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“Mitologia” e “Cosmologia” Kyikatêjê, práticas religiosas e organização social

Por:   •  15/4/2016  •  Artigo  •  20.138 Palavras (81 Páginas)  •  585 Visualizações

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Apresentação

O presente trabalho corresponde a uma série de reflexões advindas de minha experiência como antropólogo junto ao povo Kyikatêjê, ao longo do período que compreende os anos de 2007 a 2009, quando tive a oportunidade singular de observar, como pesquisador (em campo), a vida e as representações culturais (mitos, etc.) deste grupo indígena da Amazônia paraense.  O material coletado naquele momento serviu-me de apoio à minha Dissertação de Mestrado, sustentada nos interstícios do Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD) da Universidade Federal do Pará (UFPA) e, agora, serve-me de apoio na finalização deste Trabalho de Conclusão de Curso para a obtenção do grau de Bacharel em Teologia pela Faculdade Pan Americana (Capanema/Pará).

Enquanto em minha Dissertação advertia para a importância de se considerar a relação entre as categorias de “terra indígena” e de “etnicidade”, como uma maneira de se compreender os usos e a proteção da floresta pelos Kyikatêjê; neste introito generalístico acerca do mito de origem (mito de fundação ou mito fundacional) de Pyt (Sol) e da cosmologia do povo-dono-líder-da-cabeceira-do-rio-Tocantins, procuro descrever como os processos sociais atuais de afirmação das marcas identitárias permitem abordar tanto a percepção, quanto as representações religiosas tradicionais de um importante coletivo indígena, sem, com isso, dispensar a compreensão êmica do povo Kyikatêjê, relativamente ao seu lugar no mundo como povo da floresta, descrevendo-se, assim, um “religare” que, ao mesmo tempo que é antropologicamente diferenciado, também é sintomático da persistência da “consciência mítica”, a despeito do contato histórico e, portanto, de longa data com a sociedade branca e da conversão de muitos dos indígenas desta ascendência terem se convertido a algumas denominações neo-penteconstais.

Apesar disto parecer muito significativo, é necessário frisar que o mito, no que diz respeito a sua “resistência” diante o contato em suas múltiplas direções, demostra o quanto a “lógica” de apreensão e significação da realidade pelos Kyikatêjê se orienta a partir de outros pressupostos que estão imbricados quer na organização social deste grupo, quer, ainda, em sua constituição político-jurídica atual. Desta feita, o presente texto, muito embora se afaste do que comumente se realiza em Teologia no que concerne à pesquisas de natureza teórica, dispõe-se a analisar a expressão ressignificada da vida simbólica e, também, religiosa do povo Kyikatêjê, utilizando-se, para isso, de alguns pressupostos da Antropologia Cultural, ainda que não se trate necessariamente de uma etnografia no sentido estrito do termos.

De todo modo, a pesquisa com povos indígenas e populações etnicamente diferenciadas permite compreender não só a estrutura social desses mesmos povos (ou grupos culturais), mas também permite vislumbrar a dinâmica de interação entre os índios[1] e àquilo que Cardoso de Oliveira (1964)[2] chama de o mundo dos brancos. Portanto, discutir os usos e a proteção da floresta pelos Kyikatêjê significa, em primeiro lugar, compreender os resultados da interação deste povo com a sociedade brasileira, e, subsequentemente, compreender a manutenção de práticas e valores tradicionais que, por sua vez, constituem a identidade Kyikatêjê. Inserida no contexto da Reserva Indígena Mãe Maria (RIMM), em Bom Jesus do Tocantins, sudeste do estado, a aldeia Amtatí, isto é, a aldeia dos Kyikatêjê configura-se num instigante campo de análise; pois, além de expressar situação de contato, demanda também situação de reelaboração cultural, em vista das trocas interétnicas operadas entre o povo-líder-dono-da-cabeçeira[3] e os demais grupos presentes na Reserva.

Numa síntese dos trabalhos que desenvolveu ao longo de anos de pesquisa junto aos melanésios das Ilhas Trobriand – arquipélago situado no Pacífico Sul – Bronislaw Malinowski (2003)[4] assenta que, durante muito tempo, as teorias antropológicas defenderam que, entre os “selvagens”, haveria uma espécie de submissão automática aos costumes, o que prescindiria de aparatos legais constituídos para exercer a sanção, visto que incentivos psicológicos e valores difusos contribuiriam para o cumprimento de regras e normas coletivamente aceitas. Porém, na opinião do célebre antropólogo, esta situação se justifica apenas na medida em que se tenta comparar, equivocadamente, a dinâmica do pensamento “tribal” à lógica do Direito Ocidental, avaliando-se aquele pela ótica deste.

 

Se, como diz Malinowski referindo-se a E. Sidney Hartland, em Primitive law, “[o] selvagem está longe de ser a criatura livre e desimpedida de Rousseau” (2003: 15), é porque, de fato, ele é um ser humano como outro qualquer: sujeito a paixões e, também, a restrições. O que pretende, então, Malinowski com esta observação? Indicar, simplesmente, que a “lei” e as forças legais de grupos etnicamente diferenciados possuem validade interna e que, por seu turno, variam tanto no espaço, quanto no tempo. Por isso é que:

“[q]uando começamos a investigar por que as regras de conduta, por mais duras, fastidiosas e desagradáveis que sejam, são obedecias; o que faz com que a vida privada, a cooperação econômica e os eventos públicos ocorram de maneira tão uniforme; no que, em suma, consistem as forças da lei e da ordem entre os selvagens... – a resposta não é fácil, e o que a antropologia tem a dizer está longe de ser satisfatório. Enquanto se podia sustentar que o “selvagem” era realmente selvagem e seguia apenas intermitente e folgadamente a frágil lei que possuía, não havia problema. Quando a questão se tornou real, quando ficou claro que a hipertrofia de regras e não a falta de leis era característica da vida primitiva, a opinião científica mudou-se para o extremo oposto: além de passar a ser visto como cidadão obediente à lei, o selvagem tornou-se um axioma que, submetendo-se a todas as regras e grilhões tribais, segue a tendência natural de seus impulsos espontâneos, e, por assim dizer, desliza ao longo da linha de menor resistência.” (2003: 15)

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