tradicional, àquilo que está dentro do domínio da mitologia, talvez ao domínio da fêmea com rosto de serpente que paralisa os homens (mankind) e cuja cabeça precisa ser cortada pela filha que nasceu da cabeça de Zeus e colocada no seu escudo como sinal de conquista dos Olímpios, os heróis conquistadores. O chthuluceno tem sido relegado ao que já está sempre derrotado. E quero argumentar que o chthuluceno não está já derrotado, mas que é uma espécie densa de fluência temporal em jogo (is a thick kind of ongoingness at stake). E dentro do chthuluceno estamos num jogo uns perante os outros. O jogo não acabou. E há uma certa maneira como a mitologia do antropoceno ... essa figura secular trágica final é uma história horrível com a qual abordar as urgências dos múltiplos fins de mundos e continuidades (ongoingness) apesar dos fins. Os tipos de coisas sobre as quais Eduardo e Deborah escreveram em seu L’arrêt de monde. Que o mundo sempre já está acabado para diversas criaturas, humanas e não humanas, e em casos ferozes de apocalipses e genocídios, como sente na pele quem vive na América Latina e na do Norte. Como eu poderia ser essa garota branca em um lugar como a Califórnia e não entender a conquista territorial e genocídio na qual essa conversa está acontecendo? Literalmente, meu computador está assentado sobre conquista e fins de mundos que sempre já estão acabados (riso).

O chthuluceno não é uma figura pró-vida, não se trata de escolher a vida ou de escolher a vida ao invés da morte, ou de abraçar a transcendência, é uma questão de abraçar a fluência temporal serpentina da mundialização terrânea (the snaky ongoingness of earthly worlding) em seus passados, presentes e futuros que, de certa forma, serpenteia por entre e através dessas duas outras histórias—o antropoceno e o capitaloceno. Os vários hapax para dar nome a mundializações que são simultaneamente grandes demais e não suficientemente grandes para a fluência temporal (ongoingness) e precariedade da vida, de viver e morrer bem nesta Terra.

Penso, portanto, o thchuluceno como um em uma ninhada, e uma história grande o suficiente para fazer parte do trabalho, para fazer algo que eu acho que precisa ser feito quando se está nas garras dos Terríveis, nas garras dos Tentaculares, que pertencem a e vivem sempre dentro da terra e da água. Esses não são “os que olham para o céu”. Então, eu não penso o chthuluceno como uma resposta ao antropoceno ou ao capitaloceno. Acho que essas duas figurações e aparatos de contar histórias... acho que esses dois aparelhos de contar histórias têm trabalho a fazer. E que, quer eu queira ou não, as compreensões múltiplas do capital e as compreensões múltiplas do antropoceno continuam sendo uma parte crucial do que eu e nós precisamos dar conta. Dito isso, acho que como eu disse no meu artigo, se pudéssemos ter apenas uma palavra para as terríveis intrusões entre nós que ameaçam a vida na terra, não só para os seres humanos, mas para um vasto número de plantas, animais e modos de viver nessa Terra, seria capitaloceno e não antropoceno. Não porque ele conta a história toda, mas porque não foi o antropos que fez isso; processos de mundialização em extração, a produção maciça de riquezas pela extração nos genocídios e nos sistemas de trabalho e escravidão e industrializações e aparatos energéticos, e, e, e, de algo que podemos muito bem chamar de capitaloceno. Esse nome cabe bem mais à história do que o ato de espécie a que o antropoceno remete, que inevitavelmente faz parecer que o que está acontecendo é um ato da espécie.

A senhora está então dizendo que antropoceno e capitaloceno não nomeiam o mesmo objeto que chthuluceno?

