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Economia

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Por:   •  19/3/2015  •  8.560 Palavras (35 Páginas)  •  353 Visualizações

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A crise financeira que assola o mundo é grave. Nada lhe é comparável desde 1929. É uma profunda crise de confiança decorrente de uma cadeia de empréstimos originalmente imobiliários baseados em devedores insolventes que, ao levar os agentes econômicos a preferirem a liquidez e assim liquidar seus créditos, está levando bancos e outras empresas financeiras à situação de quebra mesmo que elas próprias estejam solventes. Entretanto, dada a reação pronta e geralmente competente dos governos de todos os países, que compreenderam a gravidade do problema e pouco hesitaram antes de tomar medidas para aumentar a solvência e garantir a liquidez dos mercados, não há razão para pessimismo. Estou seguro que em breve a razão voltará aos mercados, as bolsas recuperarão parte de suas perdas, as taxas cambiais voltarão a se estabilizar, e a recessão - inevitável - não terá nada de parecido com a crise de 1929.

Há uma série de fatos que hoje estão claros a respeito desta crise financeira.

Primeiro, sabemos que é uma crise bancária que ocorre no centro do capitalismo, não é uma crise de balanço de pagamentos - comuns entre os países em desenvolvimento que tentavam até os anos 1990 crescer com poupança externa, ou seja, com déficit em conta corrente e endividamento externo. Os grandes déficits em conta corrente que marcaram a economia norte-americana nesta década, combinados com grandes déficits públicos, não são, porém, estranhos à crise bancária. A falta de confiança não é apenas nos bancos e no mercado, é também na economia norte-americana como um todo, gravemente enfraquecida por essas políticas irresponsáveis.

Segundo, sabemos que a causa direta da crise foi a concessão de empréstimos hipotecários de forma irresponsável, para credores que não tinham capacidade de pagar ou que não a teriam a partir do momento em que a taxa de juros começasse a subir como de fato aconteceu. E sabemos também que esse fato não teria sido tão grave se os agentes financeiros não houvessem recorrido a irresponsáveis "inovações financeiras" para securitizar os títulos podres transformando-os em títulos AAA por obra e graça não do Espírito Santo, mas de agências de risco interessadas em agradar seus clientes.

Terceiro, sabemos que tudo isto pode ocorrer porque os sistemas financeiros nacionais foram sistematicamente desregulados desde que, em meados dos anos 1970, começou a se formar a onda ideológica neoliberal ou fundamentalista de mercado. Para ela os mercados são sempre eficientes, ou, pelo menos, mais eficientes do que qualquer intervenção corretiva do Estado, e, portanto, podem perfeitamente ser auto-regulados. Para esta ideologia que, desde o governo Reagan, se transformou no instrumento do soft power americano, este era o sistema econômico mais eficiente - o único caminho para os demais países - dado que as alternativas seriam formas de "socialismo social democrata" europeu, de "populismo" no Terceiro Mundo, e de "estatismo disfarçado" na Rússia e na China que seriam muito inferiores.

Quarto, sabemos que esta ideologia ultraliberal era legitimada nos Estados Unidos pela teoria econômica neoclássica - uma escola de pensamento que foi dominante entre 1870 e 1930, que entrou em crise e foi substituída pela teoria macroeconômica keynesiana, que se tornou dominante nas universidades até meados dos anos 1970, e voltou à condição dominante desde então por razões essencialmente ideológicas. Economistas como Milton Friedman, James Buchanam, Mancur Olson, Robert Lucas, Kydland e Prescott apontaram suas armas contra o Estado e se encarregaram de demonstrar matematicamente, "cientificamente", com o auxílio dos pressupostos do Homo economicus, das "expectativas racionais" e da "escolha racional" que o credo neoliberal era correto.

Quinto, sabemos que esse tipo de teoria econômica não foi utilizado tanto pelos formuladores de política econômica nos governos quanto pelos analistas macroeconômica nas empresas e nos jornais e publicações especializadas. Não foram utilizados porque a pressuposição neoclássica de mercados eficientes dispensa qualquer política econômica a não ser a de ajuste fiscal; o resto deve ser liberalizado, desregulado, já que os mercados seriam auto-regulados. Como os governos e os analistas precisavam orientar sua política monetária, continuaram a usar o instrumental keynesiano de forma pragmática. Os experimentos macroeconômicos neoclássicos foram reservados para os países em desenvolvimento. Como, entretanto, os países ricos liderados pelos Estados Unidos não escaparam da prescrição desreguladora, agiram como o "escorpião que morde sua própria cauda".

Sexto, agora, quando vemos o Estado surgir em cada país como a única tábua de salvação, como o único possível porto seguro, fica evidente o absurdo da oposição entre mercado e Estado proposta pelos neoliberais e neoclássicos. Um liberal pode opor coordenação do mercado à do Estado, mas não pode se colocar, como os liberais se colocaram, contra o Estado, buscando diminuí-lo e enfraquecê-lo. O Estado é muito maior do que o mercado. Ele é o sistema constitucional-legal e a organização que a garante; é o instrumento por excelência de ação coletiva da nação. Cabe ao Estado regular e garantir o mercado e, como vemos agora, servir de emprestador de última instância.

Tudo isto está muito claro. O que não está claro é por que os mercados estão resistindo a recuperar a confiança apesar das medidas fortes que os governos estão tomando em todo o mundo. Não tenho resposta segura para esta questão, mas creio que dois fatores contribuem para a profundidade da desconfiança: de um lado, o enfraquecimento da hegemonia norte-americana nos anos 2000 não apenas devido aos déficits gêmeos mais também à guerra do Iraque, aos abusos contra os direitos humanos, e à instrumentação da democracia como forma de dominação. De outro, um erro grave e pontual cometido pelo Tesouro norte-americano: não ter salvo o Lehman Brothers. Bancos grandes não podem ir à falência; o risco de crise sistêmica é muito grande. Foi a partir dessa decisão que o quadro financeiro mundial entrou em franca deterioração. O salvamento da AIG no dia seguinte, o pacote de US$ 700 bilhões para dar solvência aos bancos, as diversas intervenções de bancos europeus garantindo seus próprios bancos e garantindo os cidadãos depositantes, e a baixa coordenada de juros pelos bancos centrais não fizeram efeito até agora.

Esta resistência dos mercados financeiros às ações dos governos é mais uma demonstração de sua irracionalidade. De seu clássico comportamento reflexivo e de manada. Estou seguro, entretanto, que a confiança voltará em breve. Não plenamente. Certamente com cicatrizes para os Estados Unidos e com prejuízos para todos, inclusive cerca de dois anos de recessão. Mas não teremos nada parecido com a depressão dos anos 1930, porque, naquela época, o governo norte-americano demorou quase quatro anos para agir. Agora, usando instrumentos keynesianos e pragmáticos, não apenas o governo dos Estados Unidos, mas todos os governos relevantes financeiramente estão agindo imediatamente, e com força. E são governos que têm por trás de si Estados fortes, democráticos, dotados de legitimidade política e de recursos fiscais vultosos. Não há razão para que não sejam afinal bem-sucedidos, e a confiança seja recuperada.

