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Drogas Aos Quadrados

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Por:   •  17/9/2014  •  5.821 Palavras (24 Páginas)  •  320 Visualizações

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DROGAS AO(S) QUADRADO(S):

Breve estudo sobre a experiência com drogas no século xx

I

A experiência com drogas provavelmente se origine do nosso vínculo com o que Nietzsche chamou de dionisíaco e a sua necessária presença na formação da cultura. Seria ela um momento de embriaguês no qual celebramos o contato estreito com a natureza sem, contudo, a ela retornarmos. Num uso um tanto arbitrário de uma bela imagem deste filósofo, poderíamos dizer que a ela corresponde este momento em que a natureza chora o seu filho perdido. A importância social deste vínculo na constituição da cultura – que se expressa por rituais e normas de aprovação ou proibição – varia de uma a outra sociedade e nos diferentes tempos históricos. A sua função na coesão social e nos modos de dominação é determinante nessas variações.

Há um curioso exemplo na Odisséia de Homero que nos permite pensar esses modelos de funções variadas e a sua presença desde os primeiros passos da cultura ocidental. No Canto IV, Telêmaco, filho de Ulisses, vai a Esparta em busca de notícias de seu pai – que ainda não regressara da Guerra de Tróia após 25 anos – junto a Menelau, marido de Helena. Após o mútuo reconhecimento, em que todos são tomados de forte emoção e difícil expressão, e Ulisses é relembrado entre prantos vulcânicos, Helena manda servir um vinho com especiarias orientais que os leva ao sono e ao sonho. De fato, não é possível ao homem viver toda a sua existência na tristeza. O fármaco de Helena era um poderoso meio de esquecimento! Ele permitia a difícil passagem do jovem Telêmaco à idade adulta, que pressupunha matar a onipresente memória do pai ausente. Tratava-se de uma cura da alma que abria o espaço para a criação de outra singularidade. O ritual de beber tal vinho em meio a um banquete e a sua necessidade terapêutica parecia não chocar o gosto dos gregos. Mesmo que Homero se estenda nas explicações da origem egípcia do fármaco, tudo indica que a sua função estava bem justificada naquela cultura.

II

O século XX difere muito da antigüidade de Homero. Provavelmente a maior diferença resida no fato de que a sociedade burguesa é a primeira forma histórica de uma sociedade regida pelo capital, que tudo e a todos engole. Como se perguntou Marx certa feita: “Quem é Vulcano ao lado de Roberts & Cia, Júpiter em comparação com o pára-raios e Hermes face ao Crédit Mobilier?” Por isso, não foi certamente por excesso de pudor que este século pôde ser pensado como “a era dos extremos”, por Eric Hobsbawm. Esta é a medida possível para se entender uma época que foi especialmente pródiga pelas ruínas que deixou. Num tempo agônico, a cura da alma se torna mais difícil e mais complexa. O uso de drogas possui uma relação íntima com tal estado, porém não é a sua terapêutica apropriada. Portanto, a experiência com drogas andará por caminhos distintos daquela do banquete em casa de Menelau, embora nem por isso seja menos importante para a formação da cultura.

As experiências de Walter Benjamin com haxixe, nos anos 1920-30, mostram-se como um testemunho dessa perspectiva. Fredric Jameson chamou o período que inclui esses anos, quando o sistema capitalista ainda não havia invadido todas as margens do mundo, de alto modernismo, caracterização esta que deve sua força justamente à consciência da diferença cultural, isto é, à existência de um desenvolvimento desigual das diferentes regiões do planeta, da vida social etc., em que o diferente era apenas um momento combinado e subordinado a um centro dominante. As vanguardas artísticas e políticas naquele tempo ainda puderam se constituir como uma saída ao domínio sistêmico – este mesmo cuja efetivação gerava as ruínas e catástrofes recentes. Os experimentos de Benjamin faziam parte de um projeto mais amplo de crítica social, em que a percepção sensível poderia encontrar-se no mesmo plano expresso pelas obras de arte e pela revolução, no que esta implica em desordenamento de uma percepção contábil do mundo.

Benjamin entendia tais experiências como uma busca do êxtase, que, por sua vez, seria algo semelhante a um estado de perda de contato com o mundo exterior e que produz, como seu corolário, uma forte alteração dos sentidos. Nada poderia explicar melhor o desejo de desmontar da garupa opressiva do real. Isso não consiste propriamente na negação de um necessário princípio de realidade, mas na compreensão de que uma das potências do capitalismo é a afirmação da sua estrutura do real como abrasadora e única, e que, para tal, se faz determinante a colonização dos sentidos. Assim, romper com os elos desse real seria parte da ruptura com a cultura que sustenta tal sociedade. Dessa forma, o uso de haxixe deveria abrir outros caminhos para a experiência, pouco afeitos à exatidão da medida do tempo socialmente necessário da acumulação de capital.

A busca do êxtase, então, pode ser identificada em Benjamin a partir desse quadro, que aponta para três diferentes motivações que pretendiam levar à perda de certo elo de contato com o mundo exterior. O primeiro elo a ser rompido consistiria no que ele chamou de “círculos mesquinhos de relações” que definem a experiência reificada, a qual freqüentemente acompanha os contatos humanos na sociedade burguesa em que a “relação entre pessoas [...] toma o caráter de uma relação entre coisas”. Tal fenômeno não atinge apenas o que está entre as pessoas, ou seja, as suas relações, como se tudo o que não estivesse neste ponto de intercâmbio permanecesse na espera de melhores condições para se manifestar; mas os próprios seres humanos se degradam, uma vez que são um produto dessas relações. Resulta daí um peso que poderia ser pensado como uma espécie de reificação de si, um tipo de entorpecimento da humanização dos sentidos que havia acompanhado o esforço de dar à natureza do ser humano os sentidos da cultura. Ao nos relacionarmos com os outros por meio de coisas, acabamos por acostumar nosso universo sensitivo a aceitar coisas onde deveriam estar – e na verdade estão, mas encobertas – relações humanas. Assim sendo, romper com o círculo mesquinho é um ato importante da constituição de outra sociabilidade.

Para além desse fenômeno, há outro sentido da ruptura com o círculo mesquinho, numa forma particularizada, que corresponde à vida nas cidades provincianas, onde a solidão, que é um pressuposto do esquecimento de si, torna-se inviável. Esta particularidade denota o contraste entre o urbano da alta modernidade, com seus círculos externos e impessoais das metrópoles, e a realidade comum das pequenas cidades

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