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AS FARPAS DAS PENAS: EMBATES LITERÁRIOS ENTRE CAMILO CASTELO BRANCO E EÇA DE QUEIRÓS

Por:   •  16/3/2020  •  Artigo  •  2.354 Palavras (10 Páginas)  •  181 Visualizações

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AS FARPAS DAS PENAS: EMBATES LITERÁRIOS ENTRE CAMILO CASTELO BRANCO E EÇA DE QUEIRÓS Maíra Contrucci Jamel1 O homem é o ser que não pode sair de si mesmo, que só conhece os outros dentro de si, e que afirmando o contrário, mente. Marcel Proust Artistas de todos os níveis e de todas as artes frequentemente experimentam alguma forma de rivalidade entre si, enraizada em um certo senso de competitividade. O fato é que tal competitividade pode alcançar um válido resultado criativo, através de tentativas artísticas que contribuíam para evolução de seu trabalho, seja pretendendo igualar ou ultrapassar seus pretensos rivais. Joseph Fruscione, em seu estudo sobre os confrontos entre Hemingway e Faulkner, afirma que a rivalidade e a troca dialética são experimentadas em uma dinâmica de respeito, rancor e demonstração de superioridade. Por vezes, o embate pode ser manifestado textualmente, através de trabalhos ficcionais ou correspondências, o que acarreta interesse quando o artista em questão é um escritor. Curiosamente, sendo alguém que utiliza da palavra para fazer sua arte, o autor usa o mesmo instrumento, o discurso, para combater o seu adversário, tornando a troca de farpas também um importante objeto de análise literária. No âmbito da literatura, acusações e elogios entre autores, contemporâneos ou não, sempre foi algo constante. Bastante conhecida é a opinião de Virgínia Woolf sobre a obra mais expressiva de James Joyce: "Acabei o Ulisses (...) É intragável e pretensioso. Cheio de inteligência e potencialidades, mas tão preocupado com a impressão que pode causar e tão egoísta que perde a cabeça, se torna extravagante, amaneirado, barulhento e irrequieto", afirma a escritora. Em meados do século XX, dois grandes expoentes da literatura americana também trocaram farpas. Nunca se conheceram formalmente e elogiavam-se através da imprensa, mas travaram grande competição no meio artístico. É célebre a acusação que Faulkner fizera a Hemingway, afirmando que o colega nunca tinha levado nenhum dos seus leitores a procurar 1 Doutoranda em Literatura Portuguesa, Bolsista Nota 10 CAPES. Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas, Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro. mairacj@gmail.com Linguasagem, São Carlos, v. 23 (1): 2015 palavras em um dicionário. Como resposta, o autor de o Som e a Fúria teve que ouvir: "Ele realmente acha que grandes emoções provem de palavras complicadas?" Apesar de, posteriormente, Faulkner ter dito que não tinha a intenção de insultar o colega, a rixa efetivamente era muito grande, a ponto de ter recusado com veemência a sugestão de um editor para que Hemingway escrevesse o prefácio de um de seus livros. Diversos estudos já abordaram o fato de a literatura se realizar apenas na conjunção entre autor e público. Outro aspecto importante da criação literária é o fato de todo escritor ser tradicionalmente um leitor crítico que busca tanto na tradição, quanto na contemporaneidade, matéria para sua produção. Se como afirma Compagnon, "a leitura tem a ver com empatia, projeção, identificação", (2006, p. 145) é de se esperar que o escritor projete suas ideias naquilo que o alimenta. De fato, grandes escritores provocaram importantes debates sobre a produção literária de seus pares. A literatura portuguesa também figura como exemplo desses questionamentos. Elegemos aqui o caso das discussões entre Camilo Castelo Branco e Eça de Queirós. Não é preciso lembrar que ambos foram expoentes na literatura no século XIX e produziram obras que, não só refletiam sobre seu tempo histórico, como criaram raízes que influenciaram a cultura portuguesa e brasileira a partir de então. As discussões estabelecidas entre Eça e Camilo constituíam uma relação pouco pacífica porque refletiam uma questão de ruptura e ultrapassagem. Era um momento em que a tradição representada por Camilo fora posta em dúvida, em nome da bandeira de tudo aquilo que a se chamou moderno, representado através da figura de Eça de Queirós. Lembramos que a modernidade não é prerrogativa do momento estético do Modernismo, mas sim uma atmosfera que acompanha todo estilo de época que venha a substituir o outro. Para Leyla Perrone-Moisés, a tradição, vista de forma canônica, "é a relação entre alguém que disse algo primeiro e alguém que veio depois e repetiu ou contestou, ficando de qualquer modo devedor de quem disse primeiro". (2006, p. 97). Assim sendo, não seria errado afirmar que Eça pôde se tornar um grande escritor porque havia por trás de si uma grande herança literária a questionar. A passagem do Romantismo para o Realismo confirma que a "evolução literária estaria ligada à substituição de sistemas provocada pelo desgaste