A crise e os desafios para a nova arquitetura financeira internacional

Maryse FarhiI; Daniela Magalhães PratesII; Maria Cristina Penido de FreitasIII; Marcos Antonio Macedo CintraIV

IProfessora do IE-Unicamp e Pesquisadora do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica (Cecon) deste instituto. E-mail: quatis.adsl@uol.com.br

IIProfessora do IE-Unicamp e Pesquisadora Cecon. Pesquisadora do CNPq. E-mail: daniprates@uol.com.br

IIIDoutora pela Universidade Paris XIII e Pesquisadora do Cecon. E-mail: crispenido@uol.com.br

IVProfessor do IE-Unicamp e Pesquisador do CNPq. E-mail: mamcintra@gmail.com

A crise financeira internacional, originada em meados de 2007 no mercado norte-americano de hipotecas de alto risco (subprime), adquiriu proporções tais que acabou por se transformar, após a falência do banco de investimentos Lehman Brothers, numa crise sistêmica. O desenrolar da crise colocou em xeque a arquitetura financeira internacional, na medida em que explicitou as limitações dos princípios básicos do sistema de regulação e supervisão bancária e financeira atualmente em vigor, bem como pôs em questão a sobrevivência de um perfil específico de instituições financeiras.

É importante delinear alguns dos principais fatores que transformaram uma crise de crédito clássica em uma crise financeira e bancária de imensas proporções. Numa crise de crédito clássica, o somatório dos prejuízos potenciais (correspondente aos empréstimos concedidos com baixo nível de garantias) e sua distribuição já seriam conhecidos, enquanto que na atual configuração dos sistemas financeiros, os derivativos de crédito e os produtos estruturados lastreados em crédito imobiliário replicaram e multiplicaram tais prejuízos por um fator desconhecido e redistribuíram, globalmente, os riscos deles decorrentes para uma grande variedade de instituições financeiras. As incertezas sobre a efetiva situação dos balanços dessas instituições levaram a um congelamento dos mercados interbancários, expresso em spreads extremamente elevados. Como as maciças injeções de liquidez das autoridades monetárias, que foram flexibilizando suas exigências e passaram a aceitar praticamente todo e qualquer colateral como garantia, não foram capazes de reverter esse processo de "empoçamento da liquidez" em escala mundial, os países da União Européia, dos Estados Unidos e de outros países desenvolvidos, seguiram o exemplo do Reino Unido e anunciaram, nas duas últimas semanas, garantias a esses créditos.

O primeiro fator decorre do princípio básico da auto-regulação pelo mercado que tem norteado, nas últimas décadas, o conjunto das medidas de supervisão e regulação. Esse princípio pode ser expresso da seguinte forma: a governança corporativa e a gestão de riscos dos bancos evoluíram a tal ponto que suas decisões podem ser consideradas as mais próprias e eficientes para evitar a ocorrência de episódios que possam desembocar em risco sistêmico. Foi ele que orientou, em grande medida, as mudanças dos Acordos de Basiléia que incorporaram, na sua segunda versão (Basiléia II), as notas das agências de ratings e os modelos internos de precificação de ativos e de gestão de riscos como critérios alternativos para a classificação dos riscos de crédito e incentivos à utilização de mecanismos de mitigação desses riscos, dentre os quais os derivativos de crédito.

O segundo fator está associado à forte interação entre bancos universais e as demais instituições, resultante da arquitetura financeira que está sendo posta em xeque. Os bancos, que desde os anos 1980 buscavam diversas maneiras de retirar os riscos de crédito de seus balanços e torná-los mais líquidos, passaram a utilizar, de forma mais intensa, inovações financeiras com o objetivo de alavancar suas operações sem ter de reservar os coeficientes de capital requeridos pelos acordos de Basiléia. Mas, essa estratégia só foi viável porque outros agentes se dispuseram a assumir a contraparte dessas operações, ou seja, assumir esses riscos contra um retorno que, à época, parecia elevado. Esses agentes foram as instituições financeiras que formam o chamado shadow banking system.

Empregado, pela primeira vez por Paul McCulley, diretor executivo da maior gestora de recursos do mundo, a Pimco, o termo shadow banking system inclui o leque de instituições envolvidas em empréstimos alavancados que não tinham, até a eclosão da crise, acesso aos seguros de depósitos e/ou às operações de redesconto dos bancos centrais. Nesse leque enquadram-se os grandes bancos de investimentos independentes, os hedge funds, os fundos de pensão e as seguradoras. Nos EUA, ainda se somam os bancos regionais especializados em crédito hipotecário e as agências patrocinadas pelo governo. Esta definição contém um elemento implícito que é importante sublinhar: as instituições financeiras do shadow banking system não estão sujeitas às normas dos Acordos de Basiléia, as quais no caso norte-americano só se aplicam aos grandes bancos universais com operações internacionais.

A emergência deste sistema bancário "sombra" está associada a dois movimentos simultâneos e complementares: em primeiro lugar, como mencionado acima, os bancos submetidos aos requisitos de capital do Acordo de Basiléia I passaram a utilizar crescentemente um conjunto de instrumentos para retirar os riscos de seu balanço e viabilizar o aumento da sua alavancagem, processo que ficou conhecido como arbitragem regulatória; em segundo lugar, uma grande variedade de instituições evoluiu no sentido de desempenhar um papel semelhante ao dos bancos tradicionais sem estarem incluídas na estrutura regulatória existente e, portanto, sem disporem das requeridas reservas em capital.

No âmbito do primeiro movimento, para excluir os riscos de crédito dos balanços, os bancos recorreram, principalmente, aos chamados "produtos estruturados"- instrumentos resultantes da combinação entre um título representativo de um crédito (debêntures, bônus, títulos de crédito negociáveis, hipotecas, dívida de cartão de crédito etc.) e um leque de derivativos financeiros -, e aos derivativos de crédito. Essa alquimia financeira foi possível, por sua vez, graças à atuação das agências de classificação de riscos (rating). Ao auxiliar as instituições financeiras na montagem dos "pacotes de crédito" que lastreiam os títulos securitizados de forma a garantir a melhor classificação possível, essas agências tiveram participação relevante na criação do mito que ativos de crédito bancário podiam ser precificados e negociados como sendo de "baixo risco" em mercados secundários. Ademais, elas incorreram em sério conflito de interesses na medida em que parte substancial de seus rendimentos advinha dessas atividades.

