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A tarefa da humanização

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Por:   •  12/12/2014  •  Tese  •  2.108 Palavras (9 Páginas)  •  212 Visualizações

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Moral, Ética, Lei.

“O destino do homem, quando fiel à sua situação, quer dizer, fiel a seu destino concreto, é impor ao real seu projeto pessoal, dar sentido ao que não o tem; extrair o Logos do inerte, brutal e i-lógico, converter isso que ‘há aí a seu redor’ em verdadeiro mundo, em vida humana pessoal”.

JuIián Marías

1. O desafio da humanização

O ser humano é essencialmente incompleto. É um projeto, cuja existência é um permanente processo de complementação. O humano no homem não é um dado biológico fixo, mas um patamar de existência a ser conquistado.

A incompletude humana pode ser facilmente sentida. Não se encontram pessoas completamente satisfeitas com seu estado atual ou situação de vida. A satisfação de uma aspiração é o trampolim para o desejo de uma nova situação. É as¬sim com o salário que se recebe, com o circulo de relações que se cultiva, com a casa em que se vive, com os conhecimentos que se têm. Até mesmo a extensão da vida humana biológica é insatisfatória: aspira-se à eternidade...

A necessidade de complementação é parte congênita da natureza humana, pois está lá, ainda que dela não se tenha consciência. Esse movimento inato é identificado como “im¬pulso de atualização de si”. Mohana o descreve como “energia que empurra todas as potências vitais de dentro de nós, expri¬mindo-as em formas de vida. Essa energia que faz com que eu hoje manifeste, sem precisar saber como, todos os sinais de vida que a pedra não manifesta”.

A humanização se faz na mudança para o crescimento. É pela negação do estado atuar de coisas que cada individuo humano complementa-se e cresce. A humanização se dá pelo suprimento de necessidades que sentimos, quando fazemos algo com nosso atual estado. Com efeito, agimos de forma a suprir carências, necessidades sentidas, no nível biológico, social e transcendental, os três componentes primários geradores de toda a atividade humana.

Caracterizado como animal racional, o ser humano é ca¬paz de duas esferas de atividade: prática (animal) e teórica (racional). Animais são capazes de dois mecanismos básicos para a produção de respostas às suas necessidades: o mecanismo instintivo, que atua pela pura utilização dos impul¬sos naturais de que é dotado; o mecanismo automático, uma “rotina” nele incutida, geralmente pelo homem. Como para qualquer outro animal, para o homem a rotina é um conjunto bem-vindo de atividades, escolhidas e mantidas, entre todas as outras atividades, por demonstrar certo grau de eficiência/eficácia. Ações instintivas e/ou rotineiras constituem-se no ní¬vel prático de atividade do ser humano, seu nível existencial de vida.

Seres racionais, entretanto, são capazes também de pen¬sar, isto é, são capazes de transformar necessidades sentidas em problemas e de gerar soluções para os problemas. Em seguida, é capaz de escolher, pelo ato voluntário-racional do arbítrio, qual dentre as soluções geradas lhe parece a melhor resposta a ser aplicada à necessidade geradora inicial. Ações racionais constituem a atividade teórica do ser humano, o ní¬vel intelectual da vida.

Ação teórica e ação prática são indissociáveis no homem, como o são sua animalidade e racionalidade. Na verdade, a função essencial da razão humana é melhorar a vida; da teo¬ria, aprimorar a prática; da racionalidade, melhorar o animal humano.

Dai o desafio maior da vida de cada indivíduo humano, que se apresenta como três momentos: 1. conhecer as neces¬sidades de que é portador, ou seja, ser capaz de responder à pergunta: “De que preciso?” 2. conhecer as potencialidades, isto é, aquilo que pode ser utilizado para suprir as necessida¬des. Deve ser capaz de responder à pergunta: ‘De que dispo¬nho?” 3. estabelecer, então, relações adequadas entre as ne¬cessidades e as potencialidades.

A satisfação individual garante-se pelo ajuste adequado entre necessidades e potencialidades. Um conjunto significati¬vo de satisfações garante a sensação de realização; um con¬junto significativo de realizações é aquilo que se denomina estado de felicidade. Concomitantemente, necessidades podem não ser satisfeitas de forma adequada, o que gera frustração. Um conjunto significativo de frustrações é aquilo que se denomina estado de infelicidade. Importante ressaltar a pre¬sença dos dois estados finais na vida do ser humano. O esta¬do de felicidade não é incompatível com o estado de infelicida¬de no mesmo ser humano: são momentos dialéticos do pro¬cesso de realização.

2. Moral

A atividade humana, prática e teórica, se estabelece e permanece, naqueles seus aspectos consiierados válidos para a complementação do projeto humano. Ao conjunto escolhido e organizado de problemas, soluções e respostas que a hu-manidade gerou para si dá-se o nome de cultura humana.

