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A NIETZSCHE E O NIILISMO COMO DIAGNÓSTICO DA CRISE DA ÉTICA

Por:   •  1/7/2021  •  Ensaio  •  4.264 Palavras (18 Páginas)  •  204 Visualizações

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NIETZSCHE E O NIILISMO COMO DIAGNÓSTICO DA CRISE DA ÉTICA

Jorge L. Viesenteiner[1]

INTRODUÇÃO

O século XIX é marcado pela falência generalizada das principais narrativas teóricas que sustentaram a cultura ocidental. A unidade da razão que emitia um juízo universal sobre o mundo, a vida e a morte, converte-se em razão fragmentária incapaz de responder às questões basilares da vida humana. No caso da ética, esse colapso é percebido principalmente através do esvaziamento de significado das perspectivas e valorações morais que foram tradicionalmente cultivadas ao longo dos séculos. Trata-se de um descrédito em relação ao otimismo exagerado nas potencialidades da razão humana, bem como da gradual supressão de um fundamento religioso que garantia a retidão da ação humana. Aos poucos, a esfera ética vai perdendo as condições de agregar sentido e valor à existência humana, restando aos homens apenas se deparar com o vazio do mundo e de si mesmos.

Podemos compreender a ética como uma reflexão teórica sobre as condições que dão sentido às ações morais e à vida humana, e que possibilitam ao homem criar uma “relação de pertencimento” com o mundo em que ele vive. Trata-se de um anseio comum de “um ser que não apenas vive, mas que pergunta pelo sentido de tudo e, portanto, pelo sentido de sua vida, pela razão de ser de suas ações” (OLIVEIRA, 2001, p. 5). Mas aí está nossa questão: a partir do século XIX a esfera da ética que garante sentido às ações e à vida assiste gradativamente ao esvaziamento do potencial gerador de sentido ao homem. À esse colapso e esvaziamento é que também podemos denominar de crise da ética.

Nietzsche (1844-1900) é certamente o filósofo que mais bem analisou as condições culturais do século XIX e, por isso, podemos considerá-lo um dos principais médicos da cultura ocidental, na medida em que foi capaz de diagnosticar precisamente a derrocada dos valores morais. Neste caso, compreender o século XXI, sobretudo as transformações morais e suas configurações contemporâneas, deve necessariamente remontar ao diagnóstico feito por Nietzsche da crise da ética. Portanto, compreender em que consistiu o diagnóstico da falência dos valores morais significa lançar luz à nossa própria condição moral no século XXI.

Vamos compreender em que consiste o diagnóstico da crise da ética através de um importante conceito nietzscheano: o niilismo, sobretudo em sua dimensão humana e moral que ele recebe em Nietzsche. Essa hipótese deve nos servir de lente de aumento para compreender tanto o diagnóstico da crise moral, como também para entendermos melhor a nossa época. Se quisermos, pois, entender em que consiste a crise ética contemporânea, podemos ler a nossa realidade através dessa lente de aumento.

NIILISMO: “DE ONDE PROCEDE O MAIS SINISTRO DE TODOS OS HÓSPEDES”?

        Nietzsche nunca chegou a escrever um livro sobre o niilismo. Apesar disso, encontramos o conceito em vários de seus textos e de modo esparso. Embora a noção de niilismo já se encontre desde 1880, é por volta de 1888 que Nietzsche anuncia de modo mais profético o niilismo: “O que eu narro é a história dos dois próximos séculos. Descrevo o que vem, o que não pode mais deixar de vir de outro modo: o advento do niilismo” (KSA, 13, 11[411], 2).[2] A mais indesejada visita que a cultura ocidental recebe, o niilismo, traz consigo um gigantesco processo de esvaziamento da vida e dos valores. Sob esse ponto de vista, nossa época ainda experimenta a chegada do mais sinistro de todos os hóspedes.

Grosso modo, niilismo é um processo de falência generalizada do sentido que o homem agrega à sua vida e ao mundo. Aquilo que cada ser humano tinha como valores pessoais e que ele usava para interpretar a existência, o mundo e sua vida social, não têm mais força para dar alguma resposta a ele. Nesse estado o homem se sente como que perdido em meio a uma vida desprovida de qualquer significado. Trata-se de um estado psicológico em que nos encontramos sem um “fim” ou “saída” razoável para as principais angústias humanas: o que antes possuía cor se torna cinza; se antes o homem ouvia algo do mundo, agora esse mesmo mundo aparece em seu mais absoluto silêncio; e se antes ele deslizava nadando nas águas calmas da sua vida, agora naufraga em seu próprio oceano. Em Assim Falou Zaratustra, Nietzsche põe em evidência essa condição vazia do homem, através do diálogo entre o profeta Zaratustra e sua sombra. No texto, diz a sombra: “Tenho, eu, porventura – ainda uma meta? Um porto para o qual ruma a minha vela? Um bom vento? Ah, somente quem sabe para onde vai sabe, também, que vento é bom e favorável à sua navegação. Que me restou, ainda? Um coração cansado e atrevido; [...] Onde está – o meu lar?”. Às palavras da sombra, responde Zaratustra: “Perdeste a meta; ai de ti, como irás refazer-te e consolar-te da perda? Com isso – perdeste também o caminho!” (Z, “A sombra”).

Nessa condição “niilista” da existência, o homem perde seu leme e o rumo para onde precisa ainda percorrer. No niilismo o homem se encontra desamparado de si mesmo e perdido diante do mundo... e pior: não há mais ninguém para ajudá-lo. No fundo, nessa condição o homem padece de seu sentido, ou melhor, ele sofre por não poder mais criar qualquer sentido.

Isso não significa que o homem tenha negado sentido ao mundo ou à sua própria vida. Não se trata de mera negação. Antes disso, o que ocorreu foi apenas um esvaziamento de sentido, simplesmente a vida e seus significados já não dizem mais as mesmas coisas que antes diziam. Uma das definições mais didáticas do conceito de niilismo explica justamente a condição de falência de valores: “O niilismo é um estado normal. Niilismo: falta a meta, falta resposta à pergunta ‘para quê?’. O que significa niilismo? — que os nossos supremos valores se desvalorizam” (KSA, 12, 9[35]).

A condição de esgotamento de possibilidades de vida e valores de um homem pode representar, ao mesmo tempo, os contornos gerais de toda a cultura. Na medida em que cada ser humano se torna incapaz de agregar valor à vida, ou se ele ainda fornece algum valor, esse valor tem valor de “nada”, as condições para a barbárie vão aos poucos tomando forma. Ora, se a vida não tem mais sentido ou qualquer valor – a não ser um valor mercadológico –, então matamos, fazemos holocaustos, tiranizamos, etc. A condição niilista do homem e da cultura é uma versão da barbárie social e uma das ramificações da banalização da vida. A fórmula nietzscheana da desvalorização dos nossos supremos valores, o niilismo, deve ser interpretada nesse rigoroso sentido, vale dizer, as condições teóricas que explicavam e forneciam valor e sentido ao homem e à cultura, perdem sua força ou se “desvalorizam”, restando ao homem o esvaziamento da vida num mundo sem significado.

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