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Corrupção

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Por:   •  7/11/2013  •  Tese  •  2.727 Palavras (11 Páginas)  •  124 Visualizações

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P: Por que essa questão do endividamento tem te preocupado?

R: Porque o endividamento brasileiro não é virtuoso. Quando a gente fala de endividamento, é importante colocar alguns conceitos elementares em destaque. O primeiro é que relações de débito e crédito são relações absolutamente inerentes à forma de organização da produção dita capitalista. Se você tem produção privada e consumo privado com um grande peso, como é caso de qualquer economia capitalista, necessariamente as relações não podem ser só de troca direta. Tem sempre troca indireta, surgindo o dinheiro. Ele pode transferir poder de compra no tempo e no espaço, o que dá origem às relações de débito e crédito. Qualquer um que fornece pra receber depois está concedendo um crédito e gerando um débito. Desde tempos anteriores ao capitalismo, você já tem as relações de crédito e débito lubrificando a produção econômica e a produção rural.

O endividamento não é em si nada assustador. Ele pode assumir dimensões absolutamente assustadoras porque a relação de débito e crédito gera uma riqueza, que não está ligada a uma expressão concreta e corpórea – não é terra, não é máquina ou propriedade, estoques. O débito de alguém é propriedade do credor, e como tal integra seu patrimônio. As relações de débito são emissoras de títulos de propriedade sobre o devedor.

Aí vem a primeira pergunta. O devedor incorreu no débito para quê? Se foi para alguma coisa positiva para o funcionamento da economia, você pode até dizer que a relação é absolutamente virtuosa. Por exemplo, uma empresa se endivida apostando que a economia vai crescer e ela vai ter lucros no futuro. Então ela está expandindo a capacidade de produção da sociedade. Eu não tenho nada contra o endividamento privado das empresas para expandir a capacidade de produção, assim como eu não tenho nada contra o endividamento público quando ele é assumido para expandir a capacidade de produção da economia. O investimento privado acopla-se ao investimento público, os dois andam juntos. Muitas vezes o investimento pioneiro, de vanguarda, é o investimento público. Você vê isso nas estradas, o investimento público tem impacto sobre o investimento privado ao longo da estrada. O investimento público, especialmente para infraestrutura, é absolutamente fundamental para elevar a taxa de investimento da economia. Se o investimento público for para criar condições para a sociedade investir mais ou melhorar a vida do corpo social, é meritório.

O endividamento familiar também pode ser virtuoso. Se uma família se endivida para comprar a casa própria, é virtuoso, porque ela para de pagar aluguel, passa a ter uma autonomia que é absolutamente importante. Agora, se endividar para comprar um automóvel, por exemplo, é uma coisa perigosa, primeiro porque o automóvel amplia o gasto orçamentário para sustentá-lo – gasolina, impostos – e segundo porque é um ativo que desvaloriza. A partir do momento que se gira a chave de um carro, ele perde 20% do valor. Do ponto de vista patrimonial, uma família que se endivida para comprar um carro está fazendo um jogo perigosíssimo. O endividamento para comprar uma casa ou um carro tem consequências radicalmente diferentes sobre a economia doméstica, mas implicações semelhantes sobre a atividade econômica. Por exemplo, quando alguém compra um automóvel, garante uma demanda no presente para o complexo automobilístico. Em última instância, as pessoas na indústria automobilística têm um emprego garantido porque o cara está se endividando, e os lucros das empresas também estão ligados a esse cara. Agora, comprar uma casa gera uma demanda que, na minha opinião, é muito mais adequada, porque são materiais de construção muito mais abundante se gera um componente de mão de obra muito maior. E garante a autonomia para a família, que passa a não pagar aluguel.

