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Miguel Reale

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Por:   •  13/11/2014  •  6.348 Palavras (26 Páginas)  •  894 Visualizações

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Teoria Tridimensional do Direito de Miguel Reale: a busca por uma compreensão integral do direito

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem por objetivo maior o estudo dos principais pontos da teoria tridimensional do direito desenvolvida pelo saudoso Prof. MIGUEL REALE, por entendermos que somente através de um olhar tridimensional chega-se à compreensão do fenômeno jurídico em sua integralidade. Ademais, a repercussão da estrutura tridimensional do Direito, nos moldes desenvolvidos pelo mestre da Universidade de São Paulo não se limita aos bancos acadêmicos, pelo contrário, se esvoaça por todos os escaninhos da experiência jurídica.

Com efeito, é oportuna a distinção feita por Recaséns Siches entre a Filosofia Jurídica acadêmica e Filosofia Jurídica não-acadêmica, na medida em que esta exerce acentuada influência na Ciência do Direito. Nesse sentido, reitere-se, a teoria do professor paulista acerca da natureza e estrutura do direito ecoa de maneira substancial na praxis jurídica, razão pela qual seu estudo importa tanto ao filósofo do direito como ao jurista.

O próprio Reale, no “Prefácio à Primeira Edição” de suas Lições Preliminares [01] já expunha a importância de sua concepção tridimensional da realidade jurídica no plano da Teoria Geral do Direito, abrindo novos caminhos na compreensão positiva e técnica do fenômeno jurídico.

Para encerrar esta introdução, mister dizer que o triunfo da “fórmula Reale” [02] se deu graças ao seu feito de superar as antigas disputas entre as correntes jusnaturalistas, historicistas, sociologistas e normativistas, através de uma visão integral do direito [03].

Parte I

I. Culturalismo Jurídico [04]

O tridimensionalismo jurídico é situado dentro de uma corrente jusfilosófica denominada “Culturalismo Jurídico”, cujos principais prosélitos são Gustav Radbruch, Emil Lask, Carlos Cossio, Recaséns Siches e, no Brasil, Miguel Reale.

Antes de estudarmos a teoria tridimensional do direito, nos moldes desenvolvidos por Reale, alguns conceitos e idéias devem ser desvendados sob o prisma culturalista, pois constituem pontos sobre os quais se edificaram o pensamento jurídico e filosófico de Miguel Reale.

O primeiro deles é o conceito de “cultura”. Podemos defini-la como as realizações do homem sobre o mundo natural, visando a fins especificamente humanos. Por outras palavras, a projeção do espírito humano sobre o mundo natural ao longo da História.

É pressuposto dessa idéia o fato de que o homem é o único ente capaz de inovar no processo dos fenômenos naturais, criando um mundo novo, o “mundo da cultura” ou “mundo histórico-cultural”.

O Direito não poderia ter outra natureza senão a de um “bem cultural”. Seu suporte é o próprio desenrolar dos fatos humanos, ao passo que seu sentido é a tutela e realização de valores escolhidos pelo espírito humano[05].

Em apertada síntese, a ordem jurídica é vista como um fato cultural, uma realidade correspondente a um valor que se desenvolve historicamente.

II. Tridimensionalismo Genérico

Forte no conceito de ordem jurídica, exposto alhures, já se nota intrínseco o tridimensionalismo no modo cultural de conceber a ciência do direito. Em verdade, muitos pensadores culturalistas desenvolveram suas próprias teorias sobre a natureza e estrutura do direito, cada qual com sua peculiaridade.

Para nosso estudo, destacam-se as teorias de Lask e Radbruch. Esses pensadores alcançaram êxito na difícil missão de ligar, os até então incomunicáveis, “Mundo do Ser” e “Mundo do Dever Ser”, donde resultou a estrutura tríplice do direito. A ponte entre os dois mundos nada mais é do que o “Mundo da Cultura”, o mundo onde se relacionam fatos e valores, onde emergem os juízos referidos a valores, o ser referido ao dever ser.