Entre as várias possibilidades de atividade, apresenta¬das pela cultura humana, há aquelas julgadas melhores e aque¬las julgadas piores. As melhores são aquelas indicadas como mais eficazes para a realização dos individuos; piores são aquelas menos eficazes ou, eventualmente, ruinosas para a realização ou bem do homem. O julgamento e a conseqüente indicação ou escolha das ações se faz pela noção de justiça, entendida como o critério distributivo do bem (das possibilida¬des de realização). Uma ação é julgada boa, porque justa, isto é, distribui o bem de maneira satisfatória; é má, porque injusta, isto é, distribui o bem de maneira insatisfatória ou danosa à realização humana.

Moral é o conjunto de hábitos e costumes, efetivamente vivencíados por um grupo humano. Nas culturas dos grupos humanos estão presentes hábitos e costumes considerados válidos, porque bons; bons, porque justos; justos, porque con¬tribuem para a realização dos indivíduos. Atos gerados confor¬me esses hábitos serão julgados morais ou moralmente bons. Por outro lado, há hábitos e costumes considerados inválidos, porque maus; maus, porque injustos; injustos, porque atrapa¬lham ou impedem a realização dos individuos. Os atos gera¬dos conforme esses hábitos serão julgados como imorais, ou moralmente maus. Por exemplo, o casamento é um costume válido, pois, como ato constitutivo de uma família, é um meca¬nismo importante para a procriação, cuidados biológicos inici¬ais, geração de afeto para os indivíduos. Por isso, casar-se é considerado um ato moralmente bom. A propriedade privada é válida, moralmente boa, porque a julgamos necessária para a manutenção de certa forma de organização social, suposta¬mente realizadora do homem.

Note-se que compete ao grupo em questão o estabeleci¬mento de padrões para a utilização desses e de outros hábitos/ costumes, bem como os limites para sua boa ou má utilização. Julga-se, a partir dai, moral a boa utilização e imoral a má utliza¬ção dos hábitos e costumes disponíveis no meio cultural.

3. Lei

Hábitos e costumes relativos a conteúdos julgados fun¬damentais, indispensáveis para os individuos, são consigna¬dos na forma de leis. Leis são acordos de caráter obrigatório, estabelecidos entre pessoas de um grupo, para garantir justi¬ça mínima, ou direitos mínimos de ser. Por exemplo, é um cos¬tume, estabelecido a partir de certo modelo de produção, re¬munerar trabalhos desenvolvidos através de salários. Consi¬dera-se justo e bom valorizar o trabalho desenvolvido. Mas, qual é o limite financeiro de tal valorização? Quanto mais, melhor. Quanto menos, pior. Torna-se necessário estabelecer, portanto, um salário mínimo, um acordo financeiro que indi¬que o indispensável para que se pratique justiça mínima...

É claro que, quanto maior o volume de indivíduos envol¬vidos nos acordos, maior a complexidade do conjunto legal que produzem. Por isso, o sistema judiciário de um pais é com¬plexo: suas leis envolvem interesses tão variados quanto são variadas as necessidades dos seus cidadãos.

Importante ressaltar que a lei não é a justiça, ou seja, o cumprimento da lei não é o máximo que os indivíduos conse¬guem desenvolver em prol da própria realização. É apenas um instrumento para fazer justiça, enquanto encarregada de ga¬rantir justiça mínima.

4. Moral e Lei: diferenças e semelhanças

Oriundas das mesmas necessidades, lei e moral assemelham-se e, ao mesmo tempo, guardam entre si diferenças importantes. São, por um lado, semelhantes porque:

• lei e moral são ambas instrumentos de justiça;

• lei e moral são humanas, pois originam-se das ne¬cessidades humanas;

• lei e moral são históricas, pois são estabelecidas a partir de necessidades historicamente despertadas;

• lei e moral são sociais, pois se apresentam como for¬ma de organização da convivência humana;

• lei e moral são questionáveis, pois valem somente enquanto capazes de promover o bem do homem;

• lei e moral dependem de instituições sociais que cui¬dem de sua preservaçao.

Diferenciam-se, por outro lado, especialmente porque:

• a moral é um instrumento informal de justiça; a lei é um instrumento formal, escrito e promulgado;

• a moral apresenta-se com possibilidades de variações no âmbito de um mesmo grupo; a lei apresenta-se como sistema jurídico único para um grupo, passível apenas de interpretações variáveis;

• a moral, ao ser rejeitada por um individuo, provoca apenas a equivalente rejeição do grupo e o eventual mal-estar típico ao transgressor; a lei, ao ser rejeita¬da e transgredida, impõe penalidades concretas ao transgressor;

• a moral é indicada como conteúdo bom ou mau a ser escolhido pelos indivíduos do grupo; a lei é imposta para o cumprimento obrigatório de todos os indivíduos do grupo.