Não estando habilitados a obter recursos de depositantes para adquirir esses instrumentos, os integrantes do "shadow banking" foram buscá-los no mercado de capitais, sobretudo emitindo títulos de curto prazo (commercial papers), comprados por fundos mútuos de investimentos. Não podendo criar moeda ao conceder crédito diretamente, eles utilizaram esses recursos de curto prazo para adquirir os títulos emitidos pelos bancos com rentabilidade vinculada ao reembolso dos créditos que esses concederam. Tornaram-se, dessa forma, participantes do mercado de crédito, obtendo recursos de curto prazo com os quais financiavam créditos de longo prazo (hipotecas de 30 anos, por exemplo), atuando como quase-bancos.

Já os bancos sujeitos à regulação intensificaram a criação de pessoas jurídicas - Special Investment Vehicles (SIV), conduits ou SIV-lites -, que adquiriam esses títulos estruturados, com recursos provenientes da emissão de títulos de crédito de curto prazo. Essas pessoas jurídicas não eram tecnicamente propriedades dos bancos nem seus resultados figuravam nos balanços, constituindo parte relevante do shadow banking system junto com diversos outros intermediários financeiros. Dessa forma, os bancos universais obtinham mais recursos, além de receitas com comissões, que lhes permitiram conceder novos créditos e elevar seus lucros, num processo de crescente alavancagem.

O papel central dos derivativos de crédito, negociados em mercados de balcão, na constituição das complexas relações entre o sistema bancário tradicional e o sistema "sombra" deve ser destacado. A acentuada expansão dessa modalidade de derivativo, sobretudo a partir do final da década de 1990, elevou fortemente os riscos agregados presentes nesses mercados (associados à sua opacidade e à inexistência de câmara de compensação), que constituiu o principal palco dessas relações. Utilizando os mecanismos já existentes de swaps, os derivativos de crédito permitiram que os bancos retirassem riscos de seus balanços, ao mesmo tempo em que as instituições financeiras do shadow banking system passaram a ter novas formas de assumir exposição aos riscos e rendimentos do mercado de crédito. Os mais utilizados são os swaps de inadimplência de crédito (credit default swaps, CDS) que transferem o risco de crédito entre o agente que adquire proteção e a contraparte que aceita vender proteção. Por esse mecanismo, o detentor de uma carteira de crédito compra proteção (paga um prêmio) do vendedor de proteção. Em troca, esse assume, por um prazo predeterminado, o compromisso de efetuar o pagamento das somas combinadas nos casos especificados em contrato, que vão de inadimplência ou falência à redução da classificação de crédito ou outros eventos que possam causar queda do valor da carteira.

Foi a partir desta transferência de riscos pelos bancos que ocorreu o milagre de sua multiplicação. Nos casos em que esses riscos foram transferidos dos balanços dos bancos para outras instituições financeiras por meio de títulos securitizados e produtos estruturados, esses ativos foram "reempacotados" e deram origem a outros ativos que, por sua vez, foram vendidos a outras instituições. Enquanto esta operação se restringiu a operações no mercado à vista, era o risco original que ia trocando de mãos. Porém, ao serem acoplados aos derivativos de crédito, esses ativos deram origem a "ativos sintéticos", isto é, ativos que replicam os riscos e retornos dos ativos originais, mas sem que seja necessário possuí-los. Estes ativos "virtuais" possuem tal propriedade porque negociam compromisso futuros de compra e venda de ativos, mediante o pagamento de um "sinal" o que abre a possibilidade de vender o que não se possui e/ou comprar o que não se deseja possuir. Nos mercados de balcão, multiplicaram-se as mais diversas combinações "virtuais" dos ativos de crédito securitizados com operações de derivativos de crédito. Na construção dessa imensa pirâmide invertida - cuja base é constituída pelas operações de crédito bancário originais - os riscos iniciais foram multiplicados por um fator n e sua distribuição passou a constituir uma incógnita.

Boa parte do tamanho desta pirâmide ainda está envolta em sombras, mas existem dados estatísticos confiáveis sobre a vertente constituída pelos derivativos. O Bank for International Settlements (BIS) publica dados quadrimestrais sobre os volumes de derivativos negociados nos mercados de balcão. No último relatório, de junho de 2008, o BIS aponta um volume nocional total desses derivativos de US$ 596 trilhões, dos quais US$ 58 trilhões são de derivativos de crédito. Não é de estranhar nem o congelamento das operações interbancárias, nem o ceticismo dos mercados diante da versão original do Plano Paulson que destinava US$ 700 bilhões para a aquisição dos ativos nos balanços dos bancos, denominados de "lixo tóxico".

Finalmente, é importante tecer alguns comentários sobre as implicações da crise recente, que tem um caráter sistêmico, para a governança do sistema financeiro internacional. A despeito da sua profundidade, é pouco provável que esta crise resulte na superação da deficiência inerente a esta governança: a inexistência de um órgão regulador global. Enquanto a regulação é nacional, as finanças são transnacionais. Todavia, é possível levantar algumas propostas de aperfeiçoamento dos mecanismos de regulação deste sistema que podem se concretizar no futuro próximo.

Em primeiro lugar, seria necessário consolidar as diversas agências regulatórias, tanto na Europa como nos Estados Unidos. A crise revelou a obsolescência da estrutura de supervisão descentralizada, dado o grau de imbricação entre as diversas instituições financeiras (bancos, fundos de pensão, seguradoras e fundos de investimento) e mercados (de crédito, de capitais e de derivativos). Vale mencionar que esse problema já foi reconhecido pelo governo norte-americano. Um dos pilares da proposta de reestruturação da estrutura regulatória do sistema financeiro, anunciada no final de março de 2008, consiste exatamente na consolidação das diversas agências reguladoras do país. Ademais, nessa proposta, o Federal Reserve teria poderes ampliados, passando a supervisionar, além das holdings financeiras, os bancos de investimento, seguradoras e fundos de investimento (inclusive hedge funds). Igualmente, o episódio da falência do britânico Northern Rock mostrou que a retirada das funções de supervisão do banco central e sua transferência para uma instituição autônoma podem ter conseqüências deletérias, sobretudo, se não há uma contínua e rápida troca de informações.

