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Metafisica e modernidade

Por:   •  25/4/2015  •  Projeto de pesquisa  •  21.879 Palavras (88 Páginas)  •  188 Visualizações

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METAFÍSICA E MODERNIDADE NOS CAMINHOS DO MILÉNIO MIGUEL BAPTISTA PEREIRA O

Secularização, libertação bíblica, é uma «jóia da coroa» do milénio lapidada pela Modernidade Metafísica. Crítica à Metafísica Clássica >Nominalismo de W. Ockham, papel do homem moderno é relevante x filósofo alemão H. Blumenberg (1920-1996), Pedro da Fonseca (1528-1599) e Francisco Suárez (1548-1617) formação da «razão pura», séc. XVIII I. Kant crítica acerada. Modernidade dita  ruptura inaugural, centelha  Idade Média, razão moderna focos Maimónides, Averróis, Abelardo, Alberto Magno, Tomás de Aquino.

O primeiro milénio transferência ao  Ocidente, Metafísica platónica,  visão apocalíptica livro de Daniel ( redacção definitiva entre 168-164 A.C.) e Apocalipse de João e confirmações apocalípticas neotestamentárias (2Thes.2,1-12; Me.13; Lc. 17, 22-37; 19-41-44).

Presente da violência x da penúria e da exploração e o futuro da justiça, do serviço dos outros , da confiança mútua e de novas relações entre os homens caracteriza a experiência contrastiva do Apocalipse, luz x trevas, bons x maus, eleitos e «massa damnata». X –XIV  visão apocalíptica de Joaquim da Fiore x Metafísica platónica e aristotélica,  J. Duns Escoto 3 Nominalismo de W. Ockham , destruidor da Escolástica,  hoje reabilitado, ruptura gnóstica da ordem medieval e da legitimidade da Modernidade, sujeito pela sua auto- -conservação e auto-afirmação x Deus gnóstico de H . Blumenberg .

O nominalista moderno,  Modernidade segundo começo da Metafísica» continuada por dois professores de Coimbra, Pedro da Fonseca e Francisco Suárez, influência filosofia dos sécs. XVII e XVIII contribuiu «razão pura», Kant mais originais do milénio, «topologia do ser» centrada no acontecer, topos do dom, da liberdade e do agradecimento.

 A eco- -ontologia , Big-Bang tempo irreversível, «teoria do caos», a energia nuclear, redes de comunicação, globalização solidária, saltos ser temporal e em processo da evolução, código genético sondagem do inconsciente, realidade,  desde Heraclito.

«Metafísica» imposto à Teoria do Ser de Aristóteles por Andrónico de Rodes (séc. 1 A.C.)

Início, grego «metà» - está para além, acima das coisas sensíveis e presentes com que a Natureza nos presenteia, e, portanto, fora do tempo da geração, corrupção e mortalidade. Dimensão temporal do que chega e acontece depois, surpreende e muda, critica e renova.

Crítica de M. Heidegger novo sentido. Que é a Metafísica? (1929) e o La Remontée au Fondement de la Métaphysique, Kant e o Problema da Metafísica (1929) e lições publicadas Introdução à Metafísica (1935) e Os Conceitos Fundamentais da Metafísica (1929-30).Intacto  vínculo Filosofia x new Metafísica.

Termos heideggerianos, novo sentido de «metà»: «fazer»  suportar, sofrer, receber o que nos vem ao encontro, integrando-nos»

Deus do Antigo Testamento > Deus histórico:  Cristo, a figura central > Novo Testamento

«plenitude dos tempos», Platonismo Médio de Alcino (séc. II P.C.) pensamentos do Deus bíblico, proporcionaram predicar de Deus,  crítica directa às concep- ções dualistas gnósticas.

Séc. IV Constantino >Cristianismo novo império cristão o reino de mil anos da segunda vinda de Cristo, Apocalipse de João («et regnaverunt cum Christo mille annis» Apoc., 20, 5) parusia de  Cristo, com Satã. Só após mil anos seria libertado Satã para um combate final, que Deus venceria com fogo vindo do céu. Daí, a vinculação entre reino de mil anos e a vitória final.

Versão metafísica do Deus bíblico, identidade intemporal entre pensar e ser - J. Escoto Eriúgena viu o mundo «divina metaphora»
Nada é senão a aparição do que não aparece, a manifestação do oculto, a afirmação do negado, a essência superessencial, a forma informe, a medida incomensurável , o número inumerável, o peso do que de peso carece, a incrassidão espiritual , a visibilidade invisível, a localidade sem lugar, a temporalidade daquilo, que carece de tempo, a de-finição do infinito...»

«terceiro reino» do Nacional- -Socialismo

Sécs. XV e XVI movimentos milenaristas na Europa na América do Norte comunidades dos fins dos tempos,

O objecto da Metafísica >conceito de ser, Liberdade Criadora.

Aceleração secularização mediante força de liberdade.

Resistência mutabilidade sociais, ideal forma perfeita.

 A ordem é agora contingente confiada à liberdade dos sujeitos, estrutura da sociedade e relevância política contratos sociais da Modernidade. destruição do fixismo das espécies, séc. XIX, Ch. Darwin mutações e variações criadoras.

 O Iluminismo, reivindica autonomia, liberdade, estranho ao «sol inteligível» da República de Platão e III livro De Anima, dialógica da iluminação augustiniana por influência da Bíblia encontro de liberdades - a divina e a humana, auto-afirmação do sujeito humano.

Legitimidade da Modernidade - Apocalíptica judaica nas suas relações com o dualismo gnóstico e o Cristianismo.

O Nominalismo do séc. XIV destruiu «deus absconditus» despótico, arbitrário e rival do demiurgo do mundo.

«Omnipotência absoluta» do Nominalismo a máscara do génio maligno, o vírus da total destruição das constantes racionais da concepção humana de realidade.

A Modernidade é a auto-afirmação humana ou ruptura legítima, que supera o Absolutismo nominalista medieval tardio e, por isso, sem Cristianismo não seria pensável

Deus da salvação não é o Criador do mundo, é também a de Marcion, de «raro gabarito como teólogo» cujo «Deus absconditus» não é responsável pelo estado do mundo. O resultado foi um mundo sem salvação e uma salvação sem mundo, segundo Blumenberg, a gnose não foi plenamente superada e reapareceu no Nominalismo na figura do «Deus absconditus» e da sua soberania absoluta inconcebível, desencadeando o contra-movimento da afirmação de si mesma da razão.

 Deus nominalista «a Modernidade não começou como época do Deus morto mas como época do Deus oculto, do Deus abscôndito»

