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HISTORIA DO DIREITO BRASILEIRO

Por:   •  30/5/2015  •  Pesquisas Acadêmicas  •  3.829 Palavras (16 Páginas)  •  173 Visualizações

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Artigo para NO.

escrito em 26, 27 e 28 de junho, 2000.

Polícia, Homofobia e Democracia

                                                                                      Luiz Eduardo Soares

                                                               (Visiting Scholar de Columbia University e      

                                                           Pesquisador do Vera Institute of Justice, New York)

        A 5a Avenida estava coalhada de gente, desde a rua 52 até a Washington Square, neste domingo ensolarado, 25 de junho.  As pessoas se acotovelavam nas calçadas, buscando um ângulo melhor para ver e aplaudir o desfile que celebrava o dia do orgulho gay.  The Parade, a parada, como é chamada em New York, prescinde de adjetivos para ser identificada porque já faz parte do calendário da cidade e tem lugar garantido na cultura cívica dos Estados Unidos.  Dos prédios residenciais, as janelas espiavam o espetáculo político-carnavalesco, apinhadas de curiosos, alguns mais entusiastas que observadores.  Durante várias horas, o desfile só era interrompido para a passagem do tráfego que cruzava a cidade no sentido leste-oeste e não poderia ser retido indefinidamente, sob pena de causar um transtorno mais espetacular do que a parada.  A paciência de ambos os lados era surpreendente para um brasileiro: a marcha suspendia seu fluxo, obediente e resignada, para que os carros cruzassem a pista, retribuindo a tranquilidade com que esses aguardaram sua vez, acumulando-se nas ruas transversais.  O ritmo entrecortado pela gramática do trânsito era já um bom exemplo de um importante preceito democrático: o cumprimento de regras legítimas e equânimes gera tolerância e propicia o convívio harmonioso das diferenças.  

Cada grupo de manifestantes –eu quase disse, cada bloco—trazia sua mensagem e expressava a adesão de um segmento da população à causa das minorias sexuais: desfilaram representantes de instituições de pesquisa, religiosas, filantrópicas, fundações, ONGs, hospitais e associações dos mais diversos tipos, desde aquelas que se dedicam à proteção dos jovens, das crianças, dos negros, dos latinos, dos asiáticos, dos judeus, dos idosos, dos migrantes, até as que se devotam à defesa dos desempregados e sem-teto.  Havia grupos nacionais também: os peruanos, os irlandeses e os poloneses eram os mais numerosos e animados.  Alguns grupos limitavam-se a celebrar sua identidade gay, ostentada com orgulho e referida a um processo de conquistas progressivas, desde os anos 60, indissociável da própria história dos direitos civis, no país de Harvey Milk e Marthin Luther King.  Outros defendiam propostas específicas ou expunham a forma própria de engajamento em ações solidárias: contra a pena de morte; pelo reconhecimento legal do casamento entre homossexuais; pela igualdade de direitos, em todas as esferas da vida social; por mais investimentos em pesquisas sobre a AIDS; pelo apoio às populações mais pobres do terceiro mundo; pela proteção dos sem teto; pelo controle dos preços dos remédios contra a AIDS, nos países pobres da África.  Tudo isso com muitas cores, música, dança e algumas cenas de nudez e exaltação erótica, típicas dos rituais que carnavalizam e invertem os comportamentos cotidianos.

Havia também os grupos profissionais: professores, médicos, sacerdotes das mais diversas tradições, advogados e juízes, enfermeiros, escoteiros e militares, artistas, etc…  “Hate is not a family value” (“Ódio não é um valor da família”), proclamavam alguns cartazes portados por religiosos que se contrapõem à ultraconservadora Christian Coalition (Coalisão Cristã), defendendo a expansão do conceito de família e o culto de alguns de seus valores, reinterpretados à luz do contexto cultural contemporâneo: a solidariedade, a fraternidade, a tolerância, o cuidado com o outro e o amor.  As famílias também estavam presentes: casais homossexuais com seus filhos; pais que exibiam seu orgulho pelos filhos homossexuais; irmãos, primos, tios proclamando sua solidariedade.  Grupos da terceira idade, repudiando o preconceito de que são vítimas (referido como “agism”) e afirmando sua opção gay, traziam consigo o fio de uma história atormentada e vitoriosa, e eram recebidos com muitos aplausos.

        Os grandes destaques da parada, que provocaram as reações mais calorosas, foram a primeira dama, Hillary Clinton, candidata democrata ao Senado, pelo estado de New York, o Prefeito da cidade, Rudolf Giuliani, e um grupo profissional que teria tudo para manter-se distante daquele festival: os policiais.  As calçadas vibravam quando passava o bloco dos policiais, organizados na GOAL (Gay Officers Action League).  A confraternização era contagiante.  Para evitar o risco de uma generalização equivocada, acompanhei os policiais ao longo de quase 1 km, observando a receptividade.  A saudação entusiástica era constante e homogênea.  As bandeiras multicoloridas, ícones da comunidade gay, eram erguidas mais alto; os gritos e acenos sublinhavam o encontro ainda improvável, há alguns anos inconcebível.  Os homens e mulheres do famoso, eficiente e circunspecto Departamento de Polícia de New York desfilavam uniformizados ao som de sua banda, acenando com a mesma alegria com que eram acolhidos pelo público.  

Difícil não se emocionar com aquele espetáculo, quando se tem em mente seu significado e a história que simboliza.  Há três décadas, as minorias sexuais eram frequentemente agredidas  pela polícia, nos EUA.  A sodomia era crime, em muitos estados, e o código penal mantinha viva e ativa a memória obscurantista e discriminatória dos séculos passados.  A reinvenção de si através da construção de identidades transsexuais, a criação de novos estilos de vida, de novas formas de gregarismo pela via surpreendente dos jogos performáticos que mobilizam a linguagem erótica, as simples opções homossexuais, nada disso era compreensível e admissível, há trinta anos.  A polícia era o instrumento por excelência da intolerância.  

Um episódio violento foi o marco das mudanças.  Em 1968, cansados de ser humilhados e espancados pela polícia, os homossexuais que frequentavam o bar Stonewall, situado em Houston Street, na fronteira sul do Village, na cidade de New York, rebelaram-se e resolveram, coletivamente, enfrentar a polícia, resistir e manifestar sua indignação.  Para a opinião média americana daqueles dias, eles não passavam de um punhado de arruaceiros e pervertidos, que deviam ter vergonha de si mesmos e se regenerar.  Para a polícia, eram vândalos e baderneiros que mereciam uma lição.  Trinta e dois anos depois, os herdeiros do legado de Stonewall exibem com orgulho o estilo de sua afeição e celebram, em paz, sua liberdade de amar.  Recebem a adesão da Primeira-Dama, de personalidades consagradas, de instituições públicas e privadas, e os aplausos dos que não precisam ser homossexuais para reconhecer as virtudes democráticas de suas conquistas, entre as quais se inclui uma polícia comprometida com o respeito aos direitos civis e humanos, a despeito de suas próprias contradições.  Afinal de contas, a homofobia é um dos principais sintomas da barbárie; por outro lado, o convívio com a diferença traduz amadurecimento civilizatório.

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