TrabalhosGratuitos.com - Trabalhos, Monografias, Artigos, Exames, Resumos de livros, Dissertações
Pesquisar

O Livro Uma Alma Simples

Por:   •  24/3/2023  •  Trabalho acadêmico  •  10.495 Palavras (42 Páginas)  •  48 Visualizações

Página 1 de 42

Gustave Flaubert

Durante meio século as donas de casa de Pont-l'Evêque invejaram à senhora Aubain a sua criada Felicidade.

Por cem francos por ano cozinhava, fazia o governo da casa, cosia, passava a ferro, arreava um cavalo, dava de comer à criação, preparava a manteiga e permaneceu fiel à patroa que, diga-se, não era pessoa agradável.

A senhora Aubain casara com um belo rapaz, embora pobre, falecido nos princípios de 1809, que lhe deixara dois lindos filhos e uma quantidade de dívidas.

Foi nessa altura que vendeu os bens imóveis, excepto as quintas de Toucques e de Geffosses, cujas rendas atingiam, mais ou menos, 5.000 francos.

Deixou a residência de Saint-Melaine a fim de habitar uma casa menos dispendiosa, situada por detrás do mercado e que pertencera aos seus antepassados.

Esta casa, revestida de ardósias, ficava numa travessa que desembocava no rio. Tinha, interiormente, diferenças de nível que faziam escorregar.

Um vestíbulo estreito separava a cozinha da sala de estar, onde a senhora Aubain passava quase todo o dia, sentada num cadeirão de palha, colocado perto da janela de sacada.

Ao longo do rodapé pintado de branco alinhavam-se oito cadeiras de acaju.

Um velho piano suportava urna rima piramidal de caixas e papelões, encimada por um barómetro.

Duas tapeçarias com pastorinhas ladeavam a chaminé, de mármore amarelo, estilo Luís XV, ao centro, o relógio da parede representava um templo de Vesta e toda a sala cheirava a bafio porque o soalho ficava mais baixo do que o jardim.

No primeiro andar ficava, à entrada, o quarto da Senhora, enorme, forrado a papel com flores pálidas onde estava o retrato do Senhor, em traje de cerimónia.

Comunicava com um quarto mais pequeno com duas caminhas de criança sem colchões. Seguia-se o salão sempre fechado e cheio de móveis tapados com panos.

Um corredor conduzia a um escritório. Livros e papéis atulhavam as estantes que cercavam por três lados uma longa mesa de madeira negra.

As paredes, em volta, desapareciam sob a avalanche de desenhos a tinta, paisagens a «gouaches» e gravuras de Audran, recordações de um tempo melhor e de um luxo desaparecido.

No segundo andar uma seteira, deitando para o campo, iluminava o quarto de Felicidade. Esta levantava-se ao romper da aurora para não faltar à missa e trabalhava,

continuadamente, até à noite. Depois, terminado o jantar, lavada a louça e bem fechada a porta, atiçava o fogo, lançando achas nas cinzas e, com o rosário na mão, dormia regaladamente.

Nas compras ninguém mostrava maior porfia e teimosia.

Quanto ao asseio, o brilho das caçarolas causava desespero às outras criadas.

Era muito poupada, comia devagar e apanhava as migalhas do pão caídas sobre a mesa, pão esse de doze libras, cozido expressamente para ela e que durava vinte dias.

Durante todo o ano, trazia às costas, preso por um alfinete, um lenço de chita e ocultava os cabelos numa touca, usava meias cinzentas, mantilha vermelha e sobre o colete um avental com peitilho, como as enfermeiras de hospital.

Tinha o rosto magro e a voz aguda. Aos vinte e cinco anos dava-se-lhe quarenta. A partir dos cinquenta não aparentou outra idade e, sempre silenciosa, o busto direito e gestos medidos, parecia uma mulher de madeira, funcionando automaticamente.