Com efeito, Reale sedimenta a superação do abismo kantiano existente entre Sein e Sollen, complementando o pensamento de Radbruch, nos seguintes termos:

“A cultura é antes elemento integrante, inconcebível sem a correlação dialética (vide tópico II - Dialética de Complementaridade) entre ser e dever ser. Se ela marca uma referebilidade perene do que é natural ao mundo dos valores, não é menos certo que, sem ela, a natureza não teria significado e os valores mesmos não seriam possíveis.” [06]

Quanto à natureza e estrutura da experiência jurídica, Radbruch, em sua “Filosofia do Direito”, idealizou o direito formado por três elementos independentes entre si, contidos no trinômio fato-valor-norma. É a esta concepção de direito, segundo a qual o direito é formado por esses três elementos, cada um com sua independência em relação aos demais, a que se dá o nome de tridimensionalismo genérico ou abstrato.

Passemos ao exame da teoria tridimensional do direito nos termos desenvolvidos pelo Prof. Miguel Reale, que marca, sem dúvida, uma nova maneira de ver o Direito.

Parte II

I. Tridimensionalismo Concreto e Dinâmico de Miguel Reale

Para dar nascimento à teoria objeto de nosso estudo, Reale bebeu, no início, da fonte doutrinária italiana, que costumava dividir o direito, didaticamente, em três segmentos: a Filosofia do Direito, a Sociologia Jurídica e a Teoria Geral do Direito[07] para vislumbrar a tríplice estrutura do fenômeno jurídico e, assim, se insurgir contra o positivismo jurídico, então predominante, em cujo bojo ainda ecoavam as idéias de Kelsen e sua teoria pura.

Em 1940, com a publicação de “Fundamentos do Direito”, podemos ver os primeiros tijolos da construção jusfilosófica do professor paulista acerca da estrutura do fenômeno jurídico. Contudo, nesta obra, assim como em “Teoria do Direito e do Estado”, publicada no mesmo ano, o prof. Reale funda as bases sobre as quais edificaria, ao longo das décadas seguintes, sua teoria. Seu projeto estava longe de ser concluído, é como um músico compositor, a letra de sua canção estava pronta, faltava ainda imprimir-lhe harmonia e ritmo.

Nas obras citadas, o direito é visto como uma ordem de fatos integradas em uma ordem de valores [08], ainda não havia sido superado em definitivo o tridimensionalismo genérico e abstrato.

É em suas obras posteriores, em especial “Filosofia do Direito”, publicada em 1953, bem como em suas edições posteriores, “Teoria Tridimensional do Direito” e “O Direito como Experiência”, publicados em 1968, que assistimos ao amadurecimento do pensamento de Reale, no qual se consolida a “fórmula Reale”, pela qual o Direito passa a ser definido como uma “integração normativa de fatos segundo valores”.

É o desenvolvimento de uma dialética de complementaridade que imprimi “ritmo” à obra de Reale, que a singulariza e lhe confere plena coerência. Assim, impõe-se o estudo desta dialética, pois sem uma clara noção de como se relacionam os três fatores integrantes do Direito, permanecerá nebulosa a compreensão da realidade jurídica em sua unidade concreta e dinâmica.

II. Dialética de Complementaridade: a relação entre fato-valor-norma

Fato, valor e norma se relacionam, daí “nasce” o Direito. Esta afirmação suscita um número muito maior de questionamentos do que de respostas, muitas das quais apontadas por Reale à p. 54 de sua já citada “Teoria Tridimensional do Direito”. No entanto, a principal delas, cuja resposta representa o ponto de partida para todas as outras, é: como se opera esta relação, qual a sua natureza?

Neste ponto, por entender que em qualquer segmento da experiência jurídica se fazem presentes os seus três elementos integrantes, a única resposta plausível e coerente é que esta relação se dá conforme uma “dialética de complementaridade” ou “dialética de implicação-polaridade”.

Na dialética de complementaridade ocorre o inverso do processo característico à dialética hegeliana. Os termos, aparentemente contraditórios, se implicam (implicação) e se excluem (polaridade) reciprocamente, só podendo ser entendidos na unidade integrante que resulta desta correlação. A aparente contradição que existia no início do processo resta desmascarada ao final. Nas precisas palavras de Irineu Strenger, “se desfaz a contradição, não a contrariedade”.

Esta dialética de complementaridade se irradia pelo mundo da cultura. Há uma relação dialética de complementaridade entre sujeito-objeto, no ato de conhecer [09], bem como entre valor-realidade, no plano histórico, de modo que no âmbito jurídico não poderia ser diferente.

