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Manequeismo

Por:   •  23/10/2015  •  Resenha  •  21.197 Palavras (85 Páginas)  •  181 Visualizações

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LEITURA D E H O R T Ê N S IO E M A N IQ U EÍSM O 

Neste vai-vem de sentimentos contraditórios se vai arrastando Agostinho, ora sedento de luz e pureza, ora emaranhando-se nas redes da paixão e do erro. Calhou porém certo dia... Nos planos da Providência há sempre um dia que calha a cada um. Às mãos de Agostinho, que teria então uns dezanove anos, veio parar, não se sabe como, o Hortênsio de Cícero, livro de cujo valor se não pode ajuizar, pois se perdeu. Bom ou medíocre, o certo é que, pelo menos de momento, o livro exerceu sobre Agos- *·' Metade da minha alma. [20] tinho influência benéfica na medida em que lhe chamou a atenção para assuntos tão sérios e que de tão perto tocam a essência e destino do homem como a imortalidade da alma. Cícero, que como filósofo, está longe de ser de primeira plana— philosophaster, «filósofo amador» lhe chamou ele — tocou-o bem fundo, não só pelo assunto de que andava distraído, mas talvez também porque a disposição de espírito com que o leu era então mais propícia. A leitura do Hortênsio fê-lo pensar, avivou-lhe a saudade de um Cristianismo que se conservava latente no mais recôndito da sua alma e despertou-lhe o desejo de ler as Escrituras. Não estava porém espiritualmente preparado para isso, nem o estilo bíblico directo e despido de ornatos tão queridos ao retórico era de molde a prendê-lo. Sem pé em terreno firme, sentindo-se afundar nas águas revoltas de mil ideias inconsistentes, apareceram no seu caminho os Maniqueus, atribuindo-se, na busca da verdade, uma posição racionalista que muito era do agrado de um espírito em busca de certezas como o de Agostinho. E aí o temos pegado a uma doutrina obscura e a uma prática grosseira, tão distantes da sua límpida constituição espiritual.

2. P R O T E C Ç Ã O DOS M A N IQ U EU S 

Graças aos Maniqueus e também a Alípio, o amigo de sempre que lá ocupava já um lugar de destaque — o de acessor do Conde das munificências de Itália, título pomposo dado ao que hoje poderíamos talvez chamar Director Geral da Fazenda Pública — Agostinho não se sentiu desamparado. Nesta qualidade Alípio exercia, além das suas funções administrativas, as correspondentes às de um «Juiz das execuções ficais» dos nossos tempos. Bem se pode dizer que, em Roma, os protectores de Agostinho foram os Maniqueus. Foram eles que lhe conseguiram os primeiros alunos. Pelos hábitos de disciplina, bem romanos, estes alunos estavam longe de o incomodarem como os demolidores de Cartago. Mas, por sua vez, tinham um mau hábito que em nada lhe agradava: quando o professor não lhes convinha ou, por qualquer motivo, não podiam assistir mais às suas aulas, desertavam sem lhe pagarem. Por isso Roma, esta Roma dos jogos sangrentos, da venalidade, da corrupção, cedo o descontentou. Além disso, começou a ter conhecimento dos vícios ocultos dos Maniqueus, das suas orgias, da sua hipocrisia. De resto, as suas doutrinas já o não satisfaziam, mostravam-se impotentes para resolverem as suas dificuldades de ordem espiritual. Não tardou a cair no cepticismo dos académicos, embora sem abandonar pública e ostensivamente o Maniqueísmo. Foi neste estado de espírito que soube ter sido posto a concurso o lugar oficial de professor de retórica em [28] Milão. Concorreu ao lugar e, graças aos seus méritos e às recomendações dos Maniqueus e de Símaco l, o célebre prefeito de Roma, ganhou o concurso. Era a certeza e o descanso do vencimento certo e seguro. Assim, pelo ano de 384, aos trinta anos de idade, em plena maturidade portanto, lá seguiu Agostinho para Milão.