das formas". (TINIÁNOV apud PERRONE-MOISÉS, p. 94). É refletindo a ideia de um Eça em ascensão e de um Camilo em declínio que os debates entre ambos se acirraram. Linguasagem, São Carlos, v. 23 (1): 2015 Partindo de um olhar superficial, a obra de Camilo Castelo Branco parece não privilegiar a crítica social. Contudo, sua ficção, sem dúvida, leva o leitor a refletir acerca do dilema cultural português. Por isso, concordamos com Monica Figueiredo, quando ela alerta para o risco de se comparar sua obra a dos principais autores do Romantismo/Realismo português, como é o caso de Herculano, Garrett, ou mesmo o de Eça de Queirós. Afinal, "procurar na obra de Camilo a defesa ideológica ou política de alguma bandeira é correr o risco de reduzir a sua produção à adjetivação de alienada (...) Não se pode exigir do autor aquilo que não era sua intenção oferecer." (p.1) A pesquisadora ainda afirma que Camilo foi um dos poucos autores que conseguiram reconhecimento em seu tempo e que foi com o trabalho de escritor que sustentava sua família. Por esse motivo, preocupava-se muito em agradar ao editor e ao público. Talvez também sejam fruto dessa preocupação as ácidas crítica à nova estética realista que surgia. Corrobora essa interpretação o fato de Camilo Castelo Branco ter ficado muito desgostoso por Chadron, responsável pelas suas edições de 1868 a 1883, ter se interessado em tornar-se também o editor de Eça de Queirós, oferecendo-lhe vantagens financeiras superiores àquelas que regulavam os lucros de Camilo. A verve crítica de Eça de Queirós já estava consolidada desde as publicações de As Farpas, através das quais é possível vislumbrar o futuro confronto com Camilo, devido aos ataques ao Romantismo, ao negar a suposta arte pela arte e ao fincar a bandeira contra a apoteose do sentimento. É também em As Farpas que ocorre sua primeira referência direta a Camilo. Contudo, é curioso notar que não foi para confrontá-lo, mas sim para defendê-lo. Em publicação datada de 1872, Eça toma partido de Camilo que fora acusado por um Padre por conta de uma tradução do livro O inferno, de Auguste Callet, chegando mesmo a interceder pelo autor de Amor de Perdição, defendendo sua originalidade ao tratar de assuntos teológicos. Como toda relação entre artistas contemporâneos, a rivalidade entre escritores pode atingir vários tons, estando sempre à mercê do termômetro das suscetibilidades. Levando em conta o caráter irônico da pena de cada um dos escritores portugueses em questão, cada texto redigido ao ataque da obra do outro é também uma análise muitas vezes dolorosamente irônica de duas estéticas artísticas vistas então como antagônicas. A ironia, tão presente na obra de Eça e essencial à novela humorística de Camilo, não poderia deixar de ser uma arma de que ambos dispunham durante esse confronto. Linguasagem, São Carlos, v. 23 (1): 2015 No prefácio de Azulejos, do Conde de Arnoso, Eça faz acusação aos detratores do Realismo. É possível reconhecer no texto uma clara referência a Camilo Castelo Branco ao afirmar que quem antes criticava o Realismo também se aproveita dele: "Estes homens puros, vestidos de linho puro, que tão indignamente nos arguíram de chafurdamos num lameiro, vêm agora pé ante pé enlambuzar-se com a nossa lama!". No mesmo tom, Camilo responde: "Pois eu precisaria, para ser visto, me nivelar com a espádua literária do Sr. Eça? Mas, se o fizesse, era essa a maneira de me tornar invisível." (MATOS, 2008, p. 102). De toda forma, a discussão entre os dois escritores não se estabeleceu de forma regular. Nem toda acusação ou indireta obteve uma resposta. De modo geral, mantiveram a cordialidade necessária ao conceito de civilidade tão caro à época e tiveram cuidado excessivo com as palavras que escolhiam para atacar um ao outro, pois "ambos Sab[iam] que, ao fim e ao cabo, mais importa predominar com retumbância sobre o adversário do que estabelecer com rigor a verdade que lhes assiste" (Ibidem, p. 21) Para o biógrafo e pesquisador Alfredo Campos Matos, o fato de, a partir da morte de Feliciano de Castilho em 1875, Camilo ter passado a ocupar o lugar de defensor das ideias do "patriarca das literaturas oficiais" foi determinante para seu posicionamento perante às "Ideias Novas", assim conhecidas porque resumiam os valores do então novo Realismo. A questão do trato com a linguagem parecia incomodar significativamente Camilo Castelo Branco. Ele acusava Eça de Queirós de não saber isentar a língua de imperdoáveis erros gramaticais, apontando também em O Crime do Padre Amaro equívocos históricos, como é o caso da referência à tentação de Santo Antônio no deserto ter sido na verdade sofrida por Santo Antão. Contudo, o mestre do romantismo português reconhece, sem deixar de criticar, que o público gostava de ler as obras de Eça: “Tanto importa que a matéria prima seja alabastro como guano: a estátua é bonita. Em casa de 100 leitores há 99 Basílios que se gostam de se ver retratados.” (Cammiliana e Varia, no 