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Precondições Socioculturais Para O Aparecimento Da Psicologia Como Ciência No século XIX

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Por:   •  18/11/2014  •  6.917 Palavras (28 Páginas)  •  931 Visualizações

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Precondições socioculturais para o aparecimento da psicologia como ciência no século XIX

A experiência da subjetividade privatizada

Para que exista um interesse em conhecer cientificamente o "psicológico" são necessárias duas condições (além, naturalmente, da crença de que a ciência com seus métodos e técnicas rigoro¬sas é um meio insubstituível para o conhecimento): a) uma experiência muito clara da subjetividade pri¬vatizada; e b) a experiência da crise dessa subjetivi¬dade. Isto, à primeira vista, pode parecer muito obscuro, mas trataremos de clarificar essas ideias.

Ter uma experiência da subjetividade priva¬tizada bem nítida é para nós muito fácil e natural: todos sentem que parte de suas experiências é ín¬tima, que mais ninguém tem acesso a ela. É pos¬sível, por exemplo, ficar um longo tempo pensando se vamos ou não fazer uma coisa, quase decidir por uma e, no final, acabar fazendo a outra, sem que ninguém fique sabendo de nada. Com frequên¬cia sentimos alegrias e tristezas intensas e procuramos escondê-las. A possibilidade de mantermos nossa privacidade é altamente valorizada por nós e relacionada ao nosso desejo de sermos livres para decidir nosso destino. A experiência da solidão, ansiada ou temida, é também altamente expressiva daquilo que acreditamos ser nossa individualidade.

Ainda com maior frequência temos a sensa¬ção de que aquilo que estamos vivendo nunca foi vivido antes por mais ninguém, de que a nossa vida é única, de que o que sentimos e pensamos é totalmente original e quase incomunicável. Pois bem, historiadores e antropólogos com suas pes¬quisas mostram que essas formas de pensarmos e sentirmos nossa própria existência não são univer¬sais. Essa experiência de sermos sujeitos capazes de decisões, sentimentos e emoções privados só se desenvolve, se aprofunda e se difunde amplamente numa sociedade com determinadas características. Nossa preocupação é identificar sumariamente essas características.

Ao lermos com atenção as obras de historia¬dores, veremos que as grandes irrupções da expe¬riência subjetiva privatizada ocorrem em situações de crise social, quando uma tradição cultural (va¬lores, normas e costumes) é contestada e surgem novas formas de vida. Em situações como estas, os homens se vêem obrigados a tomar decisões para as quais não conseguem apoio na sociedade. Nessas épocas, as artes e a literatura revelam a existência de homens mais solitários e indecisos do que em épocas nas quais dominam as velhas tradições e não existem graves conflitos.

Quando há uma desagregação das velhas tradições e uma proliferação de novas alternativas, cada homem se vê obrigado a recorrer com maior constância ao seu "foro íntimo" - aos seus sentimentos (que nem sempre condizem com o sentimento geral), aos seus critérios do que é certo e do que é errado (e na sociedade em crise há vários critérios disponí¬veis, mas incompatíveis). A perda de referências coletivas, como a religião, a "raça", o "povo", a família, ou uma lei confiável obriga o homem a construir referências internas. Surge um espaço para a experiência da subjetividade privatizada: quem sou eu, como sinto, o que desejo, o que con-sidero justo e adequado? Nessa situação, o homem descobre que é capaz de tomar suas próprias de¬cisões e que é responsável por elas. A consequên¬cia desses contextos é o desenvolvimento da reflexão moral e do sentido da tragédia.

Uma tragédia se dá quando um indivíduo se encontra numa situação de conflito entre duas obri¬gações igualmente fortes, mas incompatíveis. É, também, numa situação como esta que os homens são levados a se questionar acerca de que é certo e do que é errado e a procurar na sua própria cons¬ciência uma resposta para essa questão.

No campo das artes, além do surgimento e desenvolvimento do género "tragédia", observa-se, na literatura, o aparecimento da poesia lírica. Nela o poeta expressa seus sentimentos e desejos como sentimentos e desejos particulares e muitas vezes opostos ao que a sociedade dele espera, como amores socialmente não recomendados ou mes¬mo proibidos.

As artes plásticas também testemunham o aprofundamento da experiência subjetíva privatiza¬da, seja realçando os traços particulares de seus mo¬delos, na escultura ou na pintura representativas, seja expressando de forma cada vez mais individualiza¬da a subjetividade do artista, de forma que, pela análise das obras, podemos identificar com muita segurança seu autor e mesmo especular com algu¬ma base sobre quem e como ele era. Finalmente, não podemos deixar de mencionar que o pensa¬mento religioso acompanha esse processo de subjetivização e individualização e que nos momentos de crise de desagregação sociocultural surgem no¬vos sistemas religiosos, ou variantes de antigos, e heresias que enfatizam a responsabilidade indivi-dual e atribuem à consciência e às intenções mais valor que aos próprios atos e obras.

É preciso ter claro que esse movimento na direção de um aprofundamento da experiência subjetiva privatizada não foi um processo linear pelo qual tenham passado todas as sociedades humanas. São muito importantes os estudos de antropólogos que se dedicaram a descrever e a analisar sociedades não ocidentais em que a subjetivização e a indivi¬dualização da existência permaneceram em níveis muito menos elaborados. Mesmo nas sociedades ocidentais, provenientes das tradições judaica, grega e latina, o processo foi repleto de ziguezagues. No conjunto, porém, pode-se dizer que ao longo dos séculos as experiências da subjetividade privatiza¬da foram se tornando cada vez mais determinantes da consciência que os homens têm da sua própria existência. Ou seja, nos primórdios da nossa his¬tória eram poucos os elementos de uma sociedade que podiam gozar de liberdade para se reconhece¬rem como seres moralmente autónomos, capazes de iniciativas, dotados de sentimentos e desejos próprios. Hoje, ao contrário, esta se tornou a ima¬gem generalizada que temos de nós mesmos. Ali¬ás, boa parte de nós se sente bastante incomodada quando essa crença é colocada em dúvida; resis¬timos à ideia de que não tenhamos controle de nos¬sas vidas. A crença na liberdade dos homens é um dos elementos básicos da democracia e da socie¬dade de consumo e não estamos dispostos, em geral, a pôr em risco nossos valores. Como se verá a seguir, em alguns aspectos importantes essa ima¬gem é completamente ilusória, e uma das tarefas da psicologia será talvez a de revelar essa ilusão.

Constituição e desdobramentos da noção de subjetividade na Modernidade

Como

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