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Unificar para melhor dominar

Por:   •  11/5/2015  •  Bibliografia  •  4.366 Palavras (18 Páginas)  •  175 Visualizações

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Unificar para melhor dominar.

Conferência na Universidade Keisen, Tóquio, 03/10/2000.

Fonte: BOURDIEU, Pierre. Contrafogos 2: por um movimento social europeu. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001. p. 98-115.

Historicamente, o campo econômico foi construído no âmbito do Estado nacional com o qual se integra. O Estado contribui de fato de muitas maneiras para a unificação do espaço econômico (que em contrapartida contribui para a emergência do Estado). Como mostra Polanyi em The Great Transformation, o surgimento dos mercados nacionais não é o produto mecânico da extensão gradual das trocas, mas o efeito de uma política de Estado deliberadamente mercantilista, que visa aumentar o comércio externo e interno (sobretudo favorecendo a comercialização da terra, do dinheiro e do trabalho). Mas unificação e integração, longe de acarretar, como se poderia acreditar, um processo de homogeneização, são acompanhadas ao mesmo tempo de uma concentração de poder, que pode ir até a monopolização, e de um alijamento de parte da população assim integrada. Isso significa que a integração no Estado e no território por ele controlado é de fato a condição da dominação (como se vê com clareza em todas as situações de colonização). Com efeito, como pude observar na Argélia, a unificação do campo econômico tende, sobretudo através da unificação monetária e da generalização das trocas monetárias que daí se segue, a lançar todos os agentes sociais em um jogo econômico para o qual não estão igualmente preparados e equipados, cultural e economicamente; tende ao mesmo tempo a submetê-los à norma objetivamente imposta pela concorrência de forças produtivas e modos de produção mias eficientes, como vemos nitidamente com os pequenos produtores rurais cada vez mais afastados da autarquia[1]. Em suma, a unificação beneficia os dominantes, cuja diferença está constituída como capital apenas pelo fato de instituírem essa relação. (É assim que, para tomar um exemplo recente, nos anos 30 Roosevelt teve que estabelecer regras sociais comuns em matéria de trabalho -–como o salário mínimo, a limitação da jornada de trabalho, etc. – para evitar a degradação dos salários e das condições de trabalho consecutiva à integração de regiões desigualmente desenvolvidas num mesmo conjunto nacional).

Em outros lugares, porém, o processo de unificação e de concentração permanecia circunscrito às fronteiras nacionais: era limitado por todas as barreiras, particularmente jurídicas, à livre circulação dos bens e das pessoas (direitos alfandegários, controle de câmbio etc.); limitado também pelo fato de que a produção e sobretudo a circulação dos bens permaneciam estreitamente ligados a lugares geográficos (em razão basicamente dos custos de transportes). São esses limites ao mesmo tempo técnicos e jurídicos na extensão dos campos econômicos que tendem atualmente a se enfraquecer ou desaparecer sob o efeito de diferentes fatores: de um lado, fatores puramente técnicos, como o desenvolvimento de novos meios de comunicação tais como o transporte aéreo ou a Internet; de outro lado, fatores mais propriamente políticos, ou jurídico-políticos, como a liberalização e a desregulamentação. Assim, vê-se favorecida a formação de um campo econômico mundial, sobretudo no domínio financeiro (em que os meios informáticos de comunicação tendem a acabar com as distâncias temporais que separavam os diferentes mercados nacionais).

O duplo sentido da “globalization

É preciso agora voltar à palavra “globalization” (em francês, mondialization): vimos que ela poderia, num sentido rigoroso, designar a unificação do campo econômico mundial ou a extensão desse campo na escala do mundo. Mas também atribuíram-lhe um significado completamente diferente, passando sub-repticiamente do sentido descritivo do conceito tal como acabo de formular para um sentido normativo, ou melhor, performativo: a “globalization” designa então uma política econômica que visa unificar o campo econômico por todo um conjunto de medidas jurídico-políticas destinadas a suprimir todos os limites a essa unificação, todos os obstáculos, em sua maioria ligados ao Estado-nação, a essa extensão. Isso define, com precisão, a política neoliberal, inseparável da verdadeira propaganda econômica que lhe confere uma parte de sua força simbólica através da ambigüidade da noção.

A “globalization” econômica não é um efeito da mecânica das leis da técnica ou da economia, mas o produto de uma política implementada por um conjunto de agentes e de instituições e o resultado da aplicação de regras deliberadamente criadas para fins específicos, a saber, a liberalização do comércio (trade liberalization), isto é, a eliminação de todas as regulações nacionais que freiam as empresas e seus investimentos. Em outras palavras, o “mercado mundial” é uma criação política (como havia sido o mercado nacional), produto de uma política mais ou menos conscientemente acordada. E essa política, assim como, em sua escala própria, aquela que dera origem aos mercados nacionais, tem por efeito (e talvez também por fim, pelo menos para os mais lúcidos e mais cínicos dos defensores do neoliberalismo) criar as condições de dominação confrontando brutalmente agentes e empresas até então encerrados nos limites nacionais com a concorrência de forças produtivas e modos de produção mais eficientes e poderosos. Assim, nas economias emergentes, o desaparecimento das proteções destina à ruína as empresas nacionais e, para países como a Coréia do Sul, a Tailândia, a Indonésia ou o Brasil, a supressão de todos os obstáculos ao investimento estrangeiro acarreta a ruína das empresas locais, adquiridas freqüentemente por preços ridículos pelas multinacionais. Para esses países, os mercados públicos permanecem um dos únicos métodos que permitem às companhias locais competir com as grandes empresas do Norte. Embora sejam apresentadas como necessárias à criação de um “campo de ação global”, as diretrizes da OMC[2] sobre as políticas de concorrência e de mercado público teriam por efeito, ao instaurar uma concorrência “de armas iguais” entre as grandes multinacionais e os pequenos produtores nacionais, provocar o desaparecimento maciço destes últimos. Sabemos que, de maneira geral, que a igualdade formal dentro da desigualdade real é favorável aos dominantes.

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