A situação brasileira infelizmente não é virtuosa nem no setor público, nem no setor privado, nem na economia familiar. O endividamento das famílias brasileiras está crescendo de uma maneira assustadora. Mais de 60% estão endividadas. A inadimplência está crescendo. Aí eu fui dar uma olhada pra ver quando disso era dívida com moradia, e a estimativa da Caixa Econômica é de 15%; então 85% do endividamento familiar é com cheque especial, cartão de crédito, crédito de lojas, consignado, é muito maior do que com o sistema de geração de moradia. É como se você estivesse endividando em massa a população, mas não está gerando melhora significativa para o futuro. A família,quando se endivida, paga juros, e esses juros reduzem o seu poder de compra. Quando uma família se endivida com moradia, ela deixa de pagar o aluguel, quando ela compra um automóvel, tem o custo de manutenção do automóvel. Existe uma diferença fundamental na natureza do endividamento. Eu sou a favor de se expandir o endividamento por habitação.

P: Mas o endividamento é muito concentrado em bens de consumo duráveis.

R: E não-duráveis também. Muitas pessoas vivem de cheque especial no fim do mês. E tem os financiamentos de loja, que são de uma perversidade espantosa. Quando você já está terminando de pagar, eles ampliam as ofertas para você continuar se endividando. Quando eles me oferecem o crédito, eu nunca me endivido, mas tento tirar proveito dos descontos. Muitas vezes não me oferecem desconto nenhum! Parece que eles querem que você se endivide, que se torne um pagador de juros.

Eu estava comprando material de refrigeração e tentei pagar à vista, não me deram desconto, me disseram ‘ah, eu prefiro que o senhor pague no cartão BNDES’. Eu que criei o cartão BNDES há muito tempo atrás, e nunca imaginei que ele tivesse uma implicação dessas, mas tem. Muitas empresas que fornecem para pequena empresa querem vender no cartão BNDES, os juros são muito mais baixos.

P: Por que esse endividamento familiar hoje te preocupa? Não há uma expansão do emprego e da renda?

R: Esse endividamento me preocupa há muito tempo. Você supõe que se gere acesso em massa da população aos bens de consumo e, em um primeiro momento, é isso mesmo. Mas quando isso é virtuoso? Quando as empresas realizam investimentos para a economia crescer, apoiando-se em investimentos públicos, e isso se expressa em uma variável macroeconômica, que é a taxa de investimento. Pois bem: o endividamento familiar no Brasil cresce brutalmente, mas a taxa de investimento continua em 18% do PIB.

P: Então é por isso que você não confia na continuidade do processo de expansão da renda e do emprego, que poderia dar respaldo às famílias?

R: Exatamente. Em última instância, o endividamento familiar no Brasil não é virtuoso, não está acoplado a nenhuma estratégia de desenvolvimento, nenhuma política de incentivo à retomada do investimento produtivo. Pelo contrário, está associado a uma política que pratica as taxas de juros mais elevadas do planeta.

E isso cria nas empresas uma distorção brutal: a empresa, ao invés de raciocinar com a receita operacional, ela raciocina com a receita não-operacional. As receitas que vêm da atividade própria da empresa são as receitas operacionais. Tudo que a empresa ganha em mercado financeiro, com compra e venda de coisas, entra na receita não operacional. A minha hipótese é que numa economia de lento crescimento e juros brutalmente elevados, a lógica da empresa é não se endividar. Ela quer reduzir a sua presença no estoque geral de dívida do país. Pelo contrário, o que ela quer é passar a ser dona de um pedaço dessa dívida, que é patrimônio. A empresa começa a ter uma lógica de financista, ela busca ganhar no não-operacional.

Quando a família brasileira toma a decisão de se endividar, ela olha o tamanho da prestação. A família prudente só se endivida no limite que ela pode pagar. Mas ela supõe que o jogo vai ser o mesmo daqui pra frente. Não, pode piorar. Pode elevar a taxa de juros, e aí a família que usa o cheque especial, por exemplo, toma uma trombada direta. Porque é a mais cara das linhas de crédito familiar, dá quase 10% de juros ao mês. Ao mês! Se você olhar a taxa de crescimento do Brasil, no longo prazo – é de uma mediocridade atroz nos últimos vinte e tantos anos – você vai descobrir que ela vai oscilando. É um vôo de galinha, porque ela vai crescendo um pouquinho, você vai esticando prazos e aumentando o endividamento.