Em segundo lugar, algumas iniciativas deveriam impor limites ao avanço da securitização e dos derivativos de crédito, dentre as quais: (i) os reguladores poderiam colocar restrições à complexidade de instrumentos que poderiam ser emitidos e adquiridos pelas entidades reguladas; (ii) os bancos centrais poderiam aceitar como colateral nas operações compromissadas ou na janela de redesconto somente classes suficientemente transparentes de ABS; (iii) um requerimento regulatório poderia ser instituído obrigando o originador a reter a equity tranche. Isto porque, quando o originador dos empréstimos está muito distante do investidor, são menores os incentivos para uma "originação" cuidadosa. Uma forma de mitigar esse problema seria o "originador" reter a tranche mais arriscada; (iv) a re-intermediação, com a incorporação das instituições fora de balanço (Conduits, SIV, quasi-banks) nos balanços dos bancos, que já iniciou nos EUA e na Europa, deveria ser estimulada; e (v) a criação de uma câmara de compensação para os derivativos de crédito que cobre margens de garantia dos participantes, para minimizar os riscos de contraparte, e traga alguma transparência à distribuição de riscos.

É preciso reconhecer, contudo, a capacidade limitada da regulação e supervisão financeira, em controlar a qualidade dos créditos detidos pelo sistema bancário em face desse tipo de risco e do caráter inerentemente instável da atividade financeira. A própria dinâmica concorrencial bancária tende a promover uma subestimação dos riscos e a busca de novos produtos e instrumentos que permitam contornar os limites impostos pela regulamentação. Reconhecer esses limites não implica que os governos devam abrir mão da sua função essencial de regular a atividade bancária e financeira, mesmo que esse seja, como bem destaca Minsky, um jogo perdido, pois os banqueiros têm muito mais a ganhar do que os burocratas do banco central.

Da liberalização à crise financeira norte-americana: a morte anunciada chega ao Paraíso

Jennifer Hermann

Professora Adjunta do Instituto de Economia da Universidade Ferderal do Rio de Janeiro (IE/UFRJ). E-mail: jenniferh@terra.com.br

Crises financeiras no capitalismo são como a morte na cultura ocidental: sabemos que virá um dia (a nossa e a alheia) mas, sempre que ela se mostra, nos assusta como se fosse algo totalmente inesperado. O que há de desconhecido nas crises financeiras, assim como na morte, é o "quando" e o "como", embora as crises, em geral, sejam mortes anunciadas.

Cada crise financeira marca o fim de um ciclo de crescimento econômico e endividamento. No capitalismo moderno, que conta com sistemas financeiros sofisticados e onde os investimentos que alicerçam o crescimento assumem proporções crescentes, diante dos desafios da concorrência em escala internacional, não há crescimento econômico sem aumento do endividamento - embora o inverso nem sempre se confirme (para nosso pesar). E, como nos ensinou Hyman P. Minsky, não há crise financeira sem endividamento - embora, também, o sentido contrário nem sempre se verifique (para nosso alento!).

A relação inevitável entre crescimento e endividamento, aliada à possibilidade, sempre presente, de que este resulte em crise financeira é a essência da "hipótese de fragilidade financeira" de Minsky. A fragilidade inerente ao crescimento nas economias de mercado reside no fato de que, a atividade econômica e as relações financeiras que a viabilizam, derivam e dependem de um "sistema de confiança". Este envolve, de um lado, as expectativas de renda futura daqueles que assumem dívidas (empresas, famílias e instituições financeiras, além do governo, possivelmente) e, de outro, as expectativas de retorno-risco daqueles que adquirem estes ativos financeiros (outro conjunto de empresas, famílias e instituições financeiras). O problema é que as expectativas que motivam (ou não) a emissão e aquisição de dívidas são em parte ancoradas em avaliações objetivas e, em parte, no que J. M. Keynes chamou de "otimismo [ou pessimismo] espontâneo". O pagamento regular das dívidas assim criadas depende da confirmação dessas expectativas e, em economias de mercado, não há qualquer garantia neste sentido. Nas palavras de Minsky (no livro Can 'It' Happen Again?, 1982):

"Tal economia capitalista é instável devido a forças endógenas que refletem os processos de financiamento. Esses processos transformam um sistema tranqüilo e relativamente estável em um no qual a contínua expansão acelerada de dívidas, investimentos, lucros e preços é necessária para prevenir uma profunda depressão."

Quando esse cenário benigno não se confirma, cresce a inadimplência no crédito e/ou desvalorizam-se os títulos negociados no mercado de capitais, cujos retornos, afinal, dependem dos lucros das empresas (inclusive instituições financeiras) emissoras. A boa notícia é que esta é uma condição necessária, mas não suficiente, para converter uma situação de fragilidade em um quadro de crise financeira. Em condições normais - na ausência de choques - a frustração de expectativas pode resultar em simples desaceleração do endividamento e da atividade econômica, configurando um inofensivo soft landing.

A situação se agrava, porém, se as dificuldades de pagamento se prolongam, o que (na ausência de choques), explica-se pela adoção de uma política macroeconômica restritiva ou mesmo pela simples inação do governo diante dos primeiros sinais de frustração de expectativas. Esse cenário obriga os bancos a ajustarem seus balanços à nova situação, por exemplo, elevando as exigências de capital (pela regra de Basiléia, em face do aumento do risco dos ativos), de provisões contra créditos duvidosos, ou mesmo de índices mínimos de liquidez. Essas são razões objetivas para a contração do crédito e da demanda por ativos em geral. Ainda assim, um quadro de crise financeira sistêmica só se configura se a crise de crédito der origem a uma crise de confiança. Esta se manifesta pelo rápido aumento da preferência por liquidez, em detrimento dos ativos financeiros. Se tal tendência não for rapidamente contida por uma política macroeconômica que restaure a confiança, desencadeia-se um "comportamento de manada", pelo qual, mesmo aqueles que ainda não têm razões objetivas para se desfazer de ativos, tornam-se também vendedores apressados, apenas porque os que já sofreram perdas estão agindo assim. Esta prevenção individual, porém, em vez de proteger os portfólios, acaba por levar à deflação de ativos, espalhando a crise.

Minsky formulou sua teoria da fragilidade e das crises financeiras nos anos 1970, quando o mercado financeiro americano (assim como os demais) era mais segmentado que nos dias de hoje. Vigia à época um modelo de regulamentação financeira que impunha às instituições a separação entre operações de crédito de curto prazo (a cargo dos bancos comerciais e financeiras); operações de crédito de longo prazo (a cargo dos bancos de poupança, voltados para o setor imobiliário e, em menor escala, de bancos de investimento); e operações no mercado de capitais (reservadas aos bancos de investimento).

