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Mão e luva

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Por:   •  24/5/2014  •  Tese  •  3.205 Palavras (13 Páginas)  •  315 Visualizações

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A Mão e a Luva

Machado de Assis

I O FIM DA CARTA

-- Mas que pretendes fazer agora?

-- Morrer.

-- Morrer? Que idéia! Deixa-te disso, Estêvão. Não se morre por tão pouco...

-- Morre-se. Quem não padece estas dores não as pode avaliar. O golpe foi profundo, e o meu coração é pusilânime; por mais aborrecível que pareça a idéia da morte, pior, muito pior do que ela, é a de viver. Ah! tu não sabes o que isto é?

-- Sei: um namoro gorado...

-- Luís!

-- ... E se em cada caso de namoro gorado morresse um homem, tinha já diminuído muito o gênero humano, e Malthus perderia o latim. Anda, sobe.

Estêvão meteu a mão nos cabelos com um gesto de angústia; Luís Alves sacudiu a cabeça e sorriu. Achavam-se os dois no corredor da casa de Luís Alves, à rua da Constituição, -- que então se chamava dos Ciga- nos; -- então, isto é, em 1853, uma bagatela de vinte anos que lá vão, levando talvez consigo as ilusões do leitor, e deixando-lhe em troca (usurá- rios!) uma triste, crua e desconsolada experiência.

Eram nove horas da noite; Luís Alves recolhia-se para casa, justa- mente na ocasião em que Estêvão o ia procurar; encontraram-se à porta. Ali mesmo lhe confiou Estêvão tudo o que havia, e que o leitor saberá daqui a pouco, caso não aborreça estas historias de amor, velhas como Adão, e eternas como o céu. Os dois amigos demoraram-se ainda algum tempo no corredor, um a insistir com o outro para que subisse, o outro a teimar que queria ir morrer, tão tenazes ambos, que não haveria meio de os vencer, se a Luís não ocorresse uma transação.

-- Pois sim, disse ele, convenho em que deves morrer, mas há de ser amanhã. Cede da tua parte, e vem passar a noite comigo. Nestas últimas horas que tens de viver na terra dar-me-ás uma lição de amor, que eu te pagarei com outra de filosofia.

Dizendo isto, Luís Alves travou do braço de Estêvão, que não resis- tiu dessa vez, ou porque a idéia da morte não se lhe houvesse entranhado deveras no cérebro, ou porque cedesse ao doloroso gosto de falar da mulher amada, ou, o que é mais provável, por esses dois motivos juntos. Vamos nós com eles, escada acima, até a sala de visitas, onde Luís foi bei- jar a mão de sua mãe.

-- Mamãe, disse ele, há de fazer-me o favor de mandar o chá ao meu quarto; o Estêvão passa a noite comigo.

Estêvão murmurou algumas palavras, a que tentou dar um ar de gracejo, mas que eram fúnebres como um cipreste. Luís viu-lhe então, à luz das estearinas, alguma vermelhidão nos olhos, e adivinhou, -- não era difícil, -- que houvesse chorado. Pobre rapaz! suspirou ele mentalmente. Dali foram os dois para o quarto, que era uma vasta sala, com três camas, cadeiras de todos os feitios, duas estantes com livros e uma secretária, -- vindo a ser ao mesmo tempo, alcova e gabinete de estudo.

O chá subiu daí a pouco. Estêvão, a muito rogo do hóspede, bebeu dois goles; acendeu um cigarro e entrou a passear ao longo do aposento, enquanto Luís Alves, preferindo um charuto e um sofá, acendeu o primeiro e estirou-se no segundo, cruzando beatificamente as mãos sobre o ventre e contemplando o bico das chinelas, com aquela placidez de um homem a quem se não gorou nenhum namoro. O silêncio não era completo; ouvia- se o rodar de carros que passavam fora; no aposento, porém, o único rumor era dos botins de Estêvão na palhinha do chão.

Cursavam estes dois moços a academia de S. Paulo, estando Luís Alves no quarto ano e Estêvão no terceiro. Conheceram-se na academia, e ficaram amigos íntimos, tanto quanto podiam sê-lo dois espíritos diferen- tes, ou talvez por isso mesmo que o eram. Estêvão, dotado de extrema sensibilidade, e não menor fraqueza de ânimo, afetuoso e bom, não daquela bondade varonil, que é apanágio de uma alma forte, mas dessa outra bon- dade mole e de cera, que vai à mercê de todas as circunstâncias, tinha, além de tudo isso, o infortúnio de trazer ainda sobre o nariz os óculos cor-de- rosa de suas virginais ilusões. Luís Alves via bem com os olhos da cara. Não era mau rapaz, mas tinha o seu grão de egoísmo, e se não era incapaz de afeições, sabia regê-las, moderá-las, e sobretudo guiá-las ao seu próprio interesse. Entre estes dois homens travara-se amizade íntima, nascida para um na simpatia, para outro no costume. Eram eles os naturais confidentes um do outro, com a diferença que Luís Alves dava menos do que recebia, e, ainda assim, nem tudo o que dava exprimia grande confiança.

Estêvão referira ao amigo, desde tempos, toda a história do amor, agora malogrado, suas esperanças, desalentos e glórias, e, enfim, o inespe- rado desfecho. O pobre rapaz, que folheava o capítulo mais delicioso do romance -- no sentir dele -- caiu de toda a altura das ilusões na mais dura, prosaica e miserável realidade.

A namorada de Estêvão, -- é tempo de dizer alguma coisa dela, -- era uma moça de dezessete anos, e, por ora, simples aluna-professora no colégio de uma tia do nosso estudante, à rua dos Inválidos. Estêvão tinha-a visto, pela primeira vez, seis meses antes, e desde logo sentiu-se preso por ela, "até à morte", disse ele ao amigo, referindo-lhe o encontro, o que o fez sorrir de tão estirado prazo. Qualquer que ele fosse, porém, o prazo fatal daquele cativeiro, a verdade é que Estêvão no mesmo ponto em que a viu logo a amou, como se ama pela primeira vez na vida -- amor um pouco estouvado e cego, mas sincero e puro. Amava-o ela? Estêvão dizia que sim, e devia crê-lo; alguns olhares ternos, meia dúzia de apertos de mão significativos, embora a largos intervalos, davam a entender que o coração de Guiomar -- chamava-se Guiomar -- não era surdo à paixão do acadêmico. Mas, fora disso, nada mais, ou pouco mais.

O pouco mais foi uma flor, não colhida do pé em toda a original fres- cura, mas já murcha e sem cheiro, e não dada, senão pedida.

-- Faz-me um favor? disse um dia Estêvão apontando para a flor que ela trazia nos cabelos; esta flor está murcha, e, naturalmente, vai deitá- la fora ao despentear-se; eu desejava que ma desse.

Guiomar, sorrindo, tirou a flor do cabelo, e deu-lha; Estêvão recebeu-a com igual contentamento ao que teria se lhe antecipassem o seu quinhão do céu. Além da flor, e para suprir as cartas, que não havia, nada mais obtivera Estêvão durante aqueles seis compridos meses, a não serem os tais olhares, que afinal são olhares, e vão-se com

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