FALTA FAZER ABAIXO

Além de puramente arbitrário e de parecer igual a um morto, o Deus nominalista é supérfluo, como já viu o Epicurismo, quando o substituiu pelo acaso dos átomos, que se desviam das suas rotas paralelas, e dos seus turbilhões geradores de mundos: «O conceito de uma Vontade Absoluta é em si contraditório e, por isso, uma ficção quimérica» 47, além de ser a figura despótica do poder absoluto, que se furta a todo o reconhecimento e é expressão exemplar do «destino de uma época, cuja relação ao Absoluto parece não poder mais preencher-se com as figuras tradicionais» 48. Deste absolutismo e da reacção tenaz, que se lhe opôs, resultou o vazio, que a Modernidade será chamada a colmatar: «Sob a monstruosa pressão das exigências teológicas 44 ID., o.c. 143. 41 ID., o.c. 149. 46 ID., o.c.1.c. 47 ID., o.c. 165. 48 ID., o.c. 284. pp. 3-63 Revista Filos6fiica de Coimbra - a.° /5 (1999) Metafísica e modernidade nos caminhos do milénio 17 começa o sujeito humano a consolidar-se, a assumir uma nova socialização, que, relativamente à cilada da Vontade Absoluta oculta, possui a propriedade elementar do átomo de se não poder cindir nem mudar» 49. A destruição nominalista da ordem das essências elevou a auto-conservação nuclear do sujeito a tema da auto-apreensão do homem, obrigado agora a suportar o peso da sua auto-afirmação 51, que é o «mí- nimo antropológico sob as condições do máximo teológico» 51, a «pura imanência», que resiste à transcendência 52, a auto-conservação, privada de toda a teleologia 53. É o teocentrismo absoluto do «Deus absconditus» que provoca a antropocêntrica minimalista da auto-afirmação moderna do sujeito, visível na aliança entre auto-conservação e racionalidade em que a auto-conservação «não é apenas um novo princípio racional entre outros, é o próprio princípio da nova racionalidade» 11. A desumanidade gnóstica do Nominalismo com sua «torturante necessidade interior» legitima o desvio definitivo do olhar moderno da Omnipotência despótica e arbitrária para o sujeito, que apenas em si busca certeza e segurança. A perda da teleologia por parte da auto-conservação tornou a contingência facticidade pura, despida de possibilidades, que lhe outorguem inteligibilidade e, por isso, a destruição da teleologia gerou «um novo conceito de liberdade humana» 55, capaz de dominar a realidade mediante a ciência e a técnica. Blumenberg aproxima, por isso, o antigo Epicurismo do materialismo nominalista do começo da Modernidade: «Pertence aos fenómenos essenciais do início da Modernidade, certamente subvalorizados de bom grado, o facto de ela se tentar apropriar de novo do atomismo filosófico da natureza na forma, que lhe foi dada por Epicuro e Lucrécio» 56. Desta comparação ressalta a perda de finalidade e com ela a redução da contingência a pura facticidade: origem casual ou arbitrária de mundo, pluralidade de mundos, perda do posto privilegiado do homem no mundo com a morte da teleologia. Nestas condições, o homem despojado, no ocultamento de Deus, das suas garantias metafísicas quanto ao 49 ID., o.c. 225. 50 ID., o.c. 151, 152. St ID., o.c. 225. 52 ID., o.c. 202. 53 ID., o. c. 185. 54 ID., «Selbsterhaltung und Beharrung. Zur Konstitution der neuzeitlichen Rationalitaet» in : H. EBERLING, Hrsg., Subjektivitaet und Selbsterhalttotg. Beitraege zur Diagnose der Moderne (Frankfurt/M. 1976) 146. 55 ID., Die Legitintilaet der Neuzeit 150. 56 ID., o.c. 166. Revista Filosófica de Coimbra - n.° 15 (1999) pp. 3-63 18 Miguel Baptista Pereira mundo constrói para si um contra-mundo de racionalidade e disponibilidade elementares 57, que se chama «imagem mecânica» de mundo. Da facticidade despida de finalidade não se pode ler qualquer sentido que dê ao homem uma compreensão de si mesmo, pois à pergunta «Que é o homem?» o mundo fáctico não dá qualquer resposta. Blumenberg procura na imagem de mundo de Copérnico «a metáfora de uma extirpação crítica do princípio de teleologia» 58. 0 tempo do mundo, que ultrapassa as exigências da experiência e é a «mais amarga de todas as descobertas, a impertinência mais revoltante do mundo contra a vida» 5c', reduz o mundo humano a mero fragmento enquanto o tempo humano, em vez de enviar sentido à vida, degrada-a na facticidade de um episódio. Por outro lado, o mundo seria o mesmo, se nós jamais tivéssemos existido e será um dia o mesmo, como se nunca tivéssemos existido 61). Após a destruição de todos os absolutismos, só um permanece intocável - o do tempo e «a memória é precisamente a confrontação entre o tempo da vida e o tempo do mundo», a qual, presa da sua contingência, jamais consegue transpor a desproporção entre estas duas espécies de tempo. É a facticidade do tempo da memória que aviva «uma exigência do indivíduo de não ser esquecido para além do seu tempo de vida» 61 e nos faz suportar a insuportabilidade desta condição. A caducidade do tempo humano é vivida melancolicamente por Blumenberg num pressentimento da morte como um «trauma cosmológico», que acontece nesta terra ou «oásis cósmico em que o homem vive», «prodígio de excepção, planeta azul no meio do deserto celeste frustrante» 62. Do contraste entre terra-oásis e morte-trauma transparece o «grande valor com que a vida se apresenta e se furta a toda a evidência» numa posse vulnerável de nós mesmos, que nos faz experienciar a mortalidade 63. No livro Paixão segundo S. Mateus surpreende-nos Blumenberg com a afirmação de que o próprio Deus tem medo de algo diferente dele, neste caso, do homem e neste medo está a sabedoria, invertendo o sentido da sentença vetero-testamentária de que «o começo da sabedoria é o temor do Senhor» 64. Esta afirmação radica numa outra segundo a qual o 51 ID., o.c. 196 ss. 58 ID., Die kopernikanische Wende (Frankfurt/M. 1965) 128. 59 ID., Lebenszeit und Weltzeit 3 (Frankfurt/M. 1986) 76. 60 ID., o.c. 75 ss. ai ID., o.c. 302. 62 ID., Die Genesis der kopernikanischen Welt (Frankfurt/M. 1975) 793. fia J. GOLDSTEIN, o.c. 142-143. 14 H. BLUMENBERG, Matt/iaeuspassion (Frankfurt/M. 1988) 29, 30. pp. 3-63 Revista FilusóJica de Coimbra - n." /5 (/999) Metafísica e modernidade nos caminhos do milénio 19 mandamento originário da auto-conservação seria promulgado para protecção do próprio Deus de quem se predicaria a estrutura do cuidado, pois é «um risco ser um Deus» 65. Nasceu a rivalidade Criador-criatura como um duelo travado entre eles 66 e Deus separou da Fonte da Vida os homens, porque eles tornar-se-iam um dia rivais seus. Sendo a morte a separação da Fonte da vida, então «com a morte entrou o pecado no mundo e não inversamente » 67, como diz Paulo na Carta aos Romanos, 5, 12. O pecado é aqui a angústia resultante da preocupação do homem por apenas possuir uma visão fragmentária da vida, pois a finitude da vida «impede aquela serenidade na obtenção dos nossos fins», que não exclua a dos outros 68. A cópula imediata entre morte e pecado levou Blumenberg a interrogar se Deus teria podido prever esta consequência da sua criação. Contra a opinião de Epicuro de que os deuses estão isentos de cuidados, defende Blumenberg em Deus um cuidado pelo mundo, que identifica com intencionalidade 69 ou estrutura da consciência, que se pode descrever como relação constante entre sujeito e objecto no sentido de necessidade, que a Subjectividade Absoluta tem de mundo. Deste modo, a carga do cuidado afecta não só o homem mas também a divindade, que neste caso vai tornar em mundo melhor a figura gnóstica da criação. Esta relação a mundo assume também a forma de uma imitação da mortalidade do homem por parte de Deus, que «deveu ganhar genuína e autenticamente a `intuição ' do homem e tornar-se capaz da dor e da morte» 70, a fim de se poder sentir corporeamente como ele expulso do paraíso, reduzindo- -se a incarnação a um acto de imitação 71. Por esta lógica mimética da paixão, o Criador submete-se às regras de um jogo linguístico, que pressupõe a estrutura do comportamento intersubjectivo. Se não houvesse um comportamento doloroso pré-linguístico natural , seria impensável aprender- se um comportamento linguístico 72. Na leitura de Blumenberg, Deus teve medo da igualdade potencial do homem e, por isso, separou-o da árvore da vida mas sem possuir em definitivo um saber prévio sobre a dor e a morte, que só conheceu, integrando-se no «jogo linguístico» dos homens. Por isso, «a incarnação não foi a hipérbole de um amor divino 65 ID., o. c. 92. 66 ID., o.c. 28 ss., 103. 67 ID., o.c. 125. 68 ID., Arbeit am Mythos 285. 69 ID., Die Sorge geht ueber den Fluss (Frankfurt/M.) 285. 70 ID., Matthaeuspassion 126. 71 ID., o.c.l.c. 72 ID., Hoehlenausgaenge (Frankfurt/M. 1989) 787. Revista Filosófica de Coimbra - ti." /5 (/999) pp. 3-63 20 Miguel Baptista Pereira mas a compensação de uma falta divina de evidência» 73. O envolvimento de Deus no mundo é «queda» ou atracção nascida do desconhecimento das consequências da finitude. Esta possibilidade de Deus realizar um acto de sentimento arranca-o à sua auto-suficiência e condu-lo a uma absorção total na realidade, que só na morte termina: «O Logos seguirá o homem até à morte» 11. Neste denário dramático, o acontecimento da paixão é o ponto culminante de uma tragédia, que o ouvinte pós-cristão pode viver esteticamente e à distância na Paixão segundo S. Mateus de Bach, em que a música permite a identidade entre o Deus da salvação e o Deus do mundo 71. Nesta obra musical, lateja a unidade da morte de Deus e do fracasso da criação, da consonância do réu e do queixoso em que a música impede a invasão da dissonância, isto é, da pergunta sempre aberta pelo sofrimento. Na música de Bach pressente Blumenberg «outra realidade» 76, porque «o desespero dos homens termina, onde o Deus experiencia os limites do seu poder» 77. Esta «outra realidade» sem criação fracassada nem salvação despótica é a «realidade» da consolação, do realismo pacífico a reclamar a «habitabilidade da terra» contra a desvalorização gnóstica 78, é a imortalidade finita após a morte de Deus numa Modernidade em que não há alternativa para a terra nem para a razão humana 79. Não admira que no centro do pensamento de Blumenberg esteja o problema da consolação 80, que leva o homem a procurar imagens, símbolos e representações de desejos para não ter que fracassar na realidade dura e bruta. Nesta linha de pensamento, há uma busca frenética através da tradição apocalíptica de protestos contra a ideia de «uma justiça inexorável... apesar da morte do salvador na cruz» 81, de outro conceito de justiça, que ouça as perguntas silenciosas da «massa damnata», de informação quanto à consistência no homem da esperança ineliminável de consolação, mau grado a imagem rigorosa de um Deus-juíz, da notícia do 73 ID., Mattaeuspassion 126. 74 ID., o.c. 16. 75 Cf. P. BEHRENBERG, Endliche Unsterblichkeit. Studien zur Theologiekritk Hans Blmnenbergs (Wuerzburg 1994) 179. Cf. U. RUH, «Hans, Blumenbergs `Mattaeuspassion: eine Christologie' nach dem Tod Gottes» in: G. RISSE-H. SONNEMANS-B. THESS, Hrsg. Wege der Theologie: an der Schwelle zuni dritten Ja/irtausend (Paderborn 1996) 177-186. 76 HANS BLUMENBERG, Mattaeuspassion 248. 77 ID., Arbeit am M_rthos 343. 7s ID., Die Genesis der kopernikanischen Welt 665. 79 ID., o.c. 794. 10 P. BEHRENBERG, o.c. 183 ss. 81 H. BLUMENBERG, Mattaeuspassion 252. pp. 3-63 Revista Filosófica de Coinibra - n.