Esse modelo não era imune a crises financeiras, nem as tornava totalmente indolores. No mundo de Minsky, crises financeiras seriam detonadas por choques recessivos ou pelo canal da política macroeconômica, se esta fosse usada para conter pressões inflacionárias do crescimento. Mas tal modelo permitiu, por exemplo, que o mundo assistisse a duas longas crises de crédito imobiliário (o que, aliás, é pleonasmo, já que, hoje se sabe que essas crises são sempre longas), originadas em países industrializados de grande expressão no mercado comercial e financeiro internacional - EUA (nos anos 1970-80) e Japão (nos anos 1980-90) - sem que estas se convertessem em crises financeiras sistêmicas internacionais. Nos EUA, apesar da falência da maioria dos bancos de poupança, a economia não sofreu uma recessão de origem bancária. Isto foi possível porque a separação entre os diversos segmentos do mercado evitou aquela primeira etapa de contágio. Com isso, não se formou uma crise generalizada de confiança e o mercado de capitais se manteve de pé, como principal fonte de financiamento dos investimentos. Essa convivência pacífica com a crise bancária só não foi possível no Japão porque não havia (e não há) um modelo de financiamento fortemente apoiado em mercado de capitais - e sim em bancos. Em grande parte por isto, o contágio foi ainda menor e, embora o país tenha sofrido uma longa recessão, sua crise bancária não se converteu em crise sistêmica internacional. O mundo, literalmente, assistiu à crise japonesa de longe, com preocupação, mas sem ser arrastado por ela.

O cenário em que teve início a atual crise de crédito imobiliário nos EUA é bastante diferente do que vigia nos anos 1970. Ao longo das décadas de 1980-90, deu-se um longo processo de desregulamentação financeira na economia americana e em diversos outros países - inclusive o Brasil. Os principais traços desse processo foram a gradual eliminação da segmentação dos mercados e a ampliação do grau de abertura financeira entre os países.

O mercado de capitais, especialmente nos EUA, foi o segmento mais estimulado por essas mudanças, por ser, tradicionalmente, menos regulamentado que o setor bancário e, no caso americano, por ser o mais maduro e promissor à época. As novas regras, na prática, significaram liberdade para os bancos ingressarem neste mercado. Uma das principais portas de entrada foram as operações de securitização de dívidas, que estreitaram as conexões entre os mercados de crédito e de capitais, já que grande parte do que se negocia neste último depende, indiretamente, do desempenho do primeiro. Na crise norte-americana recente - assim como na crise asiática de fins da década de 1990 - isto contribuiu decisivamente para encurtar o tempo que separa aqueles primeiros sinais de frustração das expectativas de um quadro generalizado de deflação de ativos. Além de dificultar ações preventivas e de socorro de liquidez em tempo hábil, a rapidez com que hoje os mercados são capazes de reagir a sinais de alerta torna ainda mais provável a conversão de uma crise inicialmente setorial - do crédito imobiliário - em uma crise sistêmica - de todo o mercado financeiro - com extensos efeitos macroeconômicos. Além disso, a maior abertura financeira alargou a abrangência geográfica do endividamento, bem como das operações de securitização, tornando também mais provável a conversão de uma crise nacional em crise internacional.

Por trás da crise sistêmica atual há dois conjuntos de fatores explicativos. Um, de natureza conjuntural, envolve a política monetária americana, que elevou a taxa básica de juros de 1,00% para 5,25% a.a. entre o segundo trimestre de 2004 e o segundo de 2007. Embora isto não tenha gerado uma forte recessão nos EUA - o crescimento real do PIB caiu apenas de 4,2% nos 12 meses anteriores (terceiro trimestre de 2003 ao segundo de 2004) para a média anual de 3,5% no período de juros crescentes - certamente dificultou o refinanciamento de dívidas longas (caso típico do crédito imobiliário). Contribuiu também para a crise a demora do governo em reconhecer a gravidade do problema, por falha de interpretação ou da supervisão bancária. O fato é que, durante boa parte da crise (2006-07), o FED mostrou-se mais preocupado com a inflação (que requer juros mais altos) que com a deflação de ativos (que exigia um corte rápido nos juros).

Mas a política monetária foi mais um elemento propagador que, propriamente, causador da crise, já que no crédito subprime (a famílias de renda baixa e sem comprovação e garantias), pivô da crise, os contratos já previam aumentos dos juros após alguns anos. Assim, outro fator conjuntural que atuou decisivamente na formação da crise foi o excesso de "otimismo espontâneo", que levou a flagrantes erros de avaliação de riscos por parte dos bancos credores, dos devedores e dos que compraram derivativos destes créditos.

É inevitável, porém, reconhecer a presença de um fator estrutural na raiz dos eventos recentes: o novo modelo de regulamentação financeira (ou a falta dela), que já havia mostrado seus efeitos devastadores para as economias emergentes, no episódio da crise asiática, e agora mostra sua cara também aos mercados norte-americano e europeu, que o venderam para o resto do mundo como panacéia. Até a crise asiática, os defensores do modelo - cujo maior entusiasta era o FMI - atribuíam o problema ao que consideravam ser limitações típicas dos países em desenvolvimento: a fragilidade dos fundamentos macroeconômicos e da supervisão bancária. A crise teria sido, então, detonada por um surto de sabedoria dos investidores estrangeiros que, percebendo o perigo, desencadearam um "corretivo" movimento de fuga de capital, forçando os emergentes a ajustarem suas políticas macroeconômicas, de modo a reduzir o crescimento, acumular reservas internacionais e manter equilíbrio fiscal e baixa inflação.

Não faltaram, à época, críticas, de filiação keynesiana, a essa interpretação, alegando que a liberalização era, por natureza, instabilizadora, porque tornaria os mercados ainda mais "minskyanos", ou seja, excessivamente expostos ao otimismo ou pessimismo espontâneo dos investidores, o que raramente (por acidente) produz o melhor resultado em termos de alocação de recursos e de crescimento econômico. No entanto, estes foram "votos vencidos" no debate internacional e nada foi feito, desde então, para mudar o modelo vigente. O ajuste se deu apenas de um lado do mercado - nas economias emergentes.

A realidade, porém, não tardou a alcançar o sonho americano, embora a etiologia da crise por lá tenha sido bem diferente da que atingiu os emergentes. A economia norte-americana tem, há quase uma década, déficits públicos e externos crescentes, a supervisão bancária foi, obviamente, falha, mas a crise não foi detonada por uma fuga de capital. O mundo foi mais paciente e crédulo com os EUA. A crise norte-americana não veio de fora, foi "fogo amigo". Começou nos intestinos do "eficiente" sistema financeiro dos EUA, sendo a liberalização financeira o ventilador que se encarregou de espalhar seus ativos para todo o mundo.

