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O FIO DO RELATO E SUA IMPORTÂNCIA PARA A APLICAÇÃO DA LEI 10.639-03: Construção de saberes no Torrão Mupi nas narrativas de tia Branca Rosa

Por:   •  4/12/2015  •  Relatório de pesquisa  •  2.314 Palavras (10 Páginas)  •  469 Visualizações

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O FIO DO RELATO E SUA IMPORTÂNCIA PARA A APLICAÇÃO DA LEI 10.639-03: Construção de saberes no Torrão Mupi  nas narrativas de tia Branca Rosa

Alice Moreira de Souza Sobrinho[1]

Telma Luzia Braga de Souza[2]

GT 1:  A LEI Nº 10.639/2003 E A FORMAÇÃO DE PROFESSORES

Resumo

GT 1: A LEI Nº 10.639/2003 E A FORMAÇÃO DE PROFESSORES

OBJETIVOS DA PESQUISA

LÓCUS E ESPAÇO TEMPORAL

O Torrão-Mupi faz parte do distrito de Janua-Coeli, atualmente a comunidade categorizada como Vila, está acerca de 30 minutos da área urbana de Cametá, fundada provalmente em 1800. O crescimento populacional deu-se nos 80 e 90 durante a plantação de pimenta do reino. A vila possui 1.500 habitantes, com cerca de 300 famílias, com casas organizadas em quatro ruas principais, as margens do rio Mupi. No que tange o setor econômico, a agricultura, embora já perdendo espaço, ainda é uma atividade bastante difundida, com plantações de bacuri, arroz, milho, além da plantação de mandioca e a produção de farinha. Sobre a organização social e política é embasada nas comunidades cristãs apoiadas pelas seguintes associações, a saber: Associação dos Moradores do Mupi (AMMUP); Associação de Preservação do Meio Ambiente do Rio Mupi-Baixo (APREMARMUB); Associação de remanescentes de Quilombos do Mupi (ARQUIM).

As visitas a comunidade foram iniciadas em fevereiro de 2015, já nesse momento fomos encaminhadas a casa da tia Branca Rosa, que já nos recebeu com muito resoeito e calor humano, certamente não fora a delicadeza daquela mulher de 94 anos, nascida em Igarapé-Miri, e participou da vida agrícola da comunidade, um dos grandes subsídios de subsistência econômica.  Traz em sua trajetória uma resistência velada, marcada por seu ato de servir constantemente. Desde o início de nossa convivência com Dona Eusébia Vieira Mendes (dona Branca Rosa), mulher de traços fortes que traz consigo já no primeiro olhar as marcas que servem como rastros deixados pelo sofrimento imposto pelos maus tratos que aos poucos, mais tarde, suas narrativas me nos confimaria. Uma mulher de aproximadamente 1,50 de altura encurvada pelo que ela denomina de “peia com tudo quanto” com um andar carregado, mas com passos que afirmam que ela sobreviveu, enquanto seus algozes, já não tiveram o mesmo privilégio, isso muitas vezes me foi repetido, quase como um canto de despojo de guerra, um canto de quem sobreviveu para narrar que eu considero fatos da abolição tardia no Pará.

Como coloca a testemunha no relato narrado abaixo, dormia somente após ajudar a fechar a venda que pertencia aos seus senhores:

Hum. Quando era onze horas ou meia-noite meu compadre mundigo fechava a loja e eu com sono que só até ele acabar de fechar, até agasalhar tomar banho, pra jantar. Depois dele jantar tinha que lavar toda a vasilha limpa pra deixar. Uma hora, duas horas da madrugada eu ia dormir aquele pedacinho, demora ela me chamava. Se não me levantasse logo era bordoada.

N: Eu apanhava, apanhava de sandália, sapato, chinelo, cuia, vassoura, tudo, umbigo de boi[3]

E: O que é umbigo de boi?

N: Umbigo de boi é o umbigo de boi, do bicho do boi parece eu digo que é o umbigo do boi. Eu falo umbigo do boi, se sai daquele do boi só pode ser umbigo do boi

E: É como se fosse o chicote

E: É um chicote?