No Direito, fato e valor se excluem, mantendo-se irredutíveis (polaridade), mas se exigem reciprocamente (implicação)[10]. Desta tensão entre fato e valor, nasce a norma, a qual não pode ser entendida com abstração de seus fatores axiológicos e fáticos.

Atrás da simplicidade e clareza com que expôs suas idéias, o mestre paulista escondeu a complexidade e magnitude de suas indagações e questionamentos e, principalmente, a genialidade das soluções encontradas.

III. Fato, Valor e Norma no âmbito do Historicismo Axiológico

Buscaremos desvendar o real significado do historicismo axiológico de Reale e dos elementos integrantes do Direito, o fato, o valor e a norma quando inseridos neste contexto.

O valor não é objeto ideal, porque os objetos ideais são, ao passo que os valores valem, logo devem ser. Esse dever ser situa-se no plano prático, estando ligado sempre a uma ação, em contraste ao dever ser kantiano ou kelseniano, os quais se restringem ao plano teórico. Ademais, os objetos ideais são pensados em si e per si, ao passo que os valores só logram compreensão quando pensados no seu correspondente contrário (um “desvalor”) [11].

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Em sua relação com o “mundo do Ser” (que se dá através dos objetos e ciências culturais – vide tópico I), o valor necessita do já dado (fato), mas jamais se reduz a este. Isso ocorre em virtude de duas características do valor: sua inexaurabilidade e sua objetividade in fieri no curso da História. [12].

Em outros termos, ao longo da História o valor pode ser realizado, objetivado, passando a ser. Todavia, essa realização nunca é integral, porque se o fosse, o valor seria convertido em fato, perdendo seu eidos, quando em verdade o valor sempre supera o fato. Desta feita, o valor ora é, ora deve ser. O valor já realizado e objetivado ao longo da História é, o valor ainda não alcançado deve ser. Reitere-se, a objetivação histórica do valor é sempre relativa, deveras, sempre haverá um resquício de valor ainda a ser alcançado.

A implicação-polaridade da relação de complementaridade consiste nessa relação de que o valor precisa do fato para se realizar ao longo da história, em contrapartida, nunca se reduz ao fato, mantendo sua qualidade de dever ser.

Do outro lado tem-se o fato. Em termos de historicismo axiológico, o fato/“dado” não pode ser compreendido como mero fato natural, explicável por meros nexos causais. Pelo contrário, o fato é sempre imantado por um valor, necessita dele para sua compreensão, destituído de valor não passa de um vazio, algo inexistente.

Em razão disso, o fato é capaz de revelar as intencionalidades objetivadas em determinado lugar e época. Porém, também o fato nunca se reduz a um valor, visto que a ligação entre ser e dever ser não é uma mão dupla, não se pode passar daquilo que é para aquilo que deve ser.

Da tensão existente entre a implicação e exclusão mútua operada entre fato e valor, nasce o terceiro fator do direito, o normativo. A norma, por seu turno, representa sempre um posicionamento, uma valoração, diante de fatos. Em poucas palavras, fato e valor se vêem integrados na unidade normativa.

Conclusão lógica do exposto é que a norma assinala os valores que vão se concretizando na condicionalidade dos fatos históricos-sociais.

Isto posto, é-nos possível definir o Direito como uma integração normativa de fatos segundos valores, que se dá através de um processo dialético de complementaridade, cujo desenvolvimento está inserido no processo histórico-cultural (em um dado espaço e tempo, em que atuam as forças axiológicas e fáticas circundantes).

Por fim, ao falarmos em historicismo axiológico, vemos como a História não se resume aos fatos, longe disso, são os valores que a colorem e lhe outorgam sentido, através da dialética de implicação-polaridade que se dá entre realidade e valor.

IV. A unidade concreta e dinâmica da experiência jurídica, a “Lebenswelt” e as “invariantes axiológicas”

Pelos motivos expostos, temos que a experiência jurídica, por sua natureza dialética, só pode ser compreendida em sua unidade concreta e dinâmica. Portanto, impossível ao jurista, ao interpretar e aplicar o Direito, ficar adstrito ao enunciado da lei, sem ter em mente os fatos e valores que circundaram a sua gênese, bem como as alterações verificadas posteriormente no plano fático-axiológico.