Agora, que os "malefícios da globalização" alcançaram, finalmente, os países ricos, o discurso oficial começa a mudar: o problema não é mais a má gestão macroeconômica e financeira - embora ela seja mais evidente no caso norte-americano que em muitos emergentes que afundaram na crise dos anos 1990 -, mas sim o "modelo" de (des)regulamentação. O governo G. W. Bush e o FMI já falam em reforma do sistema financeiro internacional (O Globo, 13/10/08); o ex-Presidente do FED e "guru" da política monetária no mundo, Alan Greenspan, admitiu que errou ao defender a desregulamentação financeira durante seus 18 anos à frente do Banco Central dos EUA (O Globo, 24/10/08); e até o mega-investidor George Soros pede mais regulamentação dos mercados (O Globo, 19/10/08)! Aos keynesianos insatisfeitos de plantão, resta esperar que, embora por caminhos tortos, este debate seja retomado de forma responsável. Às economias emergentes, que, como o Brasil, submeteram suas políticas macroeconômicas e sua capacidade de crescimento ao metabolismo do mercado internacional, cabe repensar seus modelos nacionais de desenvolvimento, formulando alternativas menos dependentes daquele mercado e mais apoiadas no estímulo ao mercado doméstico.

Regulamentação bancária, gestão de riscos e gestação da desordem financeira

Ana Rosa Ribeiro de Mendonça

Professora Assistente do Instituto de Economia da UNICAMP. E-mail: arrm2@uol.com.br

É comum a percepção de que muitas das inovações criadas por instituições financeiras têm como intuito atenuar a regulamentação corrente e dessa forma garantir maior liberdade de atuação, liberdade esta que pode criar elementos para a gestação de uma crise que leve a uma resposta de re-regulamentação. Nesse sentido, pode-se pensar a criação e generalização da adesão a Basiléia como um movimento de re-regulamentação, dada a falência do modelo anterior e a instabilidade resultante. E é curioso observar que preocupações mais prementes com a regulamentação bancária ganham corpo em períodos de crise/aumento da instabilidade financeira. Os acontecimentos dos últimos meses e seus desdobramentos comprovam tal argumento. Diante da desordem financeira atual, muito se tem discutido acerca das fragilidades e de mudanças necessárias no arcabouço regulatório vigente, amplamente calcado em requerimentos mínimos de capital em função do risco da carteira de ativos das instituições. A idéia por trás de tal mecanismo é que a instituição deve adequar seu capital aos riscos assumidos ou, de outra forma, assumir riscos a partir de sua capacidade de manutenção de capital. Basiléia II, ao aceitar e estimular o uso de avaliações de risco feitas por instituições privadas, sejam elas agências externas ou os próprios bancos, traz a lógica dos agentes de mercado para dentro da estrutura regulatória. A justificativa é que as instituições financeiras estariam mais qualificadas para entender e administrar seus riscos e decidir qual o montante de capital a ser mantido diante desses, em um regime que poderia ser chamado de "auto-regulação supervisionada", como sugerido por Robert Guttmann (2007), no artigo "Central Bank in a Debt-deflation Crisis". A lógica que permeia esses Acordos, em especial Basiléia II, é que a gestão dos riscos em nível micro, ou seja, realizada por cada uma das instituições, leva à estabilidade do sistema.

A grande questão que se coloca é se esse formato garante que a regulamentação venha a cumprir sua função primordial, qual seja, garantir a saúde e solidez do sistema. À luz da atual desordem vivenciada pelos mercados financeiros, ocorrida em um mundo marcado pela ampla adesão à Basiléia I, importante movimento de transição para Basiléia II e disseminado uso de modelos internos de avaliação de risco, a percepção é de que tal arcabouço não é ou não foi capaz de evitar problemas da natureza e grandeza dos correntemente observados. Sendo assim, outra questão pode ser delineada. Como esse formato de regulação interagiu com o movimento de gestação da crise?

A maior sensibilidade aos riscos pode ocasionar efeitos sobre a dinâmica dos mercados bancários, entre os quais uma exacerbação do caráter pró-cíclico inerente ao funcionamento desses mercados, caráter esse apontado por Minsky. A observação do risco de crédito ao longo das diferentes fases do ciclo mostra que esse tende a diminuir na aceleração e a crescer na desaceleração. Considerando-se que o uso de sistemas de requerimentos de capital sensíveis ao risco deve implicar a necessidade de manutenção de menores volumes de capital em períodos de aceleração, maiores níveis de alavancagem poderão ser observados. E, em períodos de desaceleração, a necessidade de manutenção de maiores níveis de capital diante da elevação dos níveis de risco deve implicar menor disponibilidade de recursos para os tomadores o que, no presente quadro, deve significar o agravamento do observado credit crunch. Daníelson (2001), no artigo "An Academic Response to Basel II", aponta ainda que a generalização do uso de modelos internos pode aumentar o risco sistêmico. Isto em função do argumento exposto: o uso destes modelos atua no sentido de exacerbar níveis de alavancagem e de exposição ao risco em períodos de euforia, e no sentido oposto em momentos de desordem/crise.

O atual modelo "originate and distribute", especialmente adotado por bancos norte-americanos, nos quais empréstimos são concedidos e transferidos a partir da emissão de títulos, tende a exacerbar a capacidade de alavancagem dos bancos em períodos de aceleração. A lógica do processo é a transferência do risco de crédito do emprestador para o comprador do(s) título(s), processo esse que acaba por significar a transformação do risco de crédito em uma combinação de risco de mercado e de contraparte, além de tornar os instrumentos mais complexos e opacos. Entre os possíveis elementos de estímulo à disseminação de tal modelo, que significa a retirada de posições do ativo dos bancos, pode-se destacar o conjunto de regras que estabelece requerimentos mínimos de capital a partir dessas posições.

Outra questão fundamental que emana da regulamentação e práticas correntes das instituições/agentes financeiros marcadas pela leitura e gestão mais acurada dos riscos é o formato do tratamento desses. Mesmo os modelos mais avançados e complexos são construídos para mensurar e tratar os riscos de forma individual, o que está claramente colocado em Basiléia II para os riscos de crédito, mercado e operacional. No entanto, riscos de diferentes naturezas se combinam e se conectam, reforçando o movimento durante as crises. E em condições caóticas podem rapidamente se transformar: de risco de liquidez para risco de solvência, de risco operacional para risco reputacional ou legal. Além disso, em Basiléia II não há tratamento adequado ao risco de iliquidez, o que pode se mostrar como limite, dada conexão entre situações de iliquidez e insolvência.

Outro elemento inerente é a construção de modelos a partir de um histórico de dados passados, que por tal não contemplam situações tão adversas como as recentemente experimentadas e, mesmo que apontem para uma distribuição normal de riscos, com elevado nível de confiança, podem ocasionar os chamados eventos de cauda. Na verdade, a grande limitação desses modelos, em especial em situações adversas como as correntemente vivenciadas, é a tentativa de transformar a incerteza em riscos mensuráveis. O conceito de incerteza é construído a partir da percepção de que o ambiente econômico é marcado pela possibilidade de ocorrência de mutações. Dessa forma, cálculos de probabilidade de eventos futuros a partir de informações passadas e presentes nem sempre apresentam resultados relevantes.