Quanto o tempo médio de dívida cresceu ao longo desse tempo? A minha impressão é que deve ter crescido muito. Então você tem, por incrível que pareça, um mercado que vai se sustentando nessa ficção, com base no próprio endividamento. Eu não sei qual é o limite disso, mas certamente é uma bolha. Os americanos fizeram um jogo em que as famílias se endividaram em cima do ativo imobiliário que possuíam para comprar outros ativos. Na verdade a família americana deu o imóvel hipotecado não pra aumentar consumo, mas predominantemente pra fazer aplicações no mercado financeiro. Não é o nosso caso; aqui as pessoas se endividam para desfrutar de coisas, satisfazer demandas reprimidas.

Os fazendeiros davam crédito aos migrantes para retê-los em suas terras. Em termos relativos, você está criando um enorme armazém geral, mantendo as pessoas absolutamente comprometidas com essa dívida.

P: O que está permitindo essa expansão fenomenal de crédito para as famílias?

R: Eu acho que foi a redução da inflação.

P: Você não acha que a abertura financeira, a capacidade de empresas brasileiras se capitalizarem no mercado internacional, trazerem recursos aqui pra dentro tem um papel?

R: Tem, mas eu acho que é um papel completamente secundário. O que pra mim não é secundário é saber que quase todos os bancos do mundo querem vir para o Brasil, querem operar no Brasil, porque acham que o sistema de crédito está se expandido e as taxas de ganho são muito boas.

P: O que alimenta isso? Não é esse dinheiro externo entrando?

R: Historicamente, no Brasil, a população era sangrada pelo processo inflacionário. Por mais que os sindicatos pudessem negociar cláusulas de indexação de salários, por mais que colocassem nos contratos procedimentos defensivos, a verdade é que acelerando a taxa de inflação e encurtando o prazo, quem move o preço na frente sempre leva a melhor. O processo inflacionário brasileiro transferia um pedaço expressivo da renda potencial das pessoas para os marcadores de preço e os intermediários do dinheiro. Os bancos brasileiros ganhavam muito nos dois ou três dias que levavam pra liquidar uma conta. Você mandava um depósito e ficava dois, três dias pra chegar, e o banco ganhava nesses dias por causa da inflação. Isso se chama floating. Os bancos cresceram com isso. Aí quando veio a estabilização, o Maílson, que de certa forma é o pai dessa criança, começou a construir juros elevados e spreads cada vez mais altos. E tarifas.

Eles construíram a seguinte regra, que é fantástica: o produto do banco são os serviços que ele presta, e por esses serviços ele deve se cobrir. A política do Banco Central em relação aos bancos é permitir que pelas tarifas de serviço prestado se cubra todos os custos administrativos e operacionais. Todas as operações ditas de tesouraria, eles classificam como receita não operacional. É um negócio impressionante. Neste país, você indexou o dinheiro.

Os bancos são os principais proprietários de títulos da dívida pública, então o que eles fazem? Pegam a taxa Selic e pagam aos correntistas uma fração ínfima daquilo. E a valorização é diária. Por isso que o setor financeiro foi crescendo no Brasil.

Mas antes, na inflação, também havia, pela inflação, um sistema assim. Então, eu acho que essa expansão brutal do crédito é um substituto do processo inflacionário.

P: Mas nenhuma economia capitalista funciona sem um sistema de crédito expandido.

R: É como num castelo de cartas. A base produtiva é o chão da casa onde a finança começa a montar o castelo de cartas, que são as relações de débito e crédito que estão se sustentando sobre essa base produtiva. Mas aí se constrói mais um andar, e outro, enésimos andares, e de repente o castelo cai. As crises financeiras geralmente acontecem por uma superacumulação financeira, leia-se um castelo de cartas sendo construído. Nos EUA foi isso.

P: Então você não acha que o que tem realimentado esse processo financeiro seja o endividamento externo de bancos e grandes empresas?

R: Não. Eu acho que tem um jogo financeiro a nível mundial que se reproduz aqui. Os bancos fazem o jogo no qual eles são os grandes ganhadores. Eles ganham com inflação, com crescimento, ganham com depressão.