N: Parecia um pau assim

E: Maltrata o corpo?

N: Quando eu custava levantar eram duas ou três rimpadas, "lep" (imitou o som), que a modo que eu tava até botando pimenta.

 Dona Eusébia Vieira Mendes, chegou à comunidade do Torrão Mupi com 11 anos de idade, quando fugiu seminua da casa onde era mantida sobre surras e maus tratos, sem direito a nada, a não ser apanhar como ela narra, o ano citado é de 1934. No entanto, como foi registrada somente na década de 70, todos do local consensualizam que ela deve ter bem mais do que os 94 anos que seu registro de nascimento afirma, Tia Branca Rosa como faz questão de ser chamada, é pessoa das mais respeitadas em Cametá, se orgulha de dizer que todos na comunidade tomam sua benção, em quanto conversávamos em uma ocasião meninos teimavam em pular no rio em frente sua casa, bastou um  “api, vão é pra lá” que todos correram de cabeça baixa, pois era a voz considerada de forma unanime a mãe da Comunidade. Traz consigo um passado de muitos maus tratos, castigos, violações das mais absurdas possíveis, como as que relata abaixo no momento que foi indagada se considerava ter vivido um processo de escravidão:

Eu considero. Porque eu não posso considerar. Dizer não nunca fui escrava. A gente nunca foi uma coisa quando a gente não passa por ela, mas passando, é a mesma escravidão, né? Quase sem roupa, quase sem nada, sapato nunca vi. Vi depois de eu crescer e trabalhar e sair de lá. Que o resto, nada, nada, nada, nada.

No entanto ela resistiu, aprendeu a arte de “aparar crianças”, cozinhar, cuidar da terra e com esses saberes em um lugar onde mandavam Coronéis como Hildebrando Nunes, construiu sua casa sem paredes coberta de palha e atualmente de alvenaria, como ela faz questão de frisar, mas na frente do rio Mupi, que em seu processo de aguas baixas e altas, torna-se pêndulo que mede o passar do tempo no local. Lá, tia Branca perdeu, ganhou, mas acima de tudo, resistiu e hoje tem em suas narrativas partículas que juntas a outras se unem em um grande processo de miscigenação formando a cultura e o povo do Torrão Mupi.

Nesse contexto pesquisar a da micro história de Dona Eusébia é pesquisar todo um processo escravocrata que se estende além de datas, pois se estende através de processos sociais, falar,  é bem mais do que trazer a existência pelo verbo,  é não calar pela omissão,  é considerar  que Dona Eusébia, viveu, resistiu para nos presentear com o que  Marc Bloch chama de “dar a vida” através de relatos das testemunhas:  

Entretanto, quando os fenômenos estudados pertencem ao presente ou ao passado muito recente, o observador, por mais incapaz que seja de forçá-los a se repetir ou de infletir, a seu bel-prazer, seu desenrolar, não se encontra do mesmo modo desarmado em relação a suas pistas. Ele pode, literalmente, dar vida a algumas delas. São os relatos das testemunhas. (BLOCH, 2002, p.53).

 Dona Branca Rosa”, como é conhecida na vila, ela se torna incansável na sua busca por doar seus conhecimentos tradicionais, sejam eles dados na cozinha, onde ela só come após seus visitantes. Seja no manuseio de ervas curativas, doadas a todos os moradores da vila e os que visitam e dormitam na sua casa, seja no seu café, sempre pronto e quente, disponível para qualquer pessoa que chega a sua casa. Dona Branca Rosa despertou nosso interesse como fonte oral por trazer com ela a memória do “velho”, viva e presente a cada gole de café por ela oferecido, em cada relato sobre o espaço do meio em que vive, pois rememora as suas histórias de abusos e trabalho escravo, trazendo, de igual modo, não uma passividade, mas uma resistência dada no cotidiano, capaz de transgredir os empecilhos de uma realidade que sempre negou seus direitos.

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