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Uma Flor Entre O Gelo

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Por:   •  21/1/2015  •  10.127 Palavras (41 Páginas)  •  375 Visualizações

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UMA FLOR ENTRE O GELO

CAPÍTULO I

No tempo em que comecei a ir ao teatro estavam muito em moda os dramas em cinco atos com o complemento de uma farsa.

As plateias, os camarotes, as galerias e até a fleumática orquestra, depois de carpirem, com não fingida sensibilidade, as infaustas e tenebrosas aventuras do herói ou da heroína do primeiro dos espetáculos exibidos, acalmavam o sobressalto nervoso, que de tão continuados sustos lhes ficara, rindo, a bandeiras despregadas, à custa do velho iludido, tipo predileto da veia cômica de então.

O amor extemporâneo de um velho, os seus ciúmes insofridos, os seus acessos de cólera quase epiléticos e a intriga combinada contra ele entre a ingênua, vítima principal dessa paixão incômoda; o amante preferido e o criado astuto que dirigia o enredo, tentado pela bolsa recheada do galã e pela mão nívea da lacaia, propícia aos amores da ama: — tal era de fato o eterno e inesgotável tema glosado, com mais ou menos variantes, pelos Plautos e Terêncios da época.

A moda viera não sei se da Itália se da Espanha, mas generalizava-se rápida e extraordinariamente.

Beaumarchais foi um dos que a seguiram em França e com extrema felicidade; outros modelaram por os dele esses tipos genéricos, sem os quais quase não se concebia comédia, e, por mais desgraciosos que lhes saíssem os arremedos, tinham a certeza de os verem bem acolhidos.

O nosso António Xavier não se pode dizer dos mais infelizes na tentativa; o seu Manuel Mendes, de popularíssima memória, bem mereceu os aplausos que o público tão generoso lhe prodigalizou.

Por muito tempo as plateias saboreavam estes acepipes teatrais, sem que da repetição se enfastiassem.

Eram já tão seus conhecidos os personagens que custou deveras a desabituá-las deles; como que se não entendiam com outros.

Queriam-se com o seu Pantalião ou Lançarote, tutor decrépito, desastradamente apaixonado por uma ingênua pupila, que só tinha a malícia indispensável para o enganar a cada momento; reviam-se na figura elegante dos Leandros e Florindos, cujos conceituosos requebros e pieguices amorosas escutavam com ouvidos complacentes; as jovialidades e astúcias do criado, os seus diálogos equívocos com a lacaia, as suas arlequinadas e tramoias a bem da causa comum, tudo saudavam com a mais decidida e clamorosa simpatia.

A ação seguia entre aplausos contínuos o curso regular.

Cada esforço que o velho fazia para o bom êxito dos seus projetos amorosos pervertia-lho a fatalidade em desserviço deles, e na cena final, quase sempre a das escrituras, quando se preparava para dar a batalha decisiva que devia coroar-lhe a constância, não desmentida entre desenganos e reveses, todos, até o próprio tabelião, se conspiravam contra ele, o malfadado via, no meio de risadas gerais, passar a pupila para os braços do amante, que, nesse momento solene, deixava cair o nariz de papelão, valioso auxiliar da última façanha.

Entrava-se em explicações, patenteava-se à vítima a trama minuciosa da intriga e ela acabava por perdoar e, o que mais é, tomava à sua conta o moralizar o fato.

Redobravam os aplausos; o casamento final justificava os meios, nem sempre demasiado lícitos, empregados para o fazer vingar; os espectadores retiravam-se satisfeitos, e tendo por essa forma afugentado as disposições para pesadelos e sonhos angustiosos que o drama lhes produzira, ceavam bem e dormiam melhor.

Ora sucedia já então um caso extraordinário comigo; era que, ao contrário da maioria, senão da unanimidade dos espectadores, não excetuando até os incursos no mesmo ridículo que se pretendia corrigir assim, dava-me para ter pena do velho em vez de me rir das suas tribulações.

A plateia conseguia suavizar as impressões penosas do drama com as jocosas peripécias de uma paixão... macróbia; a mim ficava-me uma melancolia interior, mais duradoura e sentidamente formada; a alucinação do veterano, à voz do que a proveniente da catástrofe do quinto ato.

Não obstante os acessórios caricatos de que autores e atores sobrecarregavam esses tipos, para os quais de tão inexorável severidade era a Tália da época, eu achava-lhes não sei que de interessante e, direi até, poético, que ofuscava tudo o mais, e não me deixava rir.

Rir, porquê? Não era antes para magoar e comover o drama psicológico que, através de episódios risíveis, se desenvolvia ali? A história de uma paixão sem futuro, funesta ao coração que a alimenta, não é mais digna de lágrimas que de escárnio?

Debaixo das vestes de polichinelo, que o público iludido saudava de gargalhadas e apupos, eu não via mais do que um desgraçado; através da máscara truanesca do comediante parecia-me a cada passo divisar um olhar de tristeza que me vinha direito ao coração.

Que querem? Mau é que se façam dessas abstrações; o efeito é depois inevitável.

Experimentai por vós; não vos lembreis da casaca esguia, do calção engelhado, do sapato de monstruosa fivela, do impertinente rabicho da cabeleira, da colossal caixa do tabaco, todas as noites tirados do guarda-roupa do teatro para adornarem esses tipos, e auxiliarem o efeito cômico da produção — muita vez mais devido a tais acessórios do que ao sal que a temperava — não atenteis nas rugas profusa e burlescamente distribuídas pela mão exercitada do caracterizador; ou, melhor ainda, concebei, se podeis, aquela alma independente de todos os desfavoráveis acidentes corpóreos, e ao vê-la lutando com uma dessas paixões violentas, devoradoras, que são a sua máxima manifestação de vigor e de vida; e humilhada, ridicularizada, escarnecida, porque o corpo, que a subjuga, envelheceu primeiro do que ela; porque regelou o sangue enquanto o espírito se inflamava em impetuosas lavaredas; porque se enrugou a cara, quando o coração se expandia com maior força de afetos; dizei depois, em consciência, se tendes ânimo para vos rirdes desse espetáculo!

E a prova de que o ridículo está todo nos acessórios, de que é mais para comover e impressionar dolorosamente do que para alegrar o fenômeno moral que em tese absoluta condenavam às risadas da plateia, é que, pouco tempo depois, via-se no teatro um amor de velho, com todas as exaltações, com todas as esperanças, com todos os receios e desesperos de um amor de rapaz, e, apesar das barbas brancas do amante ancião, ninguém se sentiu disposto a sorrir.

Para salvar do ridículo a Rui Gomes da Silva do drama de Vítor Hugo, bastaram as vestes negras e severas

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