P: Eu quero chamar atenção para a terceira dimensão desse endividamento, que é o endividamento do Estado. Teria sido possível essa expansão do mercado de crédito sem a expansão da dívida pública?

R: Eu acho que não. Em última instância, o sistema bancário converte o título de dívida pública, o título soberano, de alta liquidez, num outro tipo de dinheiro. É como se fosse uma base para a sua expansão. Aliás, tem muitos analistas econômicos que analisam as crises e veem as crises como produto desse processo.

A dívida pública pode ser virtuosa, pode ser uma maneira extremamente interessante de absorver determinados excedentes privados e levá-los a um domínio que é positivo para o desenvolvimento da sociedade e da economia. Em si, não há nada de pecaminoso na dívida pública. Mas a pergunta é sempre relevante: está se endividando para quê? Quando o endividamento público é apenas ou predominantemente para pagar juros, cria-se uma avalanche. A nossa política monetária está com essa característica: nós estamos expandindo a dívida pública sem elevar o investimento produtivo público.

P: O motor do endividamento, no seu ponto de vista, é a política monetária?

R: Eu acho que é. Na hora que você começa a querer segurar a inflação pelo jogo taxa de juros/taxa de câmbio, você começa a absorver capital especulativo de fora, que é o que acontece no Brasil de uma maneira espantosa.

P: Mas isso é o momento atual.

R: Não, nos vôos de galinha dos últimos dez, onze anos, houve momentos assim, em menor escala.

P: Mas a ameaça não era inflacionária...

R: O modelo de metas de inflação trabalha com a ideia de produto potencial, de que há um máximo que se pode crescer sem haver inflação. Isso os autoriza de elevar as taxas de juros, restringindo o crédito e reduzindo o crescimento.

Quando você eleva a taxa de juros, as famílias que se endividam têm pela frente uma situação difícil. As empresas olham o futuro com mais preocupação e reduzem o investimento. Por que o Brasil tem um comportamento tão medíocre? Porque a turma do produto potencial acha que o Brasil não pode crescer mais que três, quatro por cento ao ano. Toda vez que passa de quatro por cento, começa o discurso que a economia está hiperaquecida, acima do produto potencial. O que não é absolutamente verdadeiro. Claro, se você continuar estimulando o endividamento familiar loucamente, se continuar pagando juros elevados, é evidente que a taxa de desenvolvimento da economia vai ficar baixa. Mas se a economia crescer mais, o argumento deles é que precisa elevar a taxa de juros. E a Dilma caiu nessa, já começou o governo elevando a taxa de juros. E já estão dizendo que isso vai durar até 2012.

P: Por que esse esquema, que já predomina há tanto tempo, não levou a uma estagnação do processo de endividamento das famílias?

R: Não leva. No Brasil se fez uma política explícita para as famílias se endividarem. Eu chamo de modelo Casas Bahia. Em última instância, isso aparece sob a forma de receita financeira.

Antigamente as contas nacionais estudavam a repartição funcional de renda: grosseiramente, de um lado você tinha o rendimento do trabalho e do outro, o do não trabalho. O Brasil só faz crescer o rendimento do não trabalho. E as contas nacionais não examinam mais isso, os dados são estimativas indiretas.

P: O que você acha que vai acontecer com esse processo galopante de endividamento do Estado, das empresas privadas no exterior e das famílias?

R: Quanto ao Estado, se nós fizermos uma política de retomada de crescimento, a dívida do Estado vai perdendo posição relativa, porque se a economia cresce, a base tributária cresce. Você resolve isso com crescimento, mas para ter crescimento você precisa ter muito claro aonde você quer chegar. O que o Brasil não tem hoje é a imagem do seu futuro desejado. O grande problema brasileiro é que a gente não tem mais o sonho do futuro.

O endividamento público é o mais perverso que se pode imaginar. Nós estamos nos endividando pagando taxa Selic e aplicando em títulos do Tesouro americano. A Selic está a 12%, o título americano paga, na melhor das hipóteses, 2%.

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