A necessária análise dos fatos e dos valores no momento de interpretar a norma se dá em virtude de que o Direito está imerso no “mundo da vida”, a Lebenswelt idealizada na fenomenologia husserliana.

Lebenswelt pode ser definida como o “mundo da vida quotidiana”, da experiência jurídica pré-categorial, em uma só palavra, da experiência espontânea, em oposição à científica. A Lebenswelt husserliana, estudada pela fenomenologia mundana, precede toda ciência objetiva, pois nela se vê uma “intuitividade em princípio”, com destaque às “intuições valorativas”[13] .

Insta salientar que a Lebenswelt nasce por si, do simples concretizar da ação e não é dada em definitivo, uma vez que está sujeita às alterações que ocorrem no plano fático ou axiológico. Daí é licito concluir que seu desenvolvimento é condicionado pela História.

Porquanto, uma vez “recepcionado” pelo “mundo da vida”, o Direito torna-se tão cambiante quanto aquele. Deveras, o Direito, assim como o “mundo da vida” são processos abertos suscetíveis às alterações operadas no plano fático ou axiológico, sejam eles ligados ao “mundo vital”, sejam ligados ao próprio mundo da experiência científica.

Por último, mas não menos importante, temos a tarefa de dizer que, não obstante as alterações que atingem o Direito, existem alguns valores que se mantêm constantes, as chamadas invariantes axiológicas.

Categórica a definição de Reale, in Prefácio a “O Pensamento Filosófico e Jurídico de Miguel Reale” de Renato Cirell Czerna, de que são “certos valores – como o da pessoa humana e da liberdade – que se tornam constantes históricas, ou seja, uma vez atingido o ápice de paradigmas exemplares da conduta humana, não mais perdem esse status” [14].

Nesse norte, em contraposição ao caráter dinâmico e provisório inerente à [15] maioria das normas, aquelas que exprimem esses valores supremos costumam ter uma durée permanente.

Esses são, em nossa ótica, os pontos basilares da teoria tridimensional do direito, de modo que, na parte final deste estudo será buscada a comprovação de um tridimensionalismo implícito na obra de outros dois grandes pensadores do direito e, por fim, os reflexos da estrutura tríplice do direito, no campo da Ciência do Direito, ou seja, na prática da experiência jurídica.

Parte III

I. Tridimensionalismo Implícito em outros juristas – A posição de Norberto Bobbio e Hans Kelsen

Aqueles que conceberam o direito através de visões reducionistas colheram imaturo o fruto do conhecimento, pois não visitaram, com o olhar da sabedoria, todas as facetas da realidade jurídica.

Assim, podemos trazer dois grandes filósofos do Direito, cujas contribuições para a Ciência e Filosofia do Direito são imensuráveis, inobstante o unilateralismo que impregnou suas teorias: Hans Kelsen e Norberto Bobbio.

Em sua Teoria Pura do Direito, o mestre de Viena pretende reduzir o Direito, que deve ser estudado pelo jurista, a um conjunto de enunciados lógicos (normas) postos em sequência e subordinados a uma norma fundamental. É a clássica pirâmide kelseniana [16].

Todavia, o pensamento kelseniano revela existir uma “Teoria da Justiça” e uma “Sociologia Jurídica”, consoante nos informa Josef L. Kunz[17]. Sem embargo, para Kelsen, estes ramos não interessariam ao jurista enquanto tal. Daqui já podemos concluir, para não nos alongarmos, que Kelsen reconhece a tríplice estrutura da realidade jurídica, falta-lhe, porém, a intuição da unidade da experiência jurídica, bem como da dialética de complementaridade que correlaciona fato-valor-norma. Sua posição, nos atrevemos a dizer, situa-se no âmbito do tridimensionalismo genérico[18].

Não menos grandioso foi Norberto Bobbio. Entretanto, ao mostrar-se grande defensor das idéias kelsenianas, em especial durante o período anterior ao “famigerado 68”, quando então direciona suas energias e meditações para a filosofia política[19], incorre no mesmo erro do mestre austríaco.