2, p. 81 apud MATOS, 2008, p. 65). A crítica de Camilo se muitas vezes parecia ser elogiosa, outras tantas não deixava de ser ácida: "Infelizmente Eça de Queirós não conhece ainda todos os recursos brilhantes de que pode dispor, manejada por um espírito moderno, a antiga língua portuguesa". (Ibidem, p.49) Eça, por sua vez, não deixou de lado essa acusação e em uma carta destinada a Camilo, mas só descoberta após a morte de ambos, afirmou: Eu, falando de V.Ex.cia, considero sempre a sua imaginação, a sua maneira de ver o mundo, o seu sentimento vivo ou confuso da realidade, o seu gosto, a sua arte Linguasagem, São Carlos, v. 23 (1): 2015 de composição, a fraqueza ou a força do seu traço (...) Seus amigos, esses admiram apenas em V Ex.cia secamente e pecamente, o homem que em Portugal conhece mais termos do Dicionário! (Ibidem, p.110/111) O romance mais popular de Camilo Castelo Branco, Amor de Perdição, guarda algumas questões interessantes acerca daquilo que essencialmente que motivava o confronto entre os dois escritores: Realismo x Romantismo. O narrador camiliano é parte fundamental da estrutura narrativa, suas digressões e interferências são essenciais à construção da obra. No caso do romance referido, as notas de rodapé, a fundamentação temporal, a demonstração de um trabalho de pesquisa são elementos que querem conduzir o leitor a crer na veracidade da narrativa. Por esse motivo, destaca-se a digressão do narrador no capítulo XIX, que pode parecer contraditória, ao defender que a verdade não deve ser objeto do fazer literário: "Um romance que estriba na verdade o seu merecimento é frio, é impertinente, é uma coisa que não sacode os nervos, nem a gente, sequer uma temporada. (...) A verdade! Se ela é feia, para que oferecê-la em painéis ao público!?" É interessante notar a composição do prefácio da quinta edição de Amor de Perdição. Não se pode deixar de lado o fato de o texto ter sido escrito dezessete anos após a realização da narrativa, em 1879, época em que as obras de Eça de Queirós ganhavam bastante repercussão. Camilo afirma que diferentemente de narrativas de sucesso como O Crime do Padre Amaro e O Primo Basílio, sua novela passional tem "boçal inocência de não devassar alcovas, a fim de que as senhoras a possam ler nas salas, em presença de suas filhas ou de suas mães, e não precisem de esconder-se com o livro no seu quarto de banho." No fundo, o prefácio é uma crítica que parte do discurso realista, ouso dizer quase naturalista, para confrontar justamente a estética do realismo. A escolha por um vocabulário grotesco e ao mesmo tempo cientificista e a dureza no tom da enunciação filiam o texto à própria estética criticada, como podemos ver no trecho destacado: Faz-me tristeza pensar que eu floresci nesta futilidade da novela quando as dores da alma podiam ser descritas sem grande desaire da gramática e da decência. (...) A gente imaginava que os alcouces não abriam gabinetes de leitura e artes correlativas. Ai! quem me dera ter antes desabrochado hoje com os punhos arregaçados para espremer o pus de muitas escrófulas à face do leitor! Naquele tempo, enflorava-se a pústula; agora, a carne com vareja pendura-se na escápula e vende-se bem, porque muita gente não desgosta de se narcisar num espelho fiel. Linguasagem, São Carlos, v. 23 (1): 2015 A filósofa Marilena Chauí afirma que a regra, e única regra de ação para um artista não é que sua ação seja eficaz, mas que seja fecunda, matriz e matricial. (p. 1994) Seguindo essa premissa, não importa a efetividade das discussões estabelecidas entre dois dos maiores escritores portugueses, pois sabemos que Camilo Castelo Branco e Eça de Queirós, casa um com sua maneira de enxergar a arte, promovem, através da linguagem, a ampliação dos sentidos da literatura Referências: CABRAL, Alexandre. (org) Dicionário de Camilo Castelo Branco. Lisboa: Caminho, 1989. CASTELO BRANCO, Camilo. Amor de Perdição. 22ª edição. São Paulo: Ática, 1996. COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria. Literatura e senso comum. Trad. MOURÃO, Cleonice P. B. e SANTIAGO, Consuelo Fortes. 1ª edição. 3ª reimpressão. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. CHAUI, Marilena. Merleau-Ponty: obra de arte e filosofia. In: NOVAES, Adauto (Org.) Artepensamento. São Paulo: Cia. das Letras, 1994. (p.467-490) FRUSCIONE, Joseph. Faulkner and Hemingway: Biography of a Literary Rivalry. Ohio:The Ohio University Press, 2012. FIGUEIREDO, Monica. "Na perdição do amor, a salvação da narrativa. A propósito de Amor de Perdição de Camilo Castelo Branco". (prelo) MATOS, A. Campos. A Guerrilha Literária: Eça de Queiroz / Camilo Castelo Branco. Lisboa: Parceria A.M. Pereira, 2008. PERRONE-MOISÉS, Leyla. Flores da Escrivaninha. 1ª edição. 2ª reimpressão. São Paulo: Cia. das Letras, 2006. QUEIRÓS, Eça de. Correspondências. In: Obra Completa. Volume IV. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,

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