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Três fórmulas Para Compreender "O Suicídio" De Durkheim

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Por:   •  16/5/2014  •  3.706 Palavras (15 Páginas)  •  299 Visualizações

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As formas elementares de uma concepção religiosaLe croyant s’incline devant Dieu, parce que c’est de Dieu qu’il croit tenir l’être, et particulièrement son être mental, son âme. Nous avons des raisons d’éprouver ce sentiment pour la collectivité

Emile Durkheim

O positivismo, como se sabe, aolado de ser uma doutrina científica, é fundado como uma doutrina religiosa por AugusteComte (1798-1857), logo após a morte de sua amada Clotilde de Vaux (1846), que foi “canonizada” e se constituiu objeto personalizado de culto desta nova religião. Seu marco literário foi a publicação do Système de philosophie positive, ou traité de sociologie instituant la religion de l’humanité (1848) e, enquanto uma religião de caráter missionário, não abdicou nem mesmo de ter seu catecismo (Catéchisme positiviste, 1852).

1Sanitarista, doutorando em Medicina Preventiva na Faculdade de Medicina de Universidade de São Paulo, FMUSP

A religião positivista é fundamentalmente uma sociolatria. Seu Deus, seu objeto de culto último e principal, é a sociedade. Seus crentes concebem a sociedade como uma totalidade orgânica passível de ser conhecida, nos moldes de uma ciência positiva, por uma “física social”, cuja “estática” estaria incumbida de produzir uma teoria positiva da ordem.

Complementarmente, concebem a história dessa sociedade como a realização de formas definidas como estágios necessários de um progresso, cuja teorização, sempre nos moldes de uma ciência positiva, estaria a cargo de uma “física social dinâmica”. A rigor, essa teoria positiva do progresso nada mais é do que a tradução “cientificista” de determinadas convicções (cuja expressão máxima talvez seja o pensamento das Luzes) a respeito do sentido da história européia, que entendem que o sistema medieval, caracterizado pelo poder espiritual (teológico e papal) e pelo poder temporal (militar e feudal), teria sido substituído por um sistema positivo (científico

e industrial). Além disso, Comte também interpretava que, à sua época, o curso deste progresso estaria sendo obstaculizado por forças retrógradas, que impediam a Revolução francesa de se completar e tentavam restaurar a Idade Média. O positivismo, como única “autêntica doutrina orgânica”, viria restabelecer a ordem e o progresso, sendo, sem dúvida, essa manifesta pretensão, o que sempre conferiu a esta fé “cientificista” um indisfarçável caráter salvacionista.

Este é o esquema básico ou a fé fundante: as formas elementares de uma concepção religiosa a respeito da sociedade. É tão impossível ignorá-la, quanto não perceber as marcas dessa sociolatria comtiana claramente presentes em um de seus mais eminentes discípulos: Durkheim.

Para Durkheim, a sociedade é uma realidade distinta das instituições e dos indivíduos, que não podem existir sem ela. Toda sua sociologia está fundada nas premissas de que é a forma das coletividades que determina as atitudes individuais e de que existe uma autêntica consciência coletiva.

Sabemos que Durkheim provém de uma família de rabinos e que se interessou pelo estudo das religiões, produzindo um clássico da antropologia sobre o assunto, mas, até onde sei, jamais se envolveu com a “religião” de seu mestre (indireto, é bom lembrar), nem freqüentou os “templos positivistas” em que se rendia culto a Clotilde. Seu credo não ia além de uma sociolatria mitigada

na teoria, mas suficiente para gerar um campo de transcendência para sua sociologia. E é exatamente essa última questão que desejo destacar neste momento: a de que sua

sociologia já nasce marcada pela transcendência (esse a priori sobre a ordem e o sentido do progresso social). E, pelo que se vê, uma transcendência fundamentalmente religiosa ou, pelo menos, fundada numa certa mística do social.

Ora, essa religião positivista pode muito bem ser vista, com vantagens para sua compreensão, como uma espécie de seita particular de uma “religião” ainda mais “católica” (no sentido de mais “universal”, mas também no sentido figurado de mais “exata, perfeita”) que, com uma certa liberdade, poderíamos chamar de “religião moderna”. Ela igualmente possui suas crenças “esclarecidas” a respeito do sentido da história européia e estas também estão fundadas na idéia de que teria havido uma ruptura radical com um passado antigo e medieval. É exatamente essa, aliás, segundo afirma Bruno Latour (1994), a principal crença dos modernos: a de que uma ruptura revolucionária nos separa (“nós”, os modernos) dos pré- modernos (“eles”). Ainda segundo este sociólogo francês, essa dicotomia básica se desdobraria numa série de outras dicotomias decisivas na caracterização das posições modernas, destacadamente: a dicotomia geral “nós”/“eles”, como nossa forma geral de trato com as diferenças (culturais, sociais, políticas etc.); e a dicotomia entre as “representações dos humanos” nas ciências sociais e as “representações dos não-humanos” nas ciências naturais. “Nós”, os sujeitos-civilizados, “eles”, os objetos-selvagens: o conjunto humano se encontra tão separado do mundo natural, quanto a civilização moderna nos separa das formas sociais pré-modernas. Contudo, para Latour, essa crença na ruptura revolucionária, a crença moderna, não passa disso mesmo: uma crença. Faz parte do culto antropocêntrico e narcísico da sociedade moderna. Na realidade, tais revoluções jamais se deram! Jamais fomos modernos! (Latour, 1994). Portanto, não estamos cortados com nosso passado, nem somos diferentes d’“eles”, nem estamos separados dos nossos “objetos”, nem há distinção tão marcada entre as “representações humanas” e as “representações dos objetos”, já que cada vez mais nos percebemos – humanos e objetos - misturados em toda parte (de resto, exatamente como “eles” sempre se perceberam...), e isso não sem relação com o fato de os modernos possuírem uma capacidade especialmente marcante de produzir estes seres híbridos.

A interessante proposição latouriana é retomada, no presente contexto, não apenas pela originalidade de sua concepção antropológica da modernidade, que nos oferece saídas interessantes para o impasse estabelecido – como corolário da dicotomia “humano” e “não humano” - entre o construtivismo e o realismo, mas sobretudo por nos fazer ver como esses dois grandes pólos de nossa gnose dual estão relacionados com a cisão básica em que está fundada a fé moderna: a crença numa ruptura revolucionária.

No meu esforço de compreender Durkheim, procurei, antes de mais nada, situá-lo por referência às linhas e

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