^ 15 (1999) Metafísica e modernidade nos caminhos do milénio 21 terror e choro de Paulo, que, segundo um escrito apócrifo, visitou o inferno e intercedeu pelos condenados, do «descanso de sábado» no próprio inferno em que o tormento eterno é suavizado pela consolação de uma interrupção , de sinais de como a sentença eterna se verga à exigência humana de consolação, situando na sua verdadeira luz as experiências de culpa e de perdão. O percurso pela Apocalíptica na busca de satisfação de exigências humanas contrasta em Blumenberg com a situação de Job, cuja consolação assentava numa submissão à omnipotência de Jahve e era um abandono definitivo do homem e das possibilidades próprias, que ele na sua finitude procura realizar. A «arte de viver» realiza-se na vontade autónoma de finitude, que se reconhece intransponível e, ao mesmo tempo, reclama «consolatio» no meio das próprias catástrofes 12. Esta vontade de finitude com suas possibilidades assustou no duelo o rival divino: o temor, que assaltou o Senhor, deve ter ido muito longe, «quando a `morte de Deus' foi a ameaça última do homem na sua auto-promoção a super- -homem» 83. Preso da polimitia antropomórfica no melhor estilo da Pós-Modernidade e de uma fantasia dilacerada por uma Omnipotência, que não baniu o sofrimento, Blumenberg percorre a literatura apocalíptica e gnóstica dos primeiros séculos sem atender ao sentido de realidade, que historicamente presidiu à recepção das categorias do Platonismo Médio para dizer a fé cristã, ameaçada pelas narrações do imaginário -nóstico. Entre terror e consolação num universo dessacralizado, o homem de Blumenberg não se sente reclamado pela realidade em processo de um mundo no tempo, contingente, mutável, que ainda não transitou em julgado e cujos códigos de justiça têm os limites dos fenómenos histó- ricos. De lutadores teomáquicos tornaram-se os homens «imortais finitos», para quem a morte é traumatismo numa terra habitável após a morte do Demiurgo e do Juíz de todos os rigores. Com a eliminação da teleologia, eclipsaram -se os horizontes de sentido e a facticidade humana desistiu da vocação de dar voz ao mundo histórico. Destruída a Metafísica existente sob a roupagem do dualismo gnóstico ou da harmonia cristã augustiniana, a liberdade perdeu-se entre a casualidade e o arbítrio despótico. Ora, sob o apelo do que há que dizer histórica e concretamente, todo o pensamento é livre no sentido em que a sua liberdade não é arbitrariedade mas correspondência e fidelidade, apesar de repassadas de contingência. Foram conceitos metafísicos como os de substância, essência, natureza, pessoa, subsistência , que, embora estranhos à Bíblia, serviram os primeiros quatro 82 P. BEHRENBERG, o.c. 182-188. 83 ID., o. c. 30. Revista Filosófica de Coimbra-n." 15 (/999) pp. 3-63 22 Miguel Baptista Pereira concílios ecuménicos, dado o poder de dizer a realidade, que a cultura do tempo lhes atribuía 84. A crítica às categorias gregas usadas na estruturação da Teologia Cristã e que no séc. XIX A. von Harnack interpretou como franca oposição baseada na incompatibilidade radical entre Helenismo e Cristianismo 85, depreende-se já da constatação de J. Duns Escoto de que, sem um conceito de Liberdade Criadora, «os filósofos em geral são unânimes em aceitar que a Causa Primeira, de modo necessário e determinado pela sua natureza, produz os efeitos imediatos do seu agir» 86. A relação entre Liberdade Criadora e os seres criados foi tratada na distinção entre potentia absolttta e potentia ordinata, que nada tem a ver com arbítrio e despotismo mas traduz a distância entre a concepção antiga e necessária de natureza geradora e a concepção livre de criação. Por esta distinção, respondia-se à questão se as leis da lógica e da natureza eram necessárias ou contingentes: segundo a potentia absoluta, essas leis são contingentes e podem a cada momento ser revogadas; na economia da potentia ordinata, isto é, uma vez escolhida por Deus uma determinada ordem, as leis são, nesta hipótese, necessárias 87. Em qualquer dos casos, as leis da natureza, mais tarde chamadas verdades de razão, repousam sempre na Liberdade Criadora e não numa Necessidade Cósmica, absoluta e sacralizada nem no arbítrio ditatorial ou no acaso. Às leis necessárias da lógica humana, que medem as possibilidades do nosso conhecimento, não está sujeita a Liberdade Criadora e, por isso, o que é possível à finitude do nosso pensamento, não coincide necessariamente com o realmente possível. Espelho e prisão da nossa finitude, a estrutura lógica do pensar impede-nos de apreender o que é possível à Liberdade Divina, podendo acontecer que a nossa estrutura mental nos obrigue a pensar necessariamente como real o que de facto não é, ou a não poder pensar o que verdadeiramente é real. Na sequência da teologia como scientia practica de Ricardo de Mediavilla, J. Duns Escoto instalou a liberdade na raiz de todas as leis da natureza, do pensamento e da sociedade, abrindo uma ruptura no cosmos sensível e inteligível grego, interpretada depois como nominalismo e voluntarismo irracionais 88. Era a presença da liberdade não só no 84 M. B. PEREIRA, Modernidade e Secularização (Coimbra 1990) 367. 85 A. von Harnack , Lehrbuch der Doginengeschichte I-II-111 (Freiburg/ Breisgau 1886-1890). 86 J. DUNS SCOTUS, Opus Oxoniense 1, d. 8, q. 5, a. 2. rir. 13. 87 H. KRINGS, System und Freiheit. Gesannnelte Aufsaetze (Frei burg/Muenc hen 1980) 47-52. 88 ID ., o.c. 50. pp. 3-63 Revista Filosófica de Coimbra - a." 15 (1 999) Metafísica e modernidade nos caminhos do milénio 23 indivíduo , no concreto, no diferente, no único, deixando-os ser na sua densidade mas também na superação dos sistemas, que ela determina. Aflora aqui um novo paradigma de pensamento em que a vontade livre é aquele hiato no movimento cíclico, que elimina o modelo cósmico da Metafísica Clássica, abre o mundo do imprevisível, do outro, da ordem nova, que a liberdade traz. A pergunta radical transcende agora o mundo das formas, das leis e das essências, para visar o seu fundamento autêntico, que é o «facere de potentia absoluta», sem limites impostos por qualquer lei ou natureza eterna mas capaz de os rasgar sem com eles se identificar, como o improgramável de toda a programação. Entre W. Ockham e Kant, a liberdade identificou-se com razão legisladora, universal e autónoma e o homem sentiu -se responsável pela ordem e sistemas por ele criados. Impôs-se a justificação ou legitimação da construção humana de mundo, de ordem e de sistema, que a filosofia enquanto distinta da teologia não poderia encontrar na justificação pela fé de Lutero, na graça da teologia católica , nas crenças apocalípticas e gnósticas mas na exigência incondicionada , que tornava ética a acção humana. Por isso, a crítica de Kant deslocou-se da acção na sua estrutura histórica, política e de prá- tica de costumes para a sua origem acósmica - a boa vontade ou vontade racional incondicionada, que permanece absoluta nas circunstâncias empíricas , adversas ou favoráveis, da acção. Perguntar pelo acto livre é perguntar por uma acção, que não é determinada segundo a lei da causalidade física, é suspender o sistema da razão teórica estruturado segundo causas e com ele a ciência empírica, é transcender as fronteiras do racionalismo dogmático e do seu espírito de sistema. Nesta transcendência, experiencia- se um excesso, que « determina a determinação», como prova o combate histórico pela liberdade política ou pela auto-determinação dos povos ou do cidadão dentro do Estado. A liberdade não é pura abolição da determinação ou de qualquer sistema de ordem mas a livre posição da determinação em que se suspende o reino da causalidade, abrindo-se uma diferença em que se situa a acção originária da liberdade, que assume ou recusa a regra das acções empíricas e seus condicionamentos. Pela diferença, a liberdade não é arbítrio mas posição de sistema ou ordenação, desde o sistema da natureza , da família ao sistema social, político e religioso. A relação entre o momento primeiro ou transcendental da acção e o seu momento empírico é uma relação de fundação, onde se insere a distância e a diferença entre fundamento e fundamentado e, por isso, a afirmação da liberdade é a fundação da determinação e da necessidade. Pela distanciação na proximidade, diferença e afirmação da acção da liberdade, a necessidade muda de qualidade, deixa de ser fáctica para ser fundada. Quando, porém, o sistema perde a sua relação à liberdade e, com ela, a densidade na presença e a diferença, surge a coacção, a necessidade Revista Filos ófica de Coimbra - n.° 15 (1999) pp. 3-63 24 Miguel Baptista Pereira bruta e toda a espécie de manipulações. Os sistemas de liberdades concretas não esgotam a liberdade transcendental, pois, embora sejam concretizações ou objectivações da liberdade, estão sujeitos a condições e limites históricos, isto é, a diferença entre liberdade originária e seus sistemas de concretização é ineliminável. A libertação total do homem através da exclusão anárquica de todo o sistema e a sua plena subjugação a um definitivo encadeamento sistemático são duas formas opostas da mesma negação da diferença entre liberdade e sistema. A liberdade, ao determinar uni sistema, que impossibilita a liberdade ou a destrói, converte-se em alfobre do mal. Assim, aniquila-se a liberdade, quando se rejeita toda a possibilidade da sua concretização e, neste caso, o mal é a «egoidade absoluta» ou a posição abstracta e imediata do eu, que nega todo o sistema de liberdade, como está patente no arbítrio da tirania e do anarquismo. Por outro lado, a identidade plena entre a liberdade e sistema, que define o totalitarismo, elimina, com os seus subsistemas, a diferença e, nesta negação radical, está outra forma suprema de mal 89. Nenhuma síntese ou identidade pode abolir a diferença entre liberdade e sistema e, por necessária que seja a ordenação concreta da vida humana, resolvida historicamente de muitos modos, a liberdade continua transsistémica. Ao criticar a ordem abstracta das essências e o seu encadeamento necessário, que se tornou património das filosofias do Espírito, W. Ockham esboçou uma crítica à Metafísica, que era um projecto seminal de uma filosofia do indivíduo extático num mundo contingente e da Liberdade Criadora. Em vez de chegada ao concreto plural e de enigmática incarnação, na tradição da Metafísica Ocidental desde Platão, Aristóteles até Hegel, a liberdade foi entendida como libertação da sensibilidade, com emancipação da escravatura da matéria ou, por outras palavras, como «espiritualização», em que eram vivos os traços gnósticos. O acto de conhecimento intelectual, pela abstracção da singularidade e da multiplicidade material, libertava o conteúdo universal, a estrutura racional, que era o essencial de cada sendo e a unidade, que a exterioridade da matéria multiplicara. Distanciação, abstracção e conceptualização são momentos da «espiritualização» filosófica e o cume supremo do conceito, que é o conceito do conceito, coincide com o ponto mais alto da liberdade, segundo a tese fundamental da Fenomenologia do Espírito de Hegel 90 Para esta Metafísica, o fim da vida humana é a eliminação da dimensão corpórea do homem pela sua absorção na racionalidade e universalidade 89 ID., o .c. 32-39. 90 Cf. G. W. F. HEGEL, « Phaenomenologie des Geistes » in: ID., Werke in zwanzig Baenden, hrsg ., v. E. Moldenhauer/K. M. Michel , III (Frankfurt/M. 1970) 11-67, 575-591. pp. 3-63 Revista Filosófica de Coimbra - ti.