Apesar disso, em nossa ótica, há alguns pontos semelhantes entre o pensamento filosófico de Reale e Bobbio, como nos parece a grande simpatia do jurista de Turim pela “filosofia da história”, que transparece na obra “A Era dos Direitos” [20]. Fazer “filosofia da história” é atribuir sentido a determinado evento histórico. Portanto, Bobbio mostrou-se ciente da importância de colorir os fatos com valores para compreendê-los integralmente, por outro lado, faltou-lhe perceber a correlação de complementaridade entre fato e valor no âmbito histórico.

Quanto à estrutura do direito, Bobbio afirma, em sua “Teoria da Norma Jurídica”, capítulo II, que existem três critérios de valoração para o Direito, a justiça, a validade e eficácia. Esses critérios correspondem respectivamente aos problemas deontológico, ontológico e fenomenológico do Direito.

No entanto, para esse ilustre jurista os três critérios são independentes entre si, de sorte que uma norma poderia ser válida, sem necessariamente ser justa e eficaz. Mais uma vez, foge ao pensamento de Bobbio a idéia de dialética de complementaridade para que pudesse compreender a experiência jurídica em sua integralidade.

Portanto, podemos, sem medo de errar, incluir Bobbio entre aqueles que pensaram o Direito dentro de um tridimensionalismo genérico, de maneira que ao filiar-se ao neopositivismo, Bobbio parece ter bebido da água do rio Ameles, pois fechou os olhos a alguns de seus mais importantes pensamentos.

II. Os reflexos da estrutura tridimensional do Direito na Ciência do Direito

Forçoso, a fim de confirmar a veracidade da teoria estudada, mostrar os reflexos da estrutura trina do direito no campo epistemológico da experiência jurídica. Dois momentos foram escolhidos por nós para tal intento, a nomogênese jurídica e o momento de interpretação e aplicação do Direito [21].

No âmbito da nomogênese jurídica, se entendemos que o Direito é uma integração normativa de fatos segundo valores, em toda norma haverá sombras do quadro fático e axiológico que circundaram a sua gênese.

Dentro deste quadro, aplaudindo o Prof. Bittar [22], podemos situar o surgimento do Direito Internacional dos Direitos Humanos. No quadro fático que envolveu seu nascimento, despontam dois eventos relevantes: os campos de concentração da Segunda Guerra e o início da Era Nuclear. Nestas duas oportunidades, o valor da dignidade humana sofreu profundos golpes.

A resposta a este cenário acontece quando o espírito humano toma posição diante dos fatos que se desenvolviam e do desvalor que se manifestava (a “indignidade da pessoa humana”). O DIDH surge porque o homem, valor fonte do ordenamento jurídico, sente a necessidade de resgatar e tutelar o valor da dignidade da pessoa humana. Portanto, a Declaração Universal dos Direitos Humanos emerge da tensão existente entre a “Era Nuclear” (fato) e o valor da dignidade da pessoa humana, integrando os elementos normativos, fáticos e axiológicos em uma só unidade, concreta e dinâmica.

Também em nossa Lei Civil verificamos a estrutura tríplice do direito. Vejamos a dicção do artigo 421 do Novel Código Civil:

"Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato."

Note-se que este artigo, ausente no Código Civil de 1916, representa uma tomada de posição diante de fatos novos, quais sejam, o Estado Democrático de Direito e Social, que rompe o paradigma individualista que impregnou o Código revogado. O valor tutelado é a intervenção do Estado nas relações particulares, quando esta se mostrar necessária para a proteção do interesse social. Daí, surgir o texto normativo supra.

Independentemente de quantas fossem as normas trazidas a este trabalho, em todas elas se verificariam a estrutura tridimensional do Direito. Passemos, portanto, ao estudo de como os fatos e valores supervenientes são idôneos a alterar o significado dos enunciados normativos, por conseguinte, sua aplicação.

Nas normas de Direito Público a estrutura tríplice do Direito é mais notável, por estarem estas normas “recheadas” de carga axiológica. Nessa senda, estudemos o fenômeno da mutação constitucional.

Tal fenômeno só pode ser compreendido dentro de uma ótica culturalista e aberta da Constituição, “que a considera não como norma pura, mas como conexão com a realidade social, que lhe dá o conteúdo fático e o sentido axiológico”[23].

