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EANALPHOLISMO, VERDADE E LEI APÓS AUSCHWITZ

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Por:   •  22/9/2014  •  Artigo  •  1.240 Palavras (5 Páginas)  •  147 Visualizações

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EANALFABETISMO, VERGONHA E O DIREITO APÓS AUSCHWITZ

postado: 20 de setembro de 2014 | 0 comentários

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Me recordo como se fosse ontem, o maldito dia em que, após o alistamento, compareci à Junta. Militar para cumprir minhas obrigações patrióticas e realizar a seleção geral.

Tinha 18 anos incompletos, cursava Direito e me dava dor de barriga só de pensar na hipótese de vir a servir ao Exército. Muito embora meu tio fosse tenente-coronel, e com ele eu já tivesse conversado algumas vezes a respeito do meu desejo de ser dispensado, por precaução, decidi levar todos os atestados médicos que colecionei ao longo de minha adolescência, especialmente um relativo a uma tendinite crônica que sofria em ambos os tornozelos, resultante de uma década dedicada à prática de esporte de competição. Isto foi o suficiente para obter a tal “CDI” (Certificado de Dispensa de Incorporação).

Na época, ninguém sabia o que esta sigla significava. De todo modo, não importava. Era apenas um detalhe, que não mudava nada. Na verdade, independente do significado que tinha, a CDI era o que todos buscavam. Todos? Calma. Todos como eu. Gente como eu, pois havia aqueles que queriam ser selecionados, havia aqueles para quem a seleção se apresentava como uma alternativa, uma possibilidade, uma chance, enfim, um futuro. Ocorre que, para mim, todos estes eram invisíveis. Eles não existiam, simplesmente não faziam parte do meu mundo.

O procedimento era bastante simples. O alistado devia apresentar-se à Junta Militar, no dia, local e horário designados, para a seleção, que era composta por uma bateria de exames físicos e de testes psicológicos, cujos resultados determinavam a (in)aptidão do cidadão. Aqueles que eram considerados inaptos, assim como aqueles aptos que fossem dispensados por outra razão, deviam retornar apenas para prestar o chamado Juramento à Bandeira Nacional.

Na ocasião, após a coleta de dados pessoais e o preenchimento de alguns questionários, foram formados grupos de aproximadamente 50 alistados, que deviam seguir um percurso de testes realizados por diferentes comissões. De início, fomos encaminhados à avaliação odontológica. Sem comentários. Ato contínuo, passamos ao exame clínico. Era um exame de rotina, mas em maior escala, coletivo e, sobretudo, militar. Todos deviam ficar nus, assoprar o punho, respirar fundo, estender os braços, abrir os dedos, mostrar a garganta, etc. Até aí tudo bem. Então, ordenaram que nos dirigíssemos à próxima sala, onde deveríamos formar duas filas. Na parede, havia aquelas placas com letras em diversos tamanhos para a realização de exame oftalmológico, ou, como se diz, para o chamado “teste de vista” (sic). Eu era o quarto da minha fila. Então, o médico disse ao primeiro: “— Me diga as letras da primeira linha”. O alistado respondeu corretamente, superando todas as etapas, até chegar às últimas linhas, onde as letras eram menores. Ao segundo alistado foi aplicado o mesmo procedimento, que não durou mais de alguns segundos.

Todavia, quando o terceiro da fila se posicionou sobre a demarcação no chão da sala e o médico lhe pediu para soletrar as letras que constavam na parede, um silêncio se instalou. O médico renovou a ordem. Nada. Então, o médico perguntou em alto e bom tom: “— O senhor não sabe ler?” Antes da constrangida resposta, que se limitou a um aceno negativo com a cabeça, a única coisa que se ouviu foi o riso, ingênuo e infantil, de alguém que não acreditava que a pergunta pudesse ser levada a sério. Para piorar. Quem era o autor deste ultrajante comportamento? Yo. Era o meu riso. O meu riso. E, aqui, não há como escapar de um clichê: embora certamente tudo não tenha durado mais do que um segundo, a sensação foi de que o tempo parou.

Ora, não tenho dúvidas de que, antes desta ocasião, já havia sentido vergonha em muitas outras vezes ao longo de minha puberdade. Como todos os adolescentes, fiz bullying e também sofri bullying, em uma época — não tão distante assim — na qual isto não dava todo o Ibope dos dias de hoje. De qualquer modo, o constrangimento múltiplo, o sentimento de culpa, a exposição pública e a vergonha resultantes do analfabetismo me tocaram de tal maneira que não lembro do resto da seleção, da volta para casa e do protocolar juramento à bandeira.

Analfabetismo, vergonha e culpa. Estes mesmos elementos também atravessam o romance O leitor, de Bernhard Schlink — conhecido jurista alemão —, e aliados à experiência resultante da hegemonia dos regimes totalitaristas provocaram inúmeras reflexões no campo da filosofia, da religião, da política e da ética: a culpa individual ou coletiva, tratada por Karl Jaspers; a questão da responsabilidade e do

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