` 15 (1999) Metafísica e modernidade nos caminhos do milénio 25 do saber puro. O sendo, o homem e o mundo são estádios transitórios da realização do espírito ou super-estrutura racional absolutamente transparente, que seria um deus vendo-se na claridade absoluta de si mesmo. Privado de todo o sentido incondicionado, o mundo concreto, povoado de indivíduos, da praxis humana seria apenas lugar de passagem ou meio conducente à teoria pura e a morte uma libertação da alienação e exteriorização do espírito 91. À abstracção e universalização do imperativo categórico de Kant, visíveis na extensão da máxima do agir a toda a acção possível, a todo o homem em qualquer tempo e lugar, segundo o estilo da Metafísica do Espírito, contrapõe-se o imperativo histórico oriundo da consciência do apelo e da valorização do indivíduo e da matéria, das relações concretas entre os homens e da originalidade das situações históricas: «Faz o que mais ninguém pode fazer e o que tu na comunidade podes assumir como a tua exclusiva tarefa no momento presente» 92. Ao espírito da abstracção e da universalidade opõe-se a liberdade plural, condicionada por situações novas e, ao mesmo tempo, incondicionada em virtude do apelo, que a constitui ouvinte do que vale a pena realizar. Contra esta liberdade em situação concreta, a ideia de espírito totalmente liberto de todas as coacções e limites da natureza, arrancado ao mundo, à corporeidade e à história concreta e social dos homens, seria um ideal de desmaterialização, que aniquilaria totalmente o homem, como se este fosse um pneumático gnóstico. Em vez de vidente puro, o homem é um actor, que se responsabiliza por outros, pela forma presente de mundo e pelo papel que nele assume e só é autenticamente actor no mundo pela liberdade apelada incondicionalmente a criar com outros formas e estruturas históricas de convivência e de vida. Contra a deserção e o abandono gnósticos do mundo e da condição humana, o esquecimento do ser e a consagração definitiva do círculo monológico do pensamento 93, o mundo é recebido numa filosofia da liberdade não só como dado mas sobretudo como tarefa ou realidade futura a que urge preparar a figura no presente humano numa correspondência e fidelidade às exigências históricas de realização do homem e seu mundo. A transcendência metafísica como libertação do tempo e da alteridade, do corpo e da terra, é a-histórica, impessoal, anónima e monológica, desvaloriza a originalidade do indivíduo, a corporeidade e a diferença; pensada, porém, a partir do concreto extático, é caminho para o mundo real, é êxtase temporal, é 91 Cf. M. MUELLER, Philosophische Anthropologie, hrsg. v. W. Vossenkuhl mit einem Beitrag «Zur gegenwaertigen Anthropologie» (Freibtirg/ Muenchen 1974) 109-110. 92 ID., o.c. 112. 93 ID., O .C. 120-122. Revista Filo sófica de Coimbra - n.° 15 (1999) pp. 3-63 26 Miguel Baptista Pereira afirmação de alteridade e de diferença, é, numa palavra, relação essencial ao outro no abismo misterioso do tempo. Nesta perspectiva, uma Filosofia da Liberdade é superação da Metafísica do Espírito, pois «enquanto o espírito é o fundamento a priori transparente, a liberdade é aquele abismo, que é mais profundo do que toda a fundamentação» 94. Contra o «deus absconditus» arbitrário e ditador, é pelos caminhos de «lex libertatis» do Evangelho, de um mundo que pode ser melhor e do advento ou êxtase da Liberdade Criadora, que Ockham prepara o «reino da liberdade», que no séc. XVIII Kant aprofunda na sua conhecida doutrina dos postulados, enraizando a acção moral na crença do nosso chamamento à realização da liberdade, como seres inteligíveis, membros de um mundo moral e inteligível para lá do reino da natureza a que chamou «reino da liberdade» 95 II Quando se buscam os pressupostos históricos da Filosofia Transcendental de Kant nas filosofias aristotélico-escolásticas e racionalistas dos sécs. XVI a XVIII, depreende-se com meridiana clareza que a novidade da Metafísica Moderna e da Crítica da Metafísica não se pode esclarecer sem o conhecimento prévio do legado medieval, como aliás a Metafísica da Idade Média não se pode avaliar com justeza sem o conhecimento dos seus efeitos históricos futuros 96. No começo do séc. XVII, os luteranos necessitavam de uma Metafísica para a sua construção teológica e foram as Disputationes Metaphysicae do professor de Coimbra F. Suarez (1597) a sua fonte permanente na Universidade de Helmstedt, donde irradiaram para Wittemberg, Jena, Leipzig, Tuebingen e Rostock. A luz da distinção entre filosofia e teologia estabelecida desde o séc. XIII, vigorava uma Ontologia Racional comum à Espanha Católica e à Alemanha Luterana e, 94 ID., o.c. 130. 95 Cf. 1. KANT, «Die Religion innerhalb der Grenzen der blossen Vernunft» in: ID., Schriften zur Ethik und Religionsphilosophie (Wiesbaden 1956) 738: A. HABICHLER, Reich Gottes als Thema des Denkens bei Kant. Entwicklungsgeschichtliche und systematische Studie zur Kantischen Reich-Gottes-Idee (Mainz 1989) passim. 96 L. HONNEFELDER, Scientia Transcendens, Die formale Bestimmung der Seiendheit und Realitaet in der Metaphvsik des Mittelalters und der Neuzeit (Duns Scotus- -Suarez-Wolff-Kant-Peirce) (Hamburg 1990) IX. pp. 3-63 Revista Filosófica de Coimbra - n.° 15 (1999) Metafísica e modernidade nos caminhos do milénio 27 onde as armas consolidaram a divisão religiosa, uniu a Filosofia 97. Neste contexto, a influência da Metafísica Escotista de modo algum se esgotou nas formulações académicas da Idade Média tardia mas através da sua influência em Pedro da Fonseca, F. Suárez e Ch. Wolff tornou-se a posi- ção medieval, que mais profundamente marcou a Metafísica Moderna. Pertencendo já à segunda geração de críticos de Aristóteles, J. Duns Escoto não discute apenas com Aristóteles e seus intérpretes árabes mas também com autores latinos, que interpretaram Aristóteles, como H. de Gand, E. Romano, G. de Fontaines, Tomás de Aquino e desta atitude crítica proveio uma Metafísica como «scientia transcendens», que visava possibilitar a Teologia Cristã mediante um conceito de «ente» e respectivas propriedades, que transcendem as categorias: «... et hanc scientiam vocamus metaphysicam, quae dicitur a meta, quod est trans et physis... scientia, quasi transcendens scientia, quia est de transcendentibus» 98. O ente não é o máximo no sentido do todo essencial compreensivo visado por este termo mas simplesmente o mínimo contido em tudo aquilo que se sabe, segundo um paralelismo transcendental ou noético-noemático e a que são atribuídos de facto mas não por dedução modos disjuntivos como possibilidade-realidade, necessidade-contingência, finito-infinito, numa demonstração a posteriori ou quia e não a priori ou propter quid. O conceito escotista de ente, que é o mínimo da «nimia communitas», obtém- -se mediante um «transcensus», que avança para além das determinações categoriais, servindo de caminho à «ciência transcendental» para atingir o seu objecto. Este «transcensus» processa-se através de um regresso a um «conceito primeiro concebível de modo distinto» e cujo conteúdo é indecomponível em elementos mais simples e goza da certeza pre- -predicativa de «algo em geral» ou ente, que, situado na raiz última de todo o conceito, exclui pela sua simplicidade qualquer possibilidade de erro. Todos os seres categoriais pelo conhecimento são subsumidos sob esta unidade elementar de ente, que simultaneamente os transcende e lhes é comum. Neste sentido, o conceito de ente é unívoco e precede a substância e o acidente, o Criador e a criatura, como unidade transcendental e radical de significação, restringida à exclusão da contradição, que destruiria o pensamento e impossibilitaria a realidade, e à possibilidade de ser termo médio de um silogismo. O que permite ao ente presidir a esta grande comunidade transcendental, é a imperfeição e diminuição do seu 97 M. GRABMANN, Mittelalterliches Geistesleben, Bd. ll, Abhandlungen cor Geschichte der Scholastik und My,stik (Muenchen 1926) 538-539, Cf. J.-F. COURTINE, Suarez et le Système de Ia Métaphvsique (Paris 1990) 405-418. 98 J. DUNS SCOTUS, Met. Prol. n. 5, cit. por L. HONNEFELDER, o.c. XIV 21. Revista Filosófica de Coimbra - nP 15 ( 1999) pp. 3-63 28 Miguel Baptista Pereira conteúdo («conceptus imperfectus et deminutus»), cujo carácter de ultimidade simples impede de se desdobrar em algo mais cognoscível («per nihil notius explicatur»). O «transcensus» como via da Metafísica é a «resolutio» ou redução do saber conceptual das coisas ao saber do ente em comum, em cujo horizonte se deve conhecer a substância 99. Em vez de uma Metafísica da substância, aparece a «scientia transcendens» do sentido unívoco e transcendental do ente, que precede todos os géneros, categorias, modos e evita todas as implicações cosmológicas da Metafísica aristotélicu-aráhira. A análise ou aresolutio» termina na razão noético- -noemática de ente, pois, como observa M. Heidegger na sua interpretação de Duns Escoto, a noção unívoca de ente, a que a «resolutio» nos conduz, é a «condição de possibilidade do conhecimento do objecto em geral» 101. Enquanto primeira determinação fundante, o ente escotista é o momento último, que a «resolutio» ou análise atinge, passível de ser determinado por outros momentos, que se lhe seguem, segundo uma ordem de composição ou síntese. Enquanto a priori de todo o conhecimento, o ente só pode conhecer-se de modo distinto, porque não é resolúvel em vários conceitos, que o precedessem. Além disso, para que algo se conheça distintamente num conhecimento distinto, é preciso que seja preconhecido o ente, porque este está contido em todo o conceito. E necessário outrossim que se preconheçam conceitos mais universais antes de se captarem distintamente os menos universais em que aqueles se incluem 101. Assim, o ente retém a prioridade na ordem do conhecimento distinto enquanto ao nível do conhecimento confuso da ordem de síntese ou composição é a «espécie especialíssima» do singular o primeiro objecto do conhecimento humano: «O ente é o que em primeiro lugar é conhecido por nós num conhecimento distinto e num conhecimento confuso é a «espécie especialíssima do singular, que mais fortemente move os sentidos» 102. Entre a impossibilidade de redução do ente a algo mais simples e a sua composição posterior através de momentos seguintes, é possível um movimento circular do pensamento na tentativa de esclarecer a ideia de ente, dizendo que ela na sua simplicidade elimina o seu oposto, o não-ente e é negação da negação ou «hoc... cui non repugnat esse». Antes desta redução lógico-ontológica, leu Duns Escoto em S. Boaventura o conceito 99 L. HONNEFELDER, o.c. XVII. 100 M. HEIDEGGER , Die Kategorien - und Bedeutungsfeltre des Duns Scotus, GA Bd. 1 (Frankfurt/ M. 1978) 216. 101 J. DUNS SCOTUS , Ordinatio 1, d. 3, p. 1, q. 1-2. 102 ID., o.c. pp. 3-63 Revista Filosófica de Coimbra - n." 15 (1999) Metafísica e modernidade nos caminhos do milénio 29 de resolutio naturalis» 103 ou análise e redução do ente finito particular ao seu Princípio e Causa Universal. Em Boaventura há um conhecimento não- -temático, obscuro de Deus, que funda os múltiplos conhecimentos particulares das coisas e, por isso, «é de admirar a cegueira da razão, que não considera o que vê em primeiro lugar e sem o qual nada mais pode conhecer. Como a vista dirige o olhar para a multiplicidade das coisas e não vê a luz em si mesma, que lhe permite ver as restantes coisas, e quando vê a luz, não a descobre, assim a vista do espírito ao fixar-se nos entes universais e especiais não vê o Ser, que supera todo o género, embora Ele se apresente ao espírito e por Ele tudo seja conhecido». Neste itinerário analítico-regressivo, Boaventura distingue a análise em perfeita e imperfeita, conforme o esforço da redução continua ou não até ao Primeiro Ser 105, conhecido previamente num «contuitus» 106 cujo correlato é o «objectum fontanum» 107, que ilumina o espírito e os objectos imediatos. Esta luz inacessível e transcendente precede, como a priori teoló- gico, todo o acto de conhecimento objectivo mas nunca poderá aparecer nesta vida como objecto no horizonte dos nossos conhecimentos 101, embora seja a sua condição necessária de possibilidade. Duns Escoto segue a «resolução» ou via analítica de Boaventura na construção de uma Ontologia em que o ente é a condição suprema de possibilidade, que torna possíveis todas as regiões do conceber e dos respectivos objectos, como regra superior e a priori do pensar humano, que eleva activamente o conhecimento sensível a nível metafísico e atinge a plenitude da sua univocidade no conceito de Deus 109. Pela conaturalidade entre espírito e ser, a célebre e discutida distinção formal «ex natura rei» realiza o paralelismo noético-noemático entre acto de conceber e realidade concebida, fazendo corresponder a todo o conceito distinto uma entidade objectiva distinta, mediante uma apurada analítica dos múltiplos aspectos, que todo o objecto unificado comporta. A «resolutio naturalis» mergulha longas raízes na recepção filosófica dos Elementos de Euclides, com relevância para a configuração clássica, que lhes deu Pappos de Alexandria (séc. III-IV), traduzido no séc. XVI por Frederico Comandino. A definição de análise e síntese de Pappos, que 103 Boaventura , II Sent. L. XV, d.4, a. 1. 