O atual arcabouço regulatório, construído a partir da visão de que a gestão individual dos riscos garantiria a estabilidade sistêmica, não foi capaz de cumprir seu principal papel, garantir a saúde e solidez do sistema. E se percebeu mais uma vez que, em momentos de exacerbação da incerteza e ocorrência de rupturas financeiras, a atuação ad hoc, rápida e incisiva do emprestador em última instância, é imprescindível para a garantia da saúde e solidez do sistema.

A crise das finanças desregulamentadas: o que fazer?

Fernando Ferrari FilhoI; Luiz Fernando de PaulaII

IProfessor Titular da FCE/UFRGS e Presidente da Associação Keynesiana Brasileira. E-mail: ferrari@ufrgs.br

IIProfessor Adjunto da FCE/UERJ e Vice-Presidente da Associação Keynesiana Brasileira. E-mail: luizfpaula@terra.com.br

A internacionalização do sistema financeiro tem alterado substancialmente a natureza e os determinantes da dinâmica econômica mundial: a conjugação entre a desregulamentação dos mercados financeiros e inovações financeiras - tais como securitizações e derivativos - a livre mobilidade de capitais e a flexibilidade e a volatilidade das taxas de câmbio e de juros têm, por um lado, limitado a ação das políticas macroeconômicas domésticas e, por outro, sido responsáveis tanto pelas freqüentes crises de balanço de pagamentos das economias emergentes, quanto pelas crises de liquidez e solvência, como a recente crise financeira internacional.

Este processo de globalização financeira, em que os mercados financeiros são integrados de tal forma a criar um "único" mercado mundial de dinheiro e crédito, acaba, por sua vez, diante de um quadro em que inexistem regras monetário-financeiras e cambiais estabilizantes e os instrumentos tradicionais de política macroeconômica tornam-se crescentemente insuficientes para conter os colapsos financeiros (e cambiais) em nível mundial, resultando em crises de demanda efetiva.

J.M.Keynes, em sua Teoria Geral do Emprego, dos Juros e da Moeda de 1936, já chamava a atenção para o fato de que, em economias monetárias da produção, a organização dos mercados financeiros enfrenta um trade-off entre liquidez e investimento: por um lado, eles estimulam o desenvolvimento da atividade produtiva ao tornar os ativos mais líquidos, liberando, portanto, o investidor da irreversibilidade do investimento; por outro, aumenta as possibilidades de ganhos especulativos. Assim, ao estabelecer uma conexão entre os mercados financeiro e real da economia, Keynes, na Teoria Geral, escreveu que "a posição é séria quando o empreendimento torna-se uma bolha sobre o redemoinho da especulação. Quando o desenvolvimento das atividades de um país torna-se o subproduto das atividades de um cassino, o trabalho provavelmente será malfeito".

Indo ao encontro de Keynes, nos dias de hoje, a ação dos global players, em um mercado mais liberalizado e integrado, faz com que os mercados financeiros convertam-se em uma espécie de grande cassino global. Especulação, em uma economia global, tem caráter disruptivo não somente em mercados domésticos, mas sobre países como um todo, criando uma espécie de cassino financeiro ampliado.

Na perspectiva keynesiana, instabilidade financeira não é vista como "anomalia", mas como resultante da própria forma de operação dos mercados financeiros em um sistema no qual não existe uma estrutura de salvaguarda que exerça o papel de um market marker global. Assim, o formato institucional específico dos mercados financeiros determina as possibilidades de se ter um ambiente em que a especulação possa florescer. Crises financeiras não são apenas resultados de comportamentos "irracionais" dos agentes, mas resultam da própria forma de operação dos mercados financeiros globais liberalizados e sem um sistema de regulação adequado.

A atual crise financeira internacional, originada pelas perdas causadas pelo crescente default dos empréstimos das hipotecas do mercado norte-americano de subprime e dinamizada em termos globais, uma vez que grande parte dessas hipotecas foi securitizada e distribuída a investidores do mercado global, nos induz a duas reflexões. Em primeiro lugar, ela põe em xeque os benefícios concretos da globalização financeira, com mercados financeiros desregulados, inclusive nos países desenvolvidos. Em segundo lugar, ela nos remete, a partir das medidas de natureza fiscal e monetária implementadas pelos EUA e países da Zona do Euro e do Japão - tais como injeção de liquidez e de capital nos sistemas financeiros por parte das autoridades econômicas destes países e a redução sincronizada da taxa básica de juros dos principais bancos centrais mundiais - para se evitar uma recessão econômica aguda, tanto a repensar o próprio papel do Estado na economia quanto à necessidade de re-regulamentar os sistemas financeiros domésticos e reestruturar o sistema financeiro mundial (SFM).

Em relação à primeira questão, como os mercados financeiros desregulamentados não são eficientes, na ausência de regras que estabilizem o referido mercado, as atividades especulativas e a valorização financeira da riqueza afloram naturalmente. Isto porque a liberalização dos mercados financeiros e a existência de novos instrumentos financeiros (como derivativos) ampliaram a possibilidade de realização de atividades especulativas. Torna-se, assim, necessária a regulamentação de operações derivativas "exóticas" e outras práticas (por exemplo, alavancagem excessiva de instituições financeiras) que ocasionam a festa dos investidores e bancos.

Quanto à segunda questão, a lição da crise atual é que não somente a ação estatal é fundamental para prevenir ou remediar a crise, como é necessária, sobretudo em momentos críticos - o que nos remete a idéia de Minsky que uma crise financeira tem que ser enfrentada pela ação de um Big Central Bank (banco central como emprestador de última instância) e de um Big Government (política anti-cíclica do governo), uma maior coordenação global entre as diferentes políticas nacionais, em particular dos grandes países desenvolvidos. Assim sendo, pode-se dizer que há um certo consenso entre economistas e policymarkers de que medidas para restaurar a estabilidade do SFM são necessárias. Todavia, infelizmente, não há um consenso acerca de como o referido sistema deve ser reestruturado.

Para os economistas do mainstream, um SFM eficiente para os países é aquele constituído por regimes cambiais flexíveis, maior mobilidade de capitais e maior liberalização financeira dos mercados, pois tais medidas equilibram, automaticamente, os balanços de pagamentos, alocam eficientemente as poupanças e melhoram a performance econômica. Por outro lado, a necessidade de se preservarem as autonomias das políticas fiscal e monetária dos países - essenciais para asseguraram trajetórias de crescimento econômico sustentável - tem reforçado o ponto de vista de economistas keynesianos de que é necessária a criação de uma espécie International Market Maker para garantir a liquidez internacional para expandir a demanda efetiva mundial e coibir a livre mobilidade dos fluxos de capitais especulativos, condições fundamentais para que a economia mundial possa voltar a experimentar períodos mais duradouros de crescimento do produto e do emprego.

