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O CASO HAKANI E A UNIVERSALIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS: limites e possibilidades do(s) discurso(s) ético-humanista(s)

Por:   •  20/10/2017  •  Trabalho acadêmico  •  3.868 Palavras (16 Páginas)  •  352 Visualizações

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O CASO HAKANI E A UNIVERSALIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS:

 limites e possibilidades do(s) discurso(s) ético-humanista(s)

Rogério Baulé / Luiz Cláudio

1. SINÓPSE

Nascida em 1995, na tribo dos índios Suruwaha, que vivem praticamente isolados no município de Tapauá, no Sudeste do Amazonas, Hakani foi condenada à morte, seguindo uma tradição da tribo, após 2 anos de vida, juntamente com seu irmão Niawi, um ano mais velho, porque ambos não se desenvolviam no mesmo ritmo das outras crianças, apresentando dificuldades para se locomoverem e se comunicarem.

Requeridos para executarem o ato, pelo chefe da tribo, e inconformados com o que deveriam fazer, seus pais prepararam o timbó, um veneno obtido a partir da maceração de um cipó, e ao invés de cumprirem a sentença imposta, ingeriram eles mesmos a substância letal, cometendo o suicídio.

O duplo suicídio não foi bem recebido pela tribo, e seu pajé e seu chefe pressionaram o irmão mais velho de Hakani, Aruwaji, então com 15 anos, a cumprir a tarefa de dar cabo a vida dos caçulas. Ele atacou-os com um porrete e os enterrou ainda vivos, mas Bibi, seu irmão mais novo, então com 9 anos, ouviu Hakani chorar, reabriu a cova e retirou a irmã. Ao ver a cena, Kimaru, um dos avôs, pegou seu arco e flechou Hakani no peito, porém não conseguindo o intento de dar cabo à sua vida. Tomados de pavor pela sobrevivência da menina, Kimaru e Aruwaji também se suicidaram com o timbó.

Mesmo com enormes dificuldades decorrentes de sua parca idade Bibi cuidou de Hakani por 3 anos, já que a tribo a tratava quase como a um bicho, quando então procurou ajuda junto a um casal de missionários protestantes, membros do JOCUM – Jovens Com Uma Missão, Márcia e Edson Suzuki, que trabalhavam na evangelização dos Suruwahas. Os missionários encontraram enormes barreiras por parte dos órgãos oficiais para oferecer a Hakani o tratamento de saúde, longe da tribo, no Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto, interior de São Paulo, onde foi finalmente efetuado o diagnóstico de desnutrição severa, decorrente de hipotireoidismo congênito, como causa do retardo no desenvolvimento da criança. Iniciou-se um tratamento de cura, que em poucos meses permitiu a recuperação da menina.

O casal de missionários solicitou, então, a adoção de Hakani, mas esta foi dificultada e postergada de todas as formas pelos órgãos tutores de índios, inclusive a FUNAI, face a pareceres do antropólogo Marcos Farias de Almeida, do Ministério Público Federal, negativos às intervenções dos missionários, sob alegação de que o infanticídio indígena seria “uma prática cultural repleta de significados” e que impedir a morte de Hakani seria uma ameaça à cultura Suruwaha.

A adoção foi finalmente oficializada, por sentença do Juizado da Infância de Manaus, somente quando a menina já tinha 10 anos de idade.

Hoje Hakani, perto de completar 20 anos, é uma pessoa normal e saudável, que vive com os pais adotivos em Brasília.

2. FUNDAMENTAÇÃO

O debate acerca do assassinato de crianças indígenas em tribos no Brasil, principalmente o infanticídio (assassinato das crianças em seu primeiro ano de vida), por motivos culturais, ganhou importância nas últimas décadas em função de alguns fatos que ganharam notoriedade na mídia nacional e, consequentemente, relevo popular. Essa prática, no entanto, remonta de séculos, mas o seu conhecimento pela maioria da população brasileira não deve ultrapassar 15 ou 20 anos.

Nos estudos que vem sendo realizados, apontam-se vários motivos para a prática, segundo as tradições indígenas.

ADINOLFI (apud SOUZA SILVA, 2013), entre outros, aponta que o primeiro deles estaria relacionado ao nascimento de filhos gêmeos, o que imporia à mãe uma maior necessidade de dedicação, e por esse motivo a tribo obriga o sacrifício de ambas as crianças ou uma delas. Na visão indígena, a mãe não conseguiria conciliar as tarefas a ela impostas pela família e pela comunidade, tanto fora como dentro da casa, com o dispêndio adicional de cuidados aos filhos.

O segundo tipo de infanticídio estaria ligado à incapacidade da criança em sobreviver ao ambiente físico e sócio-cultural da comunidade onde vive, sendo necessário aqui considerar o significado de vida para alguns grupos indígenas (Xingu, Suruwaha e Yanomami), que certamente difere do conceito aplicado nas comunidades brancas: segundo eles, a vida se traduz apenas quando a criança nasce e se desenvolve sem deficiências física ou mental, caso contrário a criança incapacitada não teria condições de sobreviver na comunidade, visto que estaria impossibilitada de pescar, caçar e interagir com os membros da tribo, tornando-se dependente dos demais integrantes e a estes prejudicando, destoando dos padrões definidos culturalmente aceitáveis.

A terceira causa do infanticídio estaria ligada ao sexismo, e é praticada entre os Suruwaha, atingindo em sua grande maioria as crianças do sexo feminino, haja vista que as meninas são rejeitadas em comunidades patriarcais, patrilineares e patrilocais, que desvalorizam o gênero feminino. Do lado oposto, muito valorizam o sexo masculino, por seu maior potencial para o trabalho de pesca e caça, em virtude da força física.

Não é possível deixar de apontar, também, o nascimento de crianças gestadas por mulheres solteiras ou como fruto de relações ilegítimas: para algumas tribos indígenas não é admissível a permanência da criança na comunidade, principalmente se for do sexo feminino, pois seria imprescindível para sua criação a presença do pai e da mãe. Quando há o nascimento de um bebê do sexo masculino, ele poderá até ser aceito pela comunidade sob o argumento de ser útil em razão do sexo (na realização de trabalhos de caça e pesca), mesmo sem ter reconhecimento paterno, porém terá status social inferior aos demais membros da tribo, não desfrutando de iguais direitos ou respeito dentro da comunidade. Nas culturas indígenas, cabe ao pai, principalmente, a responsabilidade social pela transformação pública do filho de “corpo aberto” em um parente de “corpo fechado”, ou seja, a transformação em um ser social. Um filho sem pai é o pior insulto possível nessas comunidades, e um motivo plenamente aceitável para o infanticídio (HOLANDA, apud SOUZA E SILVA, 2013).

Vários relatos dão conta de que quando uma criança nasce segundo as situações citadas, a comunidade indígena obriga a família a tirar-lhe a vida se não houver consenso entre os membros da tribo para sua permanência na comunidade. Tal prática traz um sofrimento tão elevado para a mãe, o pai e a família, que muitos acabam não sendo capazes de tirar a vida da criança e se suicidam (SOUZA E SILVA, 2013), como no caso de Hakani.

O infanticídio é historicamente uma das maiores causas de mortalidade em diversas tribos indígenas que habitam o Brasil, sendo inclusive, em alguns casos, o grande responsável pela rápida diminuição da população dessas tribos na atualidade, e não é um fato isolado, sequer residindo em um passado distante. É uma experiência atual e “demanda, em si, uma avaliação antropológica isenta de partidarismo ou remorsos, que venha a observar este fato e suas implicações sociais para aqueles que o experimentam bem como os que o observam” (LIDÓRIO, 2012).

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