104 ID., Itinerariunl Mentis in Deuin 111, 3. 105 ID ., I Sent. 28, dub. 1. 106 ID., 11 Sent. L. 111, d. 2, a. 2 ad 6. 107 ID ., In Hexanleron V, 33. 101 ID., o.c. XII, 11. 109 J. DUNS SCOTUS, Op. Oxon. 1, d. 3, q. 2, n. 10. Revista Filosófica de Coimbra - n." 15 (1999) pp. 3-63 30 Miguel Baptista Pereira se tomou clássica para a cultura ocidental , tem por pressuposto a dupla prática teoremática e problemática do processo geométrico e torna-se evidente se os princípios latentes da conclusão , que no texto são chamados «degraus seguintes », se interpretarem não como consequências lógicas numa perspectiva dialéctica descendente mas como implicações da conclusão ou subjacentes condições de possibilidade a que pela análise ascendemos , cabendo à síntese refazer o caminho inverso ou deduzir. Esta fase do método geométrico caracterizado pela precisão das definições, postulados e axiomas e pelo rigor dedutivo constituiu o ideal científico conhecido pela expressão « more geometrico demonstrare » 110. A «ciência transcendental » de Duns Escoto , provável autor de Theorernata, onde procede «more Euclidis» 111, é uma leitura ontológica da análise e síntese, que a Matemática clássica nos legou . A subida ao ser é um «transcensus», que parte do conceito e não do juízo, pois a todo o acto de conhecimento subjaz um dado pre-predicativo, oferecido pelo conteúdo do conceito simples. As consequências do conceito pre-predicativo dentro da «resolutio » são consideráveis para a Metafísica , pois neste caso a unidade transcendental do ente não é a de um conjunto causal de seres mas de predicado conceptual comum . Assim, a Metafísica só pode perguntar pela essência do ente, se interrogar o seu conceito e com ele o saber sobre o ente em geral e respectiva certeza, que se contém em todo o saber por mais determinado e concreto que seja. Dada a prioridade do conceito, o ente aparece como conteúdo , que só é no acto de pensamento , se, ao mesmo tempo, deste se diferenciar, como bem exprime o binómio «conceito formal» - «conceito objectivo » 112. Por isso, a Metafísica só pode tratar do ente como conceito objectivo , se na «resolutio» do conhecimento conceptual deparar com o conceito formal . Neste caso , torna- se evidente que a Ontologia, ao visar o ente e suas determinações, trata também dos princípios do conhecimento humano, mantendo o laço entre cognoscibilidade e ente dentro do paralelismo noético-noemático. Como mais tarde dirá Kant, as condições de possibilidade dos objectos da experiência apenas se podem conhecer, se elas forem conhecidas como condições de possibilidade da experiência destes objectos (KrV A 158/B 197). Começar pela «resolutio » do conhecimento conceptual é fruto da visão de que o sentido 110 Cf. M. B. PEREIRA, Ser e Pessoa. Pedro da Fonseca. 1. O Método da Filosofia (Coimbra 1967) 144. 111 ID., o.c. 253. n' Cf. W. M. NEIDL. Der Realitaetshegriff des Franz Suarez nach den Disputationes Metaphvvsicae (Muenchen 1966) 64-109; M. B. PEREIRA, O Princípio da Individuação na Metafísica de Pedro da Fonseca (Coimbra 1960) 43-52. pp. 3-63 Revista Filosófica de Coimbra - n.^ 15 (1999) Metafísica e modernidade nos caminhos do milénio 31 do ente se não pode esclarecer imediatamente perguntando «an sit» mas respondendo à pergunta «quid sit», pois só a partir do ser-possível se pode conceber o ser real e fáctico. A viragem suareziana inscreve-se na revolução ou destruição operada por Duns Escoto na articulação onto-lógica da Metafísica mediante as distinções essenciais por ele estabelecidas 113. Francisco Suárez (1548-1617) e Ch. Wolff (1679-1754) são os mais importantes transmissores aos sécs. XVII e XVIII da tradição escolástica metafísica , que veiculava a definição escotista de ente como «hoc cui non repugnat esse» e «quod natum est existere» 114, como resposta à pergunta nuclear «quid sit?». Nesta órbita localiza-se a contribuição do filó- sofo português e professor de Coimbra, Pedro da Fonseca (1528-1599). Segundo a redução essencialista deste filósofo, a conexão necessária entre sujeito e predicado é algo intemporal e, ao mesmo tempo, incausado, após lhe ter sido eliminado todo o conteúdo objectivo. Obtido assim um mínimo sintético , não é possível defini-lo positivamente por falta de conteúdo real nem é lícito reduzi-lo a uma ficção por ter um grau suficiente de objectividade para poder existir na realidade. Trata-se neste caso de uma «identidade puramente negativa», que nem é criada nem incriada 115. Esta identidade vazia ou síntese pura é a negação da diversidade entre o sujeito e o predicado e, como negação pura, não tem causa propriamente dita 116. Mesmo que Deus nada tivesse criado, as proposições «o homem é animal», «o homem é capaz de cultura» teriam a sua validade própria, pois estas conexões objectivas não estão sujeitas à lei da causalidade 117. A redução da síntese pura a uma relação não-contraditória atinge aquele mínimo residual que a torna igualmente aplicável a Deus, às criaturas e às próprias ficções, no espírito da «negação da negação» de Duns Escoto. Esta identidade negativa é a negação da contradição no pensamento ou na realidade. Só deixaria de ser real a redução mínima da conexão ou síntese pura se existisse a contradição, que ela nega. Como esta condição é impossível, a sua negação pode dizer-se real independentemente da operação do entendimento 118. Esta redução pura de Fonseca terá eco mais tarde na Crítica da Razão Pura de Katit: «Qualquer que seja o conteúdo do nosso 113 Cf. J.-F. COURTINE, o.c. 137-146. 114 Cf. L. HONNEFELDER , o.c. XIX. 115 PEDRO DA FONSECA, Cornmentariorum Petri Fonsecae Lusitani Doctoris Theologi, Societatis Jesu , In Libros Metaphvsicorum Aristotelis Stagiritae, Tornus Secundus, Lugduni, Ex Officina luntarum , M. D. XC, (CMA), 1.5, c. 5, q. 2, s. 2. 116 ID., o.c. q. 1, s. 4. 117 ID., o.c. q. 2, s. 2. 118 ID., o.c . q. 2, s. 1; q . 1, s. 4. Revista Filo sófica de Coimbra - o.° 15 (1999) pp. 3-63 32 Miguel Baptista Pereira conhecimento e o modo como ele se possa referir aos objectos, é a condição universal, embora apenas negativa, de todos os nossos juízos em geral que eles não se contradigam a si mesmos, caso contrário esses juízos em si mesmos nada são» (KrV A 150/B 189). Para Fonseca, o preenchimento das sínteses puras por conteúdos possíveis não é obra do poder humano mas pressupõe uma relação a Deus, porque da simples e vazia condição de possibilidade, que é a não-contradição, descemos à possibilidade positiva de existir ou à pre-existência do ente real nas suas causas. O ente é positivamente real antes da sua existência ou «extra-posição» fáctica e a sua possibilidade de existir como mínimo de realidade positiva é poder ser realizado por Deus. Neste sentido, a relação de causalidade dá um conteúdo positivo à negatividade das sínteses puras. O nosso conhecimento imperfeito pode analisar esse conteúdo sem o referir à sua origem divina, mas se a investigação penetrar na positividade das conexões objectivas encontrará na sua raiz uma relação a Deus 119 e não apenas ao poder constituinte da consciência, como exigiria Kant. Por isso, dentro do método analítico-sintético da Metafísica, Fonseca escreve que os significados imediatos de ente são todas as entidades simples ou não compostas por natureza comum e diferença contraente «como Deus, os géneros sumos e todas as diferenças», componentes imediatos não só das coisas que existem na natureza mas também das possíveis, que o poder divino pode realizar 120. Este esforço de redução pretende a pureza e o rigor do saber, que, fundado na prioridade real objectiva (in rebus suapte natura prioribus) tudo explica a partir do menor número de pressupostos (ex paucioribus enim principiis rem demonstrat eiusmodi scientia). Este critério de máxima redução leva-nos ao maior grau de universalidade (maxime universalia), radicalidade e simplicidade (prima et simplicissima) e, por isso mesmo, de maior certeza, dado o número mínimo de pressupostos em que se funda (... suapte natura certissima, ut quae paucissimis et simplicissimis principiis rem demonstret). Assim, é muito mais fácil provar que algo simplesmente existe do que existe por si ou noutro, pois o puro existir precede e é mais simples do que a existência afectada pelos seus modos 121. Fonseca está inegavelmente próximo das teses de fundo de Duns Escoto, sem contudo abdicar de observações críticas. O desdobramento mental das notas constitutivas da essência do objecto é o conhecimento distinto do todo essencial 122. Prosseguindo nesta análise da essência com- 119 ID., o.c.1.c. 120 ID., CMA, T. 1, 1.4, c. 2, s. 3. 121 ID., CMA, T. 1, 1.1. c. 2, expl. 122 ID., CMA, T. 1, 11, c. 2, s. 1. pp. 3-63 Revista Filnsú¡ita de Coimbra - n." 15 (1999) Metafísica e modernidade nos caminhos do milénio 33 posta, Fonseca chegou aos mínimos objectivos irredutíveis do Escotismo, as naturezas «simpliciter simplices ut a Scoto appellantur» e destas apresentou como exemplos, os géneros sumos e todas as diferenças específicas e individuantes além da natureza de Deus, simplicidade infinita em que tudo metafisicamente se resolve. A apreensão de uma essência simples, a que falta a composição para cair no círculo da penumbra cognoscitiva, é necessariamente distinta: «Nam qui simplex aliquid aprehendit, nihil essentiale in eo relinquit, quod particulatim non cognoscat» 123. O conhecimento da síntese essencial sem a destrinça dos elementos objectivos sintetizados é o conhecimento confuso do todo essencial e, por isso, as naturezas «simpliciter simplices» não podem ser objecto de tal conhecimento. Por esta adesão de Fonseca a Duns Escoto contra Caetano, o conhecimento confuso é sempre sinal infalível da multiplicidade interna do objecto, cuja análise geradora do conhecimento distinto conduz o espírito aos elementos simples criados e à simplicidade divina. Fonseca elevou o conhecimento confuso, ao contrário de Escoto e a exemplo de Caietano e do Ferrariense 124 a linguagem humana do ser e resultou o conceito formal de ente totalmente confuso ou parcialmente distinto e confuso 125, reservando para o conhecimento divino o conceito formal totalmente distinto, em que todas as coisas são dadas na limpidez dos seus elementos simples. A vinculação entre universalidade e simplicidade puras exprime-se modelarmente na univocidade escotista do ente e na unidade simples do ser com que o entendimento humano pode conhecer o múltiplo em Suárez e Wolff 126. Dentro desta universalidade transcendental e desta simplicidade pura, o ente reduz-se ao último momento, esvaziado de todas as determinações e capaz de resistir no seu minimalismo à própria contradição. Obtida pela « resolutio» ou análise regressiva a unidade do ser, a descida da «compositio» ou síntese realiza-se em Duns Escoto por modos como finito e infinito, necessário e contingente e diferenças simples, específicas e individuantes até à concreção máxima dos indivíduos, em Suárez pela explicitação da unidade potencial do ser como aptidão analógica por analogia de atribuição 127 para existir nos seus inferiores e em Fonseca pela contracção do ser análogo por analogia de atribuição 123 ID., o.c.l.c. 124 M. B. PEREIRA, Ser e Pessoa. Pedro da Fonseca 325. 