No pêndulo das posições, não resta dúvida de que a atual crise financeira internacional deixa claro que os mercados não são eficientes e que, portanto, é necessária a mão visível do Estado para assegurar a "funcionalidade" da mão invisível do mercado.

Para além das políticas de resgate

João Sicsú

Diretor de Estudos Macroeconômicos do IPEA e Professor do IE-UFRJ. E-mail: joaosicsu@gmail.com

O sistema financeiro ofereceu aos americanos de renda mais baixa e instável o sonho da casa própria. Ao mesmo tempo, ofereceu aos de cima outro sonho, o da alta rentabilidade financeira - já que as operações tradicionais, como a concessão de crédito, estavam remunerando muito aquém dos seus sonhos financistas. O sonho dos de baixo era compatível com o sonho dos de cima. Diferentemente das empresas e outros entes, os americanos de baixo (os indivíduos do grupo subprime) supostamente poderiam pagar aos de cima juros mais altos. O sistema pactuou os sonhos dos "subcidadãos" com os sonhos das superinstituições financeiras.

As operações de financiamento imobiliário ao grupo de "subcidadãos" eram de alto risco por estarem garantidas pelo trabalho, por vezes, informal e por rendas, potencialmente, variáveis. E, finalmente, chegou o dia em que as garantias evaporaram. Chegou o dia em que as prestações da casa própria não puderam mais ser pagas. Uma das formas de pactuação dos sonhos foi estabelecer contratos de financiamento imobiliário com juros altos, mas com percentuais diferenciados ao longo do tempo. No começo do contrato, as taxas de juros eram baixas, depois eram muito altas para compensar a redução da primeira fase. Até o final de 2006, a maior parte dos contratos ainda estava na fase de juros mais baixos (e, portanto, a inadimplência era reduzida). Posteriormente, na fase de juros mais altos, a prestação elevada não cabia no rendimento dos "sub-cidadãos" e os empréstimos deixaram de ser validados. Esse é o desenho da crise de crédito que atingiu a economia norte-americana.

O sistema financeiro vendeu a dívida que carregava dos "subcidadãos" para as super-instituições, remunerando-as com elevadas taxas de juros, proporcionais ao risco da operação. Quando foi percebido que a dívida dos de baixo não estava sendo validada, decidiu-se vender o papel lastreado na capacidade de pagamento dos "subcidadãos". Quase que simultaneamente, todos tomaram a mesma decisão. Por razões óbvias, os papéis passaram a valer quase nada. Quando os preços de ativos entram em deflação aguda, diz-se, então, que o mercado entrou em crise de liquidez.

Esses papéis de alto risco e remuneração compunham o ativo de muitas instituições financeiras nos Estados Unidos. Os valores de passivos são mais rígidos do que de ativos. Se por um lado, a maior parte dos ativos das instituições financeiras é cotada pelo mercado, por outro, os seus passivos estão registrados em contratos. Assim, passivos e ativos se desequilibraram. Foi isto que tornou o capital de diversas instituições insuficiente para garantir a continuidade de suas operações. A terceira crise, então, adentrou a economia: a crise patrimonial. Primeiro foi a crise de crédito, que se transformou em crise de liquidez que, por sua vez, se transformou em crise patrimonial.

Instituições financeiras que não foram atingidas tão diretamente pela crise estão temerosas, decidiram retrair seus negócios: afinal, ao negociar um ativo, o devedor potencial pode ser um "subcidadão" oculto ou uma superinstituição em crise, mas sem sintomas externos. Se isto vale para o sistema financeiro, vale também para setor real da economia. Quem tinha planos de investimento em capital produtivo vai mantê-los na gaveta. O trabalhador sujeito a risco de renda (desemprego) vai reduzir a demanda para fazer um fundo de precaução. Portanto, o risco agora é de que haja uma quarta crise: uma crise de demanda por mão-de-obra, bens de consumo e capital produtivo. O canal mais objetivo de contaminação dessa próxima crise é a redução da oferta e da demanda por crédito, independentemente das taxas de juros cobradas ou oferecidas. O outro canal é subjetivo, é a desconfiança generalizada na capacidade de compra futura da economia, ou seja, mesmo aqueles que não necessitam do sistema financeiro para investir ou para produzir ou para consumir tenderão a se retrair.

Aviso aos liberais: esta crise é resultado da falta de regulamentação sobre as superinstituições financeiras e da falta de políticas públicas habitacionais para os "subcidadãos". Foi a falta de atuação do Estado e não a sua ação ativa que causaram a crise.

As políticas governamentais de resgate do sistema financeiro são todas necessárias. As políticas de compra de papéis que não valem o que mercado pagaria restituem o capital de instituições que poderiam falir. As benesses orçamentárias do governo que envolvem as transações de aquisições de instituições dentro do sistema financeiro são válidas. As intervenções diretas com re-capitalização e tomada do controle por parte do Estado são indispensáveis. Contudo, todas essas políticas são limitadas porque os canais objetivo e subjetivo de contaminação do setor financeiro para o setor real já estão abertos.

Uma política fiscal agressiva de gastos será necessária. Todas as políticas de salvamento de instituições financeiras podem restabelecer a saúde do sistema, mas não são capazes de restaurar a sua atividade. O saneamento do sistema é um problema objetivo, contábil. Contudo, sua atividade depende de sentimentos, conjecturas e temores tanto da parte do sistema financeiro quanto da parte do setor real. Toda a liquidez que poderá restaurar instituições financeiras e impedir que a crise atinja o sistema em sua totalidade pode ficar represada. Banqueiros e empresários não têm interesse em realizar negócios que podem não ser validados pelo consumidor final. A saída bem-sucedida deverá ser uma ativação dos negócios privados estimulada pelo setor público, que deverá realizar gastos, contratar mão-de-obra e transferir renda àqueles que têm alta propensão a gastar (que são os "subcidadãos) e, portanto, não vão represar liquidez.

Caso as políticas do governo norte-americano sejam apenas de restauração do sistema financeiro, a economia dos Estados Unidos ficará patinando por algum tempo, que poderá ser longo. A economia japonesa já mostrou e tem mostrado que não vale a pena esperar. A diferença ensinada por J.M.Keynes entre as políticas de ampliação da liquidez e as políticas fiscais de gastos é que as primeiras são dependentes das reações, por vezes, pessimistas ou excessivamente cautelosas do setor privado, enquanto as últimas representam "remédio direto na veia", ou seja, compras diretas ao setor privado, contratações de mão-de-obra ou transferências de renda àqueles que gastam tudo aquilo que recebem e que, portanto, ativam os negócios privados da economia.

A crise financeira brasileira: uma análise a partir do conceito de fragilidade financeira à la Minsky

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