Com Bulos[24], podemos conceituar a mutação constitucional como “o processo informal de mudança das constituições que atribui novos sentidos aos seus significados e conteúdos dantes não contemplados”. Corresponde a manifestação do poder social que, em virtude da íntima correlação entre Direito e realidade social, atualiza o sentido normativo, conferindo-lhe novo significado, ainda que seu enunciado lógico não se altere.

Não se deve incorrer no absurdo de pensar este fenômeno como algo criado na Academia, sem repercussão na praxis da experiência jurídica. A mais recente e atualizada jurisprudência de nosso Pretório Excelso reconhece a existência da mutação constitucional, atestando a veracidade da tese realeana. Nesse norte, é de bom alvitre trazer o voto do ministro relator Celso de Mello, ao decidir o Habeas Corpus 90450 / MG, julgado em 23/09/2008:

“A INTERPRETAÇÃO JUDICIAL COMO INSTRUMENTO DE MUTAÇÃO INFORMAL DA CONSTITUIÇÃO. - A questão dos processos informais de mutação constitucional e o papel do Poder Judiciário: a interpretação judicial como instrumento juridicamente idôneo de mudança informal da Constituição. A legitimidade da adequação, mediante interpretação do Poder Judiciário, da própria Constituição da República, se e quando imperioso compatibilizá-la, mediante exegese atualizadora, com as novas exigências, necessidades e transformações resultantes dos processos sociais, econômicos e políticos que caracterizam, em seus múltiplos e complexos aspectos, a sociedade contemporânea.” (grifo nosso)

Através de uma análise da realidade prática da vida jurídica, resta crível sua estrutura tridimensional e como esta se desenha em um processo aberto, dinâmico e concreto, onde alterações nos planos fático e axiológico alteram a interpretação do enunciado normativo, por conseguinte, sua aplicação.

CONCLUSÃO

Concluímos o presente trabalho no afã de ter demonstrado os principais pontos da teoria acerca da estrutura tridimensional do fenômeno jurídico de Miguel Reale, a fim de possibilitar soluções mais adequadas aos problemas da Ciência do Direito.

No último momento deste estudo, chamamos a atenção do leitor para o fato de que Reale, antes de pensar o Direito, buscou compreender o homem em sua plenitude histórica. Só assim logrou êxito ao outorgar à dialética de complementaridade o título de “governante” do “mundo histórico-cultural”, onde correlaciona sujeito e objeto, ser e dever ser, história e valor, teoresis e praxis. Somente através da dialética de complementaridade foi capaz de dar o compasso ideal à relação existente entre fato, valor e norma, responsável por conferir uma unidade concreta e dinâmica ao fenômeno jurídico.

Notas

01. REALE, Miguel. “Lições Preliminares de Direito – 27 ed. ajustada ao novo código civil”, São Paulo: Saraiva, 2002.

02. a denominação é dada por Josef. L. Kunz.

03. DINIZ, Maria Helena. “Compêndio de Introdução à Ciência do direito”, 18ª edição, São Paulo: Saraiva, 2007, p. 142; CAVALCANTI FILHO, Theophilo. “Introdução - Papel desempenhado por fundamentos do direito na filosofia jurídica nacional” in REALE, Miguel. “Fundamentos do Direito”, 3 ed., São Paulo: Saraiva, 1998.

04. MONTORO, André Franco. “Introdução à ciência do direito”, 27 ed. ver. e atual., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 321 e segs.; DINIZ, Maria Helena. “Compêndio de Introdução à Ciência do direito”, cit., p. 131 e segs.

05. Com Montoro, todo bem cultural possui um “suporte”, qual seja sua matéria, e um “significado/sentido”, correspondente sempre a expressão de um valor.

06. REALE, Miguel. “Filosofia do Direito”, cit., p. 189.

07. REALE, Miguel. “Da experiência jurídica à filosofia”, disponível em http://www.miguelreale.com.br/artigos/ejurfil.htm; REALE, Miguel. “Teoria Tridimensional do Direito”, 5 ed. rev. e aum., São Paulo: Saraiva, 1994, p. 28.

08. REALE, Miguel. “Fundamentos do Direito”, cit., p. 182.

09. Para maiores esclarecimentos sobre a implicação que se dá entre sujeito e objeto no ato cognitivo, que dá origem a Ontognoseologia em substituição à Gnoseologia, ver MIGUEL REALE: “Filosofia do Direito”, cit., p. 361 e s.; “Cinco Temas do Culturalismo”, em especial os ensaios “Ontognoseologia e Culturalismo” e “O A Priori Cultural”, p. 37 e segs.