125 PEDRO DA FONSECA, CMA, T. 1, 1.4, c. 2, q. 2, s. 3. 126 L. HONNEFELDER, o.c. 407. 127 Cf. JOSE HELLIN, S. J. La Analogia del Ser), el Conocimiento de Dios en Suarez (Madrid 1947) 103 ss. Revista Filosófica de Coimbra-n.° 15 (1999) pp. 3-63 34 Miguel Baptista Pereira e de proporcionalidade nas entidades simples possíveis como os géneros sumos e todas as diferenças pelas quais os géneros sumos se determinam nos seus inferiores até à constituição de todas as coisas, que actualmente existem na natureza ou podem existir 128. À diferença de Suárez, o ente significa imediatamente em Fonseca uma pluralidade de «entidades simples» como Deus, géneros sumos e as diferenças e, por isso, é análogo por uma dupla analogia , a de atribuição e a de proporcionalidade. Nesta posição do «Aristóteles português », o ente diz-se comparativamente mais de Deus do que das criaturas , mais da substância que do acidente e mais do ente real que do ente de razão . Nesta ordem descendente inscreve-se a analogia de atribuição , pois os analogados secundários são entes apenas por relação ao analogado principal . A analogia de atribuição precede metafisicamente a de proporção , porque só após a criação dos diversos entes é possível uni - los entre si e com Deus numa cadeia de proporções 129. Com a subjectivação kantiana do possível lógico e a inevitável referência à experiência, torna-se humanamente impossível a Metafísica e o ser converte-se em objecto transcendental imanente à consciência , que pelas categorias de quantidade , qualidade, relação e modalidade desce até à imediatidade das afecções empíricas da sensibilidade. Sob a influência de Duns Escoto, desenvolve- se na universidade alemã dos sécs . XVII e XVIII uma leitura da Metafísica como ciência transcendental . Assim, J. Scharf 130 continua no séc . XVII a teoria escotista do ente e suas determinações transcendentais e regista um duplo «transcensus» nos autores: o primeiro é o primado do ente ou simplicidade última e o segundo é o da comunidade de predicação a que o ente preside. Este paralelismo noético- noemático máximo entra na concepção wolffiana da Ontologia convertida em espinha dorsal da Filosofia em geral . Sendo o ente o conceito transcendental fundamental , a «scientia transcendens», de que falara Duns Escoto , é por essência Ontologia ou Ciência Fundamental, que nada tem a ver de facto com objectos reais e se ocupa apenas do que é conceptualmente possível ou necessário em todas as espécies de coisas em geral . É pela «resolutio » dos conceitos conduzida até ao conceito formal e objectivo de ser que a «scientia transcendens» da Ontologia funda as restantes disciplinas e não pela simples separação « a motu et materia» da Metafísica ou Transfísica clássica . Assim, o mundo existente é estudado segundo o que de comum a outros mundos possíveis contém 128 PEDRO DA FONSECA, CMA, T. 1, 1.4, e. 2, q. 2, s. 3. 129 ID., o.c. q. 1, s. 6 e 7. 130 J. SCHARF, Theoria Transcendentalis Printae Philosophiae, quam vocant Metaphysicam (Wittenberg 1624). pp. 3-63 Revista Filosófica de Coimbra - n." /5 (/999) Metafísica e modernidade nos caminhos do milénio 35 ou, por outras palavras, segundo os predicados abstractos do ente aplicados ao mundo em geral 131, como propusera Duns Escoto ao aplicar os conceitos de «Metaphysica Transcenderas» às «scientiae speciales». Nesta sequência, a novidade de Wolff está em quebrar a tradição, constituindo uma Cosmologia Transcendental por oposição a uma Cosmologia Empírica. É indiscutível a dependência da Ontologia Wolffiana relativamente à Metafísica escolástica da redução do ser ao mundo de possíveis e a condições puras de possibilidade. Wolff serve-se da terminologia de potentia e actus, de possibilia ou res possibiles e sua realização, de mundos possíveis ou sistemas de compossíveis e do mundo real possibilitado. Para Wolff, realidade é ainda realização de possibilidades metafísicas e o possível é também o que possibilita a realidade, que, na condição de possibilitada, é apenas um caso da série infinita de possibilidades 132. O conceito de filosofia de Wolff é, enquanto «scientia possibilium», ciência do possível enquanto possível e, simultaneamente, do seu fundamento. Desde muito cedo (1703 ou 1704), o objecto da filosofia foi reduzido por Wolff a diferentes possibilidades, independentes das proposições da Sagrada Escritura e para além da realidade fáctica. Pela filosofia como «rerum possibilium qua talium scientia» um filósofo não deve apenas saber o que pode ou não acontecer mas também as razões por que algo pode ou não acontecer. Por isso, filosofia como ciência é mais do que o conhecimento fáctico das causas de quaisquer coisas possíveis mas um conhecimento das condições de possibilidade de tudo. Aqui possibilidade estende-se não só a pressuposto real da existência mas a possibilidade de essência e a estrutura pensável de coisas ou relações. Neste caso, a verdade é o acordo do pensamento com as possibilidades das coisas abstraídas da existência. À ascensão às possibilidades essenciais ou condições de possibilidade corresponde também um saber do domínio técnico, que fornece as condições de realização. Por isso, o interesse de Wolff não termina na redução da realidade ao amplo reino dos possíveis mas alarga-se também às condições reais da realização dos fenómenos e, portanto, ao conhecimento principal ou essencial das causas 133. Neste contexto, tudo o que é possível ou fáctico, tem uma razão suficiente da sua possibilidade ou da facticidade, é isento de contradição e alicerça em 131 L. HONNEFELDER, o.c. 408-409. 132 W. SCHNEIDERS, «Deus est philosophus absolute summus». Ueber Christian Wolffs Philosophie und philosophus absolute summus» in: ID., Hrsg., Christian Wolff 1679- -1754. Interpretationen zu seiner Philosophie und deren Wirkung. Mit einer Bibliographie der Wolff-Literatur22 (Hamburg 1986) 22. 133 ID., O.C. 17. Revista Filosófica de Coimbra - n.° 15 (/999) pp 3-63 36 Miguel Baptista Pereira razões a possibilidade ou a realização. Enquanto o conhecimento geral ascende a partir da experiência ou da realidade ao que é possível, deve o sábio apresentar as razões por que é que determinado possível é possível. Por isso, a filosofia distingue-se de outras ciências, por um lado, por ser a ciência de todas as coisas possíveis e, por outro, por interrogar as condições de possibilidade de tudo o que é possível independentemente da sua existência. Neste contexto, há um possível que necessária e autonomamente existe - Deus. Por isso, para Wolff, a pergunta por todo o possível e pelo fundamento de todas as possibilidades converte-se inevitavelmente na pergunta pela última razão ou possibilidade de todas as possibilidades 134. A filosofia wolffiana desloca-se de uma investigação do real efectivo ou possibilitado para uma «ciência universal da possibilidade» lógica, real e metafísica, que exige a não-contradição lógica, não exclui a «ratio facti» e investiga a razão suficiente plena de todos os possíveis e possibilitados. Com a definição de filosofia como ciência do possível, pretendeu Wolff, por um lado, libertá-la da vinculação exclusiva à realidade e, por outro, atribuir-lhe o papel de investigar as razões e as condições universais de possibilidade de todas as coisas, incluindo o pensável e o seu reino de possibilidades e o possibilitante máximo, que é o único possível necessariamente real 135. Da omnisciência do Unico Possível Necessário, que, ao exaurir todos os possíveis, é «philosophus absolute summus» e por dominar os factos históricos é «historicus absolute summus» 136 participa o filósofo humano finito, que só suspendendo a existência fáctica ascende às possibilidades lógicas, físicas e metafísicas e abarca terminalmente o mundo a partir da Possibilidade, que existe por necessidade intrínseca. O possível articula o que poderia ser mas nunca foi nem é nem será, o que já foi e não será, o possibilitado e o fáctico, o que não é e há-de ser, ao Possível Necessário como laço do Universo. Se a filosofia como ciência das condições de possibilidade tem também a marca inconfundível de Wolff, foi A.C. Baumgarten que transmitiu a Kant, seu discípulo, o significado de «transcendental» e de «filosofia transcendental», claramente assinalado pelos traços da eidética conceptual de Duns Escoto e de Suárez. Para este mestre de Kant, as propriedades transcendentais verdadeiras, unas e perfeitas resultam da união harmoniosa dos predicados essenciais, isto é, o essencial é necessariamente transcendental. Continuando a vitória da essência, o ente é a união de predicados 134 ID., o.c. 18. 135 ID., O.C. 22-24. 136 ID., o.c. 25-26. pp. 3-63 Revista Filosófica de Coimb,Li -n.° 15 (/999) Metafísica e modernidade nos caminhos do milénio 37 essenciais , que não se contradizem entre si nem com a existência e donde resultam os atributos transcendentais clássicos. Na síntese de Baumgarten, «eliminada a essência, desaparece o ente; eliminado algo de essencial, sucumbe a essência e com ela o próprio ente» 137. A harmonia entre predicados essenciais e a existência possível é a «determinação possível interna» do conceito formal e objectivo de ente. Neste contexto, é consequente a definição kantiana de transcendental, que religa objectos e conceitos a priori: «transcendental é todo o conhecimento, que se ocupa não só de objectos mas dos nossos conceitos a priori de objectos em geral» (KrV A lls/B 25). De início, a proximidade de Baumgarten induziu Kant à distinção entre transcendental e metafísico, circunscrevendo o transcendental às propriedades que resultam da essência e o metafísico à essência enquanto raiz das suas mesmas propriedades. Porém, na Crítica da Razão Pura, § 12, Kant já fala de «predicados pretensamente transcendentais das coisas», que não passam de «exigências e critérios lógicos de todo o conhecimento das coisas em geral» e objecta à antiga filosofia transcendental que ela «transforma negligentemente em propriedades das coisas em si estes critérios do pensamento». É a ligação às coisas, às suas diferenças e determinações que uma «ciência de coisas em geral» tem de interceptar, para apenas tratar da razão pura e se tornar filosofia transcendental 138. A validade desta filosofia vai depender da sua vinculação à experiência sensível, pois a Ontologia como sistema de todos os conceitos do entendimento e de princípios exige a referência destes a objectos, «que podem ser dados aos sentidos e, por isso, podem ser comprovados pela experiência » 139. O conceito escotista de ente era «diminuído e imperfeito» e, por isso, não coincidia imediatamente com a realidade, chamada por Kant coisa-em-si. Também Suárez reconhecia que a unidade abstracta do seu conceito de ser era produto de uma «denominação do intelecto» e, portanto, só incompleta e imperfeitamente correspondia à realidade «ut est in se» . Por isso, entre a representação, o representado na mente e o real há de facto uma «imperfecta similitudo» 140. O conceito totalmente confuso ou parcialmente confuso e distinto de ser em Fonseca traduz também 137 É a síntese do § 63 da Metafísica de Baumgarten : « Sublata essentia , tollitur ens. Sublato essenciali , tollitur essentia , hinc ens ipsum». 