        Acho que é verdade. Em primeiro lugar, acho que contar histórias é algo muito potente para se fazer agora. Para de certa forma reunir (collecting) os povos humanos e não humanos em um tipo de viver bem agora, que funcione ou não para resolver certo tipo de problema. É um tipo de insistência na alegria e no terror de viver e morrer bem nessa Terra. Acho que isso também nos dá a melhor chance possível de continuidade (ongoingness), mas também nos torna os mais poderosos resistentes aos sistemas de dominação que são tão abundantemente presentes e poderosos. Então esse tipo de contar histórias que junta povos humanos e não humanos em uma ongoingness tanto imaginada quanto realizada é realmente muito importante para mim. Então penso no chthuluceno como uma proposta de contar histórias—aqui está a história, quem vai habitá-la? Nós sabemos um pouco sobre quem habita a história do antropoceno e do capitaloceno. Acho que há um trabalho tremendamente importante a ser feito dentro do quadro do capitaloceno, uma contínua crítica do aparato de produção de certo tipo de riqueza e sua extração e distribuição. Não acho que esse trabalho esteja de forma nenhuma terminado e estou disposta a habitar o aparato do antropoceno, como fazia a União Geofísica porque o capitalismo é uma palavra impossível para eles (riso), não pode ser pronunciada sem que morram de apoplexia (risos). Mas eles conseguem falar sobre assuntos muito importantes que chamam a atenção das pessoas, então não sou uma purista aqui. Mas o chthuluceno é algo inteiramente diferente, bem, de fato, outra coisa, não totalmente. É um outro tipo de coisa. É um convite para habitar um tornar-se com (becoming with), para, como diria Vinciane Despret, um tornarmos uns aos outros capazes no cultivo da response-habilidade, e não responsabilidade, como um lista de obrigações éticas e políticas. Não é ser responsável, é mais como cultivar a capacidade de responder. E cultivar a capacidade de responder no temporal, no espacial, e na profundidade da coisa toda. O chthuluceno é bem maior que os gregos, bem maior que os mesopotâneos. Ele certamente conecta com os antigos mundos asiáticos subcontinentais, ele se liga (?) às deusas Nagã dos mares da atual Indonésia, ele se liga à dança da deusa serpente hoje em Java, Rata Kidul, sobre a qual Raissa Desmet me ensinou na tese que ela escreveu recentemente. Ele segue continuidades (continuities) que são muito atuais. O importante da palavra ceno para mim é que ela significa uma densa época presente, de agora. Não significa apenas o passado. A densa época presente de agora tem muitas durações, muitos tipos de viver e morrer, e, sim, múltiplos processos de viver e morrer nessa Terra, entre os quais alguns são comprimidos em muito calor e pressão nas piscinas de petróleo, ou nas substâncias densas das areias betuminosas que são extraídas na terceira grande era do capital para queimar combustíveis, para criar então novos fósseis o mais rápido quanto possível, queimando os velhos fósseis. O homem fazedor de fósseis é o antropos. Os que extraem as areias betuminosas. Mas nesse contexto que estou chamando de chthuluceno os vinte povos diferentes que vivem na região norte de Alberta, onde as areias betuminosas são extraídas, conectados de mil maneiras, pequenas e grandes, lutando pelo controle das terras e das águas e dos lugares no norte de Alberta, que é, depois da Arábia Saudita e (um outro lugar?) o maior depósito de petróleo do planeta. Essa luta pelo que está debaixo da Terra e sobre a Terra, em áreas costumeiramente cobertas por liquens, essa pequena crosta que é tão importante para os caribus e as renas que se alimentam do líquen. E os liquens, eles mesmos, organismos simbióticos, eles nunca são apenas um. Então eles nos fazem lembrar que na essência de ser um somos já sempre no mínimo dois. Ser um é tornar-se com muitos. Essa é a normalidade do tornar-se com em algo como o que chamamos de chthuluceno. Então não é o chthuluceno de Lovecraft, que seria um deus patriarcal, um horrível deus patriarcal. É um chthuluceno da deusa Nagã, das serpentes nadando nos mares entre a Austrália e a Indonésia. É a múltipla serpentidade.

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