5. Ética

A afirmação de que verdades e valores são relativos costu¬ma assustar ou, no mínimo, causar estranheza. Sem dúvida, o bem do homem é objetivo, absoluto em si mesmo. Assim como a verdade sobre o homem. Porém, o que sabemos sobre o bem do homem, isto é, o conhecimento que temos sobre ele, hoje, é rela¬tivo. Note-se que “relativo” não é sinônimo de mentiroso, duvido¬so. É apenas o antónimo de absoluto. Não está em questão, por¬tanto, o bem do homem, ou a verdade do homem, mas apenas a capacidade de indivíduos ou instituições de proclamarem-se por¬tadores incontestes da verdade final sobre o bem do homem, num dado momento de sua história. Ao contrário, ao longo da história humana, inúmeros sábios (e por isso foram sábios) mostraram-se dispostos a rever posições tidas como verdadeiras, valores tidos como válidos, diante de novas exigências da vida ou evidências da razão. A razão serve à vida, e não o contrário,

Com efeito, hábitos/costumes e acordos, isto é, a moral e a lei de um grupo, desenvolvem-se em função da interpreta¬ção do que é considerado verdadeiro e válido para esse gru¬po. Moral e lei estabelecem-se como instrumentos auxiliares da realização individual, limitados à dimensão de verdade de que certo grupo é histórica e socialmente portador. O agir de um grupo segue seu modo de conhe(ser) .

A dinâmica da vida de cada grupo humano irá grada¬tivamente suprimir certas necessidades, manter outras, criar outras tantas mais. Ou seja, novas exigências existenciais sem¬pre se apresentarão. Certas diretrizes contidas na moral e na lei poderão, então, se tornar desnecessárias; outras, continua¬rão válidas e outras ainda faltarão. É mister que o grupo refa¬ça, periodicamente, o conjunto de diretrizes, para que a moral e a lei não se tornem inúteis ou insuficientes, desgastadas pelo tempo. Por exemplo, ao promulgar a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) em 1942, a sociedade brasileira, através de seus representantes da época, julgou que, pela realidade das relações de trabalho então vivenciadas, era necessária uma diretriz legal que privilegiasse o operário mais do que o patrão. E hoje, após algumas décadas de educação e organi¬zação de classes trabalhadoras em sindicatos, associações, etc., tal escopo é ainda necessário às leis trabalhistas? Ou ainda, na época, microempresas não existam como proprie¬dade patronal. Esses pequenos empreendimentos produtivos, que hoje existem abundantemente em nosso meio, conseguem sobreviver sob a mesma carga fiscal e social que as grandes empresas?

É nesse contexto que se faz necessária a Ética. Ética é a reflexão sobre a ação humana, para extrair dela o conjunto excelente de ações. É uma ciência (reflexão), que tem por objeto a moral e a lei (referencial da ação humana), e pretende aprimorar as “atividades realizadoras de si” desenvolvidas pe¬los indivíduos, pela busca do excelente. A excelência de uma ação é julgada em função do conteúdo de justiça a que pode dar oportunidade. Por isso, ética não impõe moral e lei, mas propõe rumos possiveis para o aperfeiçoamento de ambas.

Mesmo assim, a ética tem sido utilizada como fundamen¬tação e como justificativa para comportamentos morais dese¬jados como úteis, ou convenientes. Sanchez Vázquez aponta que por causa de seu caráter prático, enquanto disciplina teórica, tentou-se ver na ética uma disciplina normativa, cuja fun¬ção principal seria a de indicar o comportamento melhor do ponto de vista moral. Mas essa caracterização da ética como disciplina normativa pode levar — e no passado freqüentemente levou — a esquecer seu caráter propriamente teórico. Certa¬mente, muitas éticas tradicionais partem da idéia de que a mis¬são do teórico, nesse campo, é dizer aos homens o que de¬vem fazer, ditando-lhes normas ou princípios pelos quais pau¬tar seu comportamento. O ético transforma-se assim numa espécie de Iegislador do comportamento moral dos individuos e da comunidade. Mas a função fundamental da ética é a mes¬ma de toda teoria: explicar, esclarecer ou investigar uma de-terminada realidade, elaborando os conceitos corresponden¬tes. (...) A pretensão de formular princípios e normas univer¬sais, deixando de lado a experiência moral histórica, afastaria da teoria precisamente a realidade que deveria explicar.

Texto extaído de: SANTOS, Antônio Raimundo de. Moral, ética, lei. IN: _______ . Ética – caminhos da realização humana. São Paulo: Ave Maria, 1997. Cap 1.

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