131 I. Kant , Refles. 5129, Ak. Ausg. XVIII, 100. 139 ID ., Welches siud die wirklichen Fortschritte, die die Metaphvsik seis Leibnizens und Wolffs Zeiten in Deutschland gemacht hat' A 10, cit. por L. HONNENFELDER, o.c. 413. 140 FRANCISCO SUAREZ, R. P. FRANCISCI SUAREZ E SOCIETATE JESU OPERA OMNIA EDITIO NOVA ( Paris 1877), Disputado 2, sectio 6, n. 10 e 12. Revista Filosófica de Coimbra - a." 15 (1999) pp. 3-63 38 Miguel Baptista Pereira a imperfeição e finitude do modo humano de referência à realidade. Purificada da facticidade e instalada no reino do possível, a razão avança na rarefacção do conceito de ser, que, de modos diversos, transparece deste trio essencialista. No seu sentido mais universal, o ente escotista estende- -se a tudo o que não é nada e o nada é o que implica contradição e, como tal, exclui o ser no intelecto e fora dele. Assim, não é pensável como algo inteligível (unum intelligibile) a junção de dois conteúdos contraditórios e o «puramente nada» (simpliciter nihil) apenas se pode pensar como algo, que em si inclui contradição ou inconciliação formal de determinações 141. Porém, só de uni ente positivo se pode predicar a negação da auto-negação ou a exclusão do que o elimina, pois todo o ente, que é algo, por natureza (ex natura rei) não é o seu contraditório. Esta negação natural pela qual o ente exclui tudo o que o nega («entitas negativa ex natura rei»), precede todo o acto intelectual de negação e funda-se na positividade do ente como toda a afirmação e o restante conhecimento. Por «ex natura rei» designa-se a raiz do sentido da negação da contradição e da identidade do conhecimento como algo, que, ao mesmo tempo, não pode ser algo e não-algo. Deste modo, todo o ente no entendimento ou fora dele e antes de toda a relação deve possuir uma «determinação em si mesmo», um «ex se», algo idêntico a si mesmo sem o qual nada pode ser apreendido como algo. Sem este fundo nada pode existir fora ou dentro do intelecto, pois ele é «ex se», «ex natura rei» e, como tal, a condição última da conceptibilidade em geral e da objectividade real. Neste sentido amplo, o ente é o primeiro objecto do entendimento, que pode ser pensado em si mesmo, antes de o próprio pensar se pensar, ou aquela entidade, que precede o ser real e o ser pensado, não se identifica com um nem com outro mas é a condição fundamental de ambos 142. O ente, que é algo «ex se», por natureza, antes de ser pensado e produzido, é um possível em si, a que Duns Escoto não atribui qualquer actualidade por causa do problema da «creatio ex nihilo». Este conceito minimalista de ente possível, que Tomás de Aquino chama «possibile absolute» (STh, q.25, a.3)., apenas consiste na não-repugnância dos seus termos, a que Duns Escoto pela primeira vez chamou «possível lógico» na tentativa de pensar até ao fim uma possibilidade, que, pela sua não contradição, é em si mesma de modo absoluto, antes de qualquer relação a uma causa real. Para Deus, que em primeiro lugar se conhece a si mesmo, tais possíveis lógicos são objectos secundários da sua actividade cognoscitiva divina, que os pensa em si 141 J. DUNS SCOTUS, Ordinatio 1, d. 43, q . un., n. 18. 142 Cf. L. HONNEFELDER, o.c. 424, 425. pp. 3-63 Revista Filosófica de Coimbra - n." 15 (1999) Metafísica e modernidade nos caminhos do milénio 39 mesmos no seu estatuto de «simplesmente possíveis», «sub ratione absoluti», como noemas com um «em si» independente do pensamento divino e que precede toda a relação à sua omnipotência. Ao ser conhecido, o «possível em si» recebe no intelecto um ser inteligível (esse intelligibile), um ser relativo (esse secundum quid), um «ente de razão», que não altera o conteúdo «ex se» do possível conhecido: «...Embora o intelecto produza em si o seu acto, contudo quanto ao objecto não produz qualquer realidade absoluta mas apenas um ente de razão» 143. Por este «ente de razão» é expresso o conteúdo, o significado puro, o «sentido noemático», a «intencionalidade enquanto correlato da consciência», o «ens dominutum» no sentido de «verdade em si de Bolzano» 144. Daí, na Onto-Teologia de Duns Escoto os objectos secundários, que no pensamento divino recebem um «esse intelligibile», são previamente possíveis a partir de si mesmos e tudo o que é possível formalmente a partir de si, tem necessariamente de receber um «ser inteligível» na e pela actividade divina de pensar, que tudo abarca. Pela relação do «possível em si» à Omnipotência, o «ser lógico» transforma-se em ser possível objectivo. Para Suárez, o ente é «aptitudo essendi», é possibilidade interna, é o que não implica em si contradição e, por isso, pode ser real desde si mesmo e antes de ser conhecido ou querido por qualquer sujeito. Pelo seu ser próprio e interno e não pelo facto de ser conhecido e de estar objectivamente no intelecto, o ente suareziano é a «aptidão objectiva de coisas possíveis para existir», a não-repugnância dos termos, algo logicamente possível, como escrevera Duns Escoto. Por isso, «as proposições essenciais não são verdadeiras porque são conhecidas por Deus mas são conhecidas por Deus, porque elas são verdadeiras» (...negue illae enuntiationes sunt verae quia cognoscuntur a Deo, sed potius ideo cognoscuntur quia verae sunt») 115. O particípio presente «ente» é assumido no sentido nominal e significa não só o que existe em acto mas também o que pode existir, o que em si é capaz de existir, porque não é intrinsecamente contraditório, quer exista agora, quer não exista, quer exista alguma vez, quer nunca 146. Para Pedro da Fonseca, a não-repugnância das notas constitutivas, o «ex se», o «ex natura rei», que precedem toda a existência na consciência e na realidade, são traços de algo que, como objecto, está ex-posto no espaço. Se o espaço euclidiano possibilitou a análise e a síntese matemáticas, também no filósofo português constitui, na sua envolvência má- 143 J. DUNS SCOTUS, Reportara Parisiensia 1, d. 24, q. un., n. 3. loa M. HEIDEGGER, Die Kategorienlelhre 272. 145 F. SUAREZ, Disputaliones Metaphvsicae, d. 31, s. 12, n. 40. 146 S. CUESTA, Ontologia (Santander 1948) 63. Revista Filosófica de Coimbra - n.° 15 (1999) pp. 3-63 40 Miguel Baptista Pereira xima, uma condição indispensável de objectividade das ideias. A solução de um problema obrigava a percorrer os lugares do espaço ou sedes de razões inteligíveis e a dispor ou colocar os argumentos encontrados de tal forma que a ordenação espacial sintética fosse o mais clara e distinta possível. A ordem de doutrina de Fonseca atinge este rigor de simplicidade e clareza nas naturezas simples ou mínimos inteligíveis, que estão na génese de todo o saber perfeito e da realidade. A «disposição natural» ou série formada pela realidade simples do género sumo e seus subordinados é uma ordem objectiva concebida segundo um esquema espacial, que os verbos «collocare» e «ponere» particularmente configuram. A própria linguagem é objectivada no espaço predicamental chamado agora «lugar comum» e os seus nomes e verbos são «colocados» no espaço predicamental, esperando a investigação do dialéctico 147. Nesta sequência, a ordem das palavras no raciocínio é chamada «colocação» e a «situação» das partes da oração pode ser diversa da ordem de «colocação» das razões predicadas 148. Na tradição tópica de Aristóteles, Cícero e Boécio, o desconhecido torna-se de mais fácil acesso, uma vez determinado o seu «lugar» próprio, onde se oferecem à invenção as razões ou termos médios, que esclarecem o problema. Antes de tratar dos lugares dialécticos, Fonseca deriva todos os problemas do modo como o predicado convém ao sujeito. O predicado ou é uma definição ou um género ou uma propriedade ou um acidente ou reduz-se a estas quatro perspectivas, que originam quatro perguntas fundamentais. A resposta consiste em descobrir em cada região problemática princípios claros e distintos ou, por outras palavras, em reduzir a elementos simples a complexidade do problema. Estes elementos simples são proposições evidentes (per se notae), «lugares mínimos» de máxima extensão e, portanto, elementos primários da série de proposições subordinadas. Um grupo de séries ou classes diferentes de proposições gera uma região ou «receptaculum plurium maximarum». Estas séries proposicionais reportam-se a objectos considerados na sua constituição interna ou na rede das suas relações, necessárias ou contingentes, de união ou separação. À síntese objectiva interna e externa, genérica, específica, acidental ou de propriedades essenciais, que se pode reduzir, em última análise, ao binómio «conexão necessária - conexão contingente», correspondem vinte regiões de proposições ou «lugares- -receptáculos» de argumentos a que Fonseca acrescenta a autoridade divina 147 PEDRO DA FONSECA, Institutionutn Dialecticarum Libri octo. Auctore Petro Fonsecae Doctore Theologo Societatis Jesu. Conimbricae Anno Domini 1590, 11, 9. 148 ID., !nstitutionum Dialecticarum V, 14. pp. 3-63 Revista Filosvlfica de Coimhra - n.° 15(1999) Metafísica e modernidade nos caminhos do milénio 41 e humana enquanto fundadoras da síntese proposicional do acto de fé 149 Há assim um conjunto numerado, claro e distinto, de lugares ou grupos de séries proposicionais a que se reduz a solução de qualquer problema. A invenção dos argumentos, equivalente retórico-dialéctico da análise transmitida pela matemática, é facilitada por este conjunto ordenado de proporções evidentes, que o espírito deve percorrer na tentativa de nelas integrar o sujeito, o predicado ou toda a proposição problemática, esperando que desses tópicos mentais surjam os argumentos adequados. Como condição fundamental da objectividade do conhecimento, a quantidade inteligível e imaginável é infinita e, sob o nome de espaço e tempo imaginários , aparece várias vezes no decorrer dos Comentários à Metafísica de Aristóteles. Daí, o papel do espaço e do tempo na teologia de Pedro da Fonseca em que as criaturas, como produtos da acção divina «ad extra», são «ex-postas» ou «extra-postas» num espaço e tempo determinados , que formam a ocasião do agir divino. Por isso, segundo o nosso modo de pensar, Deus viu, em primeiro lugar, as ocasiões infinitas em que poderia comunicar a existência aos seres possíveis 110. Só um tempo e um espaço infinitos podem conter em seu seio a sucessão infinita das ocasiões e ser condição simultânea de possibilidade dos possíveis, dos futuros condicionados e absolutos, dos seres actuais, presentes e passados. Fonseca reconhece a dificuldade de explicar o espaço imaginário (difficile est explicatu), que não é Deus nem criatura alguma determinada, mas algo necessário e eterno 151, «para-categorial», pois não é substância nem acidente, é imaginário e, ao mesmo tempo, independente do acto psíquico da imaginação , infinitamente extenso mas distinto da quantidade real. A objectividade deste espaço situa-se entre a pura quimera, produto da fantasia, e a realidade: é imaginário porque nunca poderá ser um ente real na esfera das coisas; não é quimérico, pois é algo independente da apreensão imaginativa 152. É o horizonte máximo, a condição última, que possibilita a localização e situação dos possíveis, dotada de capacidade infinita para poder receber todos os corpos «in infinitum maiora» criáveis pela omnipotência divina. Este mínimo de harmonia matemática possibilita a situação de todas as coisas mas não está situado em parte alguma, pois de contrário perderia a sua radicalidade. Tem estrutura semelhante às 149 ID., o. c. VII, 11. 150 ID., o.c. CMA, T. III, 1.6, q. 4, s. 10. 151 ID., o.c. T. II, 1.5, c. 13, q. 7, s. 1. 