5. PROBLEM A D O MAL. E N C O N T R O S C O M SIM PLÍCIO E PO N T IC IA N O 

O problema do mal, que sempre o apoquentou e o arrastara para o Maniqueísmo, começou a antolhar-se-lhe como um falso problema. Tudo o que existe é bom, é belo. O Bom e o Belo é que constituem a ordem e todo o universo é ordenado. Não foi sem razão que os Gregos deram ao conjunto ordenado de todos os seres, ao universo, o nome de K o o /jlos. A existência, e só ela, é boa e bela. O nada, porque nada é, não possui beleza nem bondade. O mal não é; o mal falta, embora seja falta que, por exigência das naturezas, deve ser colmatada. Má é a existência a que falta alguma coisa que lhe pertence. O mal é pois uma «falta», uma ausência de ser: o nada não é substancial. Isto quanto ao mal físico. Também o mal que fazemos, quando fazemos o mal ou deixamos de fazer o bem (mal moral, pecado, crime), ou que sofremos (dor, angústia, tristeza), é uma falta, uma ausência de bem que é ser. O mal moral é falta de bem, é falta de ser que a vontade corrompida, a liberdade corrompida, afastou, — como a dor é a ausência de harmonia funcional dos nossos orgãos. A não substancialidade tanto se verifica no mal físico como no pecado ou na dor: o bem pode ser sem mal, mas o mal é que não pode ser sem bem. Foi a leitura de Platão, na tradução certamente de Mário Vitorino \ que então, tinha Agostinho cerca detrinta e dois anos, desferiu o primeiro golpe certeiro no Maniqueísmo de Agostinho. Platão deu-lhe a conhecer um Deus sem limites, sem limitações, um Deus infinito e inextenso. Só Ele, só um ser assim, será o princípio e a razão de ser de tudo. Um princípio substancial do mal, o Mal Substancial, é uma contradição nos termos, pois equivaleria a afirmar a realidade substancial do não-existente, do que não possui realidade nem substancialidade. Será que o Deus da Bíblia, o Deus de Mónica e de Ambrósio se identificará com este Deus de Platão? Para o verificar começou a ler as epístolas de S. Paulo. O Deus de Paulo era, também Ele, um Deus de beleza e bondade infinitas, não limitado nem constituído por partes extensas. E, mais que no Deus de Platão, era pessoal esta bondade, esta beleza infinita do Deus de Paulo, a arder de amor pelos homens que criou bons e belos. Mas estes, mal usando do bem da sua liberdade, d ’Ele se afastaram e O repudiaram, e a amá-lO e a contactá-lO só poderão voltar desde que repudiem por sua vez o seu repúdio e afastamento pela penitência e humilde reconhecimento da sua contingência. Trava-se então na sua alma uma renhida luta entre as forças que o aproximavam de Deus e as que d ’Ele oafastavam, entre o ideal cristão e o seu temperamento ardentemente sensual. Se o comoviam até às lágrimas as homilias de Ambrósio, a doçura e majestade do canto ambrosiano, a confiança filial do cristão que a Deus chamava meu como se, pertencendo-lhe ele, Deus lhe ficasse a pertencer — enchiam de revolta, tristeza e amargura este africano romanizado até na alma, ver as províncias exploradas por bárbaros, o exército nas mãos de bárbaros (eram os Godos que mantinham a ordem e sustinham outros bárbaros nas fronteiras). Como poderia aderir à catolicidade, à universalidade de uma fé ameaçada por fora pelo arianismo dos bárbaros e por dentro pela violência dos donatistas e a dissolução dos Maniqueus? Que desolação a desta sociedade governada por eunucos! Estes factos, mais do que o frio de Milão, que lhe oprimia o peito e lhe apertava a garganta como um garrote, deixando-lhe sair um ténue fio de voz, que já era objecto de troça pelo sotaque africano, minavam-lhe a saúde, a saúde mesmo da própria alma. E porque não havia este homem, que toda a vida se confessou, porque não havia de procurar Simplício, aquele velho presbítero que já fora director espiritual de Ambró sio nos seus tempos de juventude? Agostinho sentia já a necessidade de purificação pela confissão, como, mais tarde, havia de reconhecer: A d hanc confessionem, fratres carissimi, festinandum est, quae non labiis tantum, sed corde et operibus impleatur. Neminem vulnus suum pigeat confiteri, quia non potest sine confessione sanari.2 Agostinho abriu-lhe a alma. Com toda a simplicidade, fazendo jus ao seu nome, Simplício não entrou em digressões de ordem filosófica e teológica. Falou-lhe apenas doexemplo de Vitorino, o célebre orador que tinha uma estátua no Forum de Roma, da sua conversão, do entusiasmo da multidão que, transportada de alegria, gritava Vitorino! Vitorino!, quando este, catecúmeno ainda, do alto do estrado levantado na basílica, acabou de pronunciar a sua profissão de fé imediatamente antes de sobre ele ser derramada a água do sacramento da purificação. Foi profunda a impressão em Agostinho causada pelo caso Vitorino. O ra aconteceu que, passados alguns dias apenas, quando em sua casa conversava com Alípio, lhes apareceu Ponticiano, um dos altos funcionários do Palácio, que, a propósito da conversa que estavam travando e das epístolas de Paulo que ali via sobre uma mesa, lhes falou de Antão e seus companheiros eremitas do deserto no Egipto, das suas penitências, da santidade da sua vida, da renúncia a tudo o que lhes oferecia tão precariamente o Império que tão precariamente estava aguentando a pressão dos bárbaros. Não se falava então noutra coisa. Contou-lhes ainda Ponticiano que, uns tempos antes, quando a Corte se encontrava em Tréveris, ele e mais três amigos foram dar um passeio pelos arredores da cidade. Em dada altura, dois dos quatro afastaram-se e, por acaso, foram dar com uma cabana de eremitas. Entraram e começaram a ler a Vida de Antão que lá encontraram. A impressão que lhes causou a vida dos eremitas foi tal, que tudo deixaram, inclusive as noivas, pois estavam para casar, e já não voltaram ao Palácio, juntando-se aos eremitas.

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