II

Teve, como qualquer outra, a sua história de amor. O pai, um pedreiro, morrera tendo caído de um andaime. Depois morreu a mãe, as irmãs dispersaram-se, um quinteiro recolheu-a e empregou-a, ainda de pequenina, a guardar as vacas no campo.

Tiritava sob os farrapos, bebia a água dos charcos, estendida de bruços, no chão. Foi sovada a propósito de tudo e de nada e, finalmente, expulsa por causa de um roubo de trinta soldos que não cometera. Entrou para outra quinta e serviu como encarregada da criação. Porque agradava aos patrões, as suas camaradas invejavam-na.

Numa noite do mês de Agosto (tinha então dezoito anos) os patrões levaram-na a uma festa em Colleville. Ficou aturdida, estupefacta com o alarido dos tocadores, as luzes nas árvores, a variedade de trajes, as rendas, as cruzes de ouro, a multidão que se movia.

Conservava-se recatadamente afastada quando um rapaz, de aspecto rico e que fumava o seu cachimbo, apoiando os cotovelos sobre a lança de um pequeno carro, veio convidá-la para dançar.

Pagou-lhe cidra, café, bolo folhado, deu-lhe um lenço de seda e, julgando que ela compreendia as suas intenções, ofereceu-se para a acompanhar a casa. Num campo de aveia atirou-a, brutalmente, ao chão. Ela teve medo e começou a gritar. Ele afastou-se.

Numa outra tarde, na estrada de Beaumont, ao ultrapassar um grande carro cheio de feno que avançava, lentamente, reconheceu Teodoro. Este veio ter com ela pedindo que lhe perdoasse, pois «a culpa tinha sido da bebida». Não soube que responder e teve vontade de fugir.

Depois ele falou sobre as colheitas e pessoas importantes da comuna e, visto que seu pai tinha trocado Colleville pela quinta de Ecots, eis a razão porque eram vizinhos. «Ah! » - disse ela.

Ele acrescentou que desejavam casa-lo. Mas não tinha pressa, pois esperava encontrar mulher a seu gosto.

Felicidade baixou a cabeça. Ele perguntou-lhe se pensava em casar. Ela retorquiu, rindo-se, que não era bonito gracejar com coisas tão sérias. «Mas não! Juro-te que falo a sério», e, com o braço esquerdo, apertou-lhe a cintura. Caminhava, assim, apoiada nele.

Retardaram o passo. O vento soprava brando, as estrelas brilhavam e a enorme carripana de feno oscilava na sua frente. Os quatro cavalos, arrastando os passos, levantavam nuvens de poeira. Depois, sem governo, voltaram à direita. Ele abraçou-a uma vez mais.

Ela desapareceu na sombra.

Na semana seguinte Teodoro conseguiu encontrar-se várias vezes com Felicidade, sob uma árvore isolada, ao fundo das capoeiras, por detrás de um muro. Não era inocente como as meninas recatadas - os animais haviam-na instruído; mas a razão e o instinto da honra impediram-na de cair. Esta resistência exasperou o amor de Teodoro ainda que, para satisfaze-lo, (ou talvez sinceramente) lhe haja proposto casamento. Ela hesitou em acreditar. Todavia ele fez grandes promessas.

Depressa confessou algo aborrecido: os pais, no ano transacto, haviam-no feito substituir no serviço militar por um outro homem a quem pagaram para esse efeito. Mas, de um dia para o outro, poderiam vir buscá-lo.

A ideia de servir o exército amedrontava-o.

Esta cobardia foi para Felicidade uma prova de ternura. A sua por ele duplicou. Escapava-se, de noite e, quando se encontravam, Teodoro torturava-a com os seus receios e as suas instâncias.

Por fim disse-lhe que iria à Prefeitura colher informações e trá-las-ia, no domingo seguinte, entre as onze horas e a meia-noite.

...

Baixar como (para membros premium)  txt (64.5 Kb)   pdf (195.8 Kb)   docx (37.4 Kb)  
Continuar por mais 41 páginas »
Disponível apenas no TrabalhosGratuitos.com