10. REALE, Miguel. “Lições Preliminares de Direito”, cit., p. 67.

11. A essa característica dos valores dá-se o nome de bipolaridade.

12. BITTAR, Eduardo Carlos Bianca; ALMEIDA, Guilherme Assis de. “Curso de Filosofia do Direito”, 6ªed., São Paulo: Atlas, 2008, p. 530 e segs.

13. Fonte: Dicionário de Filosofia, vocábulo Lebenswelt – disponível em http://books.google.com.br/books?id=aOsOq8UfSwIC&pg=PA1705&lpg=PA1705&dq=Husserl+dicionário+de+filosofia+Mundo+da+Vida&source=bl&ots=Xrw0sEx-r0&sig=Eh8FZK2RsNKka7Anc508qewBuEk&hl=pt-BR&ei=ppCwSubuJ9attgeli7jWBw&sa=X&oi=book_result&ct=result&resnum=1#v=onepage&q=&f=false .

14. CZERNA, Renato Cirell. “O Pensamento Filosófico e Jurídico de Miguel Reale”, 1 ed., Saraiva: São Paulo, 1999.

15. As normas, compreendidas em termos de normativismo concreto, representam soluções provisórias à tensão existente entre valor e fato, de modo que sobrevindo fatos ou valores novos, são introduzidas alterações semânticas aos enunciados normativos até que seja rompida sua elasticidade semântica, culminando na sua revogação.

16. Para maiores esclarecimentos, ver HANS KELSEN, “Teoria Pura do Direito”; MARIA HELENA DINIZ, cit., p. 116 e segs.; MIGUEL REALE, “Fundamentos do Direito”, cit., p. 135 e segs.; NORBERTO BOBBIO em “Teoria da Norma Jurídica – trad. Fernando Pavan Baptista e Ariani Bueno Sudatti”, 4 ed. revista, Bauru, SP: EDIPRO, 2008, p. 58 e segs.

17. “Sobre a problemática da Filosofia do Direito nos meados do século XX”, in Revista da Faculdade de Direito de São Paulo, 1951.

18. Interessante observar que em suas obras posteriores, vão ganhando, paulatinamente, maior importância os elementos fato e valor. Poder-se-ia dizer que isso decorre do contato que Kelsen tem com o common law, quando passa a residir nos Estados Unidos.

19. LOSANO, Mario G. “Prefácio à edição brasileira”, in BOBBIO, Norberto. “Da Estrutura à Função : novos estudos de teoria do direito” tradução de Daniela Beccaccia Versiani; revisão técnica de Orlando Seixas Bechara, Renata Nagamine, Barueri, SP: Manole, 2007.

20. BOBBIO, Norberto. “A era dos direitos”, tradução de Carlos Nelson Coutinho, apresentação de Celso Lafer – nova ed. – Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 52.

21. Para esclarecimentos de ordem teórica a respeito do normativismo concreto de Miguel Reale, ver sua “Filosofia do Direito”, cit., p. 562 e segs.; “Teoria Tridimensional do Direito” e “Direito como Experiência”. Não iremos aprofundar o tema pela sua grande fecundidade a discussões e por pensarmos no normativismo concreto mais como uma conseqüência, situada na praxis do Direito, da estrutura tridimensional do direito do que um ponto teoricamente elaborado por Reale.

22. BITTAR, Eduardo Carlos Bianca; ALMEIDA, Guilherme Assis de. “Curso de Filosofia do Direito”, 6ªed., São Paulo: Atlas, 2008, p. 530 e segs.

23. SILVA, José Afonso da. “Curso de Direito Constitucional positivo”, apud PUCCINLELLI JÚNIOR, André. “A omissão legislativa inconstitucional e a responsabilidade do estado legislador”; prefácio de Flávia Piovesan; apresentação de Gilmar Ferreira Mendes – São Paulo: Saraiva, 2007, p. 16.

24. BULOS, Uadi Lâmmego, em “Curso de Direito Constitucional”, 2 ed. ver. e atual, de acordo com a Emenda Constitucional 56/2007 – São Paulo: Saraiva, 2008, p. 321 e segs.

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