152 M. B. PEREIRA, Pedro da Fonseca 358. Revista Filosófica de Coimbra - it." 15 (1999) pp. 3-63 42 Miguel Baptista Pereira negações puras, porque é negação de repugnância e nenhuma negação exige sujeito de radicação ou de situação i53. Além do espaço permanente transcategorial há o tempo imaginário, que não é ente real nem movimento predicamental mas mero espaço sucessivo ou capacidade pura de coisas sucessivas, que também se costuma chamar imaginária , não porque dependa da nossa imaginação mas porque não é substância nem acidente 154 e é condição última de possibilidade de todos os movimentos reais. O espaço-tempo, extensivo e sucessivo, além de necessário, é condição «nine qua non» da causalidade e da criação. Não podemos compreender a acção divina livre sem a referirmos a esse tempo imaginário, eterno, necessário e irreversível, que, segundo o nosso modo de entender, proporcionaria a Deus ocasiões de optar, previstas desde toda a eternidade pelo Intelecto Divino. A possibilidade de existência como «extraposição» postula a condição fundamental do espaço-tempo e toda a acção, que «extra-põe», exige o pressuposto da ocasião. Por isso, o espaço e o tempo puros, como radicais pontos de referência, condicionam o mundo dos possíveis e todas as acções como o «mínimo circunstancial» dos acontecimentos reais 155. Ao tratar do problema da unicidade do tempo e do lugar, Fonseca afirma a impossibilidade de situarmos os objectos físicos sem a referência constante ao tempo e ao espaço imaginários . O tempo real e o lugar real têm na relação ao tempo e espaço imaginários o complemento da sua essência , pois só destes recebem, respectivamente, a sucessão regular e constante dos momentos «antes» e «depois» e a imobilidade local, pois em si mesmos o lugar real não é imóvel nem o tempo real é constante e uniforme mas por causas várias estão sujeitos a irregulares mutações. A sucessão constante e harmónica do tempo imaginário, regulador ideal de todos os movimentos, nem pela omnipotência divina pode ser perturbada, pois, se o fosse, outro tempo mais radical se deveria supor, que medisse as irregularidades do primeiro e incorreríamos num processo «in infinitum » 156. O «estar» e o «suceder», apesar da variabilidade empírica das concreções do «hic et nunc», implicam sempre esta relação última ao espaço e ao tempo puros, pressuposta pela simples situação local e duração das criaturas 157. Também Deus está no espaço e no tempo 153 Pedro da Fonseca, CMA, T. III, 1.5, c. 13, q. 7, s. 1. 154 ID., o.c. T. IV, 1.12, c. 6, expl. 155 ID., o.c. T. III, 1.6, c. 2, q. 4, s. 10. 156 ID., o.c. T. 11, 1.5, c. 13, q. 11, s. 2. 157 ID., o. c. q. 10, s. 2. pp. 3-63 Revisto Filosúficu de Coimbra - o." 15 (/999) Metafísica e modernidade nos caminhos do milénio 43 imaginários . A imensidade divina repugna o movimento local e, por isso, Deus está na totalidade infinita do espaço e, pela eternidade, coexiste a todas as dimensões infinitas, passadas ou futuras, do tempo imaginário. Por isso, a liberdade divina pôde determinar-se positiva ou negativamente em todas as ocasiões possíveis. A presença no espaço e no tempo do «estar divino» funda a possibilidade de infinitas acções 158 À objectividade rarefeita de espaço e tempo imaginários atribuiu Fonseca as funções de imobilidade local do estar e de sucessão regular e constante do devir, que no séc. XVIII Kant inscreveu nas formas da intuição pura, enquanto nos sécs. XVII e XVIII o possível lógico, base independente da actividade do pensamento e da acção do sujeito, continuava a tradição de Duns Escoto e Suárez até ser submergido na imanência da consciência kantiana e convertido em seu objecto transcendental . Ao regressar à pergunta por que e como é que as coisas são possíveis , Wolff retoma os conceitos de ente e de realidade herdados de Escoto e Suárez e seguidos pela Metafísica Académica do séc. XVII e tenta, através do princípio de não-contradição, deduzir a possibilidade interna ou não-repugnância das determinações essenciais, pelo princípio da razão suficiente mostrar a não-repugnância com a existência e pela dedução dos atributos e modos a possibilidade externa ou realidade fáctica concreta do «hic et nunc». Isto é uma tentativa de resposta ao problema da «creatio ex nihilo» e à pergunta de Leibniz «porque é que existe o ente e não o nada. .. porque é que devem as coisas existir assim e não de outro modo» 159. Esta tentativa de resposta transcende os limites da razão humana, cuja finitude não pode construir «more geometrico» a realidade. Como Escoto e Suárez, Wolff vê nas determinações de um conteúdo essencial um «ex se» formal e necessariamente predado e, como tal, apenas termo de todo o conhecer e querer, mesmo que sejam divinos, pois de contrário o conceito de saber necessário em geral seria reduzido a mero produto de uma decisão contingente. Contudo, se há um mundo racional, que, mediante o tecido de géneros e espécies, contém o conjunto ordenado de todos os seres e com ele todas as verdades universais, só uma razão pura ilimitada de um «philosophus absolute summus» lhe poderia corresponder adequadamente e analisá-lo de modo exaustivo numa « scientia propter quid» segundo o ideal metodológico da Matemática. O método matemático de análise e síntese praticado por Wolff na sua 158 ID., o.c.1.c.s.l. 159 G. W. Leibniz, «Principes de Ia Nature et de Ia Grâce, fondés en Raison »: in: ID., Die philosophischen Schriften, hrsg. v. C. J. Gerhardt ( Berlin 1875 -1890) VI, 602. Revista Filosófica de Coimbra - n.° /5 (1999) pp. 3-63 44 Miguel Baptista Pereira filosofia fora visado pela Academia de Berlim, quando perguntou «se as verdades metafísicas... são passíveis de argumentação clara como as verdades geométricas» e, caso não sejam, qual «a natureza autêntica da sua certeza». Kant respondeu em 1762 com o escrito, depois premiado, intitulado Investigação sobre a Clareza dos Princípios da Teologia Natural e da Moral, em que defende o método analítico e não o sintético para a Metafísica 160. O conceito de «processo sintético» significava desde o séc. XVI o «mos geometricus», que, segundo o modelo dos Elementos de Euclides, estabelecia definições, axiomas e postulados a fim de deduzir teoremas e com eles resolver problemas. O «mos geomctricus» foi no séc. XVII e no começo do séc. XVIII uni dos paradigmas dominantes do método científico em geral e de método filosófico em especial, pois homens como Pascal e Espinosa, Arnauld e Nicole, Leibniz, Tschirnhaus e Wolff esperaram da aplicação do «método matemático» à filosofia um rigor e uma certeza, que pudessem corresponder aos da Matemática 161. Kant restringiu à Matemática a possibilidade do processo sintético, que reduziu a uma reunião arbitrária de conceitos, e negou que a filosofia, receptora de conceitos, pudesse partir de definições, axiomas e postulados construídos segundo o estilo de Euclides. Mais tarde, na Crítica da Razão Pura, a síntese é tida na filosofia como «processo dogmático» e fonte tradicional de erros e desvios (KrV B 741). Em rigor, porém, no escrito de 1762, Kant propõe como método da filosofia o duplo movimento da análise de experiências seguras e obtenção de definições e da síntese posterior e sistematização das proposições deduzidas. Este método analíticosintético é confrontado por Kant com o processo matemático, que desde o começo é sintético, em virtude da construção dos seus conceitos 162. O processo sintético referido por Wolff não é em si mesmo erróneo segundo Kant mas inadequado enquanto permanecerem incertas as definições, donde parte, pois para Kant construir sinteticamente definições significa unir arbitrariamente conceitos. Neste caso, proceder sinteticamente é proceder de modo arbitrário e esta é a razão kantiana da incerteza de uma filosofia entregue a definições enganadoras e imaginárias. Na realidade, Wolff elaborou uma teoria da definição, que excluiu 160 Cf. H.-JUERGEN ENGFER, «Zur Bedeutung Wolffs fuer die Methodendiskussion der deutschen Aufklaerungsphilosophie. Analytische und synthetische Methode bei Wolff und beiro vorkritischen Kant» in: W. Schneiders. Hrsg., o.c. 49. 161 H. SCHEPERS, Andreas Ruedigers Methodologie und itere Voraussetzungeu. Ein Beitrag zur Geschichte der deutsclen Schulpltilosophie iro 18. Jalirhwtdert (Koeln 1959) 13-29. 162 H.-JUERGEN ENGFER, o.c. 53. pp. 3-63 Revista Filosófica de Coimbra->i.° /5 (1999) Metafísica e modernidade nos caminhos do milénio 45 as arbitrariedades lobrigadas por Kant e, por isso, também para ele a via analítica precede a ordem sintética do método da filosofia 163. Para Leibniz, no cap. 24 do seu Discurso de Metafísica, um conhecimento distinto em sentido rigoroso necessita do regresso àqueles conceitos, que são elementares e, portanto, se não podem reduzir a conceitos mais simples . Quando uma coisa é reduzida aos seus conceitos elementares , há dela um conceito adequado, que totalmente corresponde ao que uma coisa é. Este conceito adequado, perfeitamente analítico, é denominado por Leibniz «cognitio intuitiva», que para o homem é difícil e rara e representa o grau supremo de conhecimento. De todas as ciências só a Matemática conduz ao conhecimento adequado, isto é, a um regresso pleno aos elementos simples. Dentro da terminologia dos sécs. XVII e XVIII, «real» significa para Leibniz o que pertence ao conteúdo ou essência de uma coisa independentemente do seu acto concreto de existir. Enquanto as definições nominais são incertas e podem até conter elementos contraditórios , as definições reais ou recorrem à experiência ou a um grau superior de conhecimento, que encerre em si, ao mesmo tempo, o conhecimento da produção possível de uma coisa e, com este, a sua possibilidade de existir. Neste caso, a análise termina no conhecimento adequado, real e causal dos conceitos elementares, a que Leibniz chama essencial ou consumado. O conhecimento matemático de algo implica a regra da sua construção, como acontece com o conhecimento do círculo. Se há ciências teóricas, cujos conhecimentos encerram em si a lei da construção das coisas, essas são apenas as Ciências Matemáticas ou ciências por estas estruturadas como a Doutrina da Harmonia, a Óptica, a Mecânica, etc. 164. O Deus-Geómetra de Kepler é o Deus-Matemático de Leibniz, cuja acção criadora é um acto de cálculo divino: «Cum Deus calculat et cognitionem exercet, fit mundus» 165.Esta matemática criadora não é humana, porque, se da não-repugnância das determinações essenciais se pode deduzir a não-repugnância para existir, captar o que de positivo e de unidade própria subjaz à não-repugnância, é, para Wolff, privilégio do Entendimento Divino, cuja intuição esgota todos os possíveis. De facto, o homem carece de uma intuição intelectual, que lhe permita esgotar o sentido de ente na sua abrangência máxima, envolvendo não só os indivíduos actualmente existentes mas também a realidade, que transcende 163 ID., o.c. 56-59. 164 Cf. K.-H. VOLKMANN-SCHLUCK, Einfuehrung in das philosophische Denken (Frankfurt/M. 1965) 59-63. 165 G. W. LEIBNIZ, «Dialogus, August 1677» in: ID., Gesanunelte Schriften VII (Hildesheim 1961) 191, nota. Revista Filosófica de Coimbra - n.° 15 (1999) pp. 3-63 46 Miguel Baptista Pereira a nossa experiência de mundo, como a propósito declara Kant (KrV A 249sJB 306). Na nossa finitude, é dada à intuição sensível apenas o «hic et nunc» acidental, fugidio e contingente, que restringe o conhecimento humano ao que se pode conhecer mediante o conceito referido à intuição sensível. Nesta sequência, para Kant, o que apenas se concebe ou pensa sem contradição, é um objecto a que não corresponde qualquer intuição sensível (KrV A 290/B 347) e, por isso, é mero «ente de razão». Para ser objecto não basta a possibilidade lógica, pois esta é, para Kant, a ausência de contradição necessária à pensabilidade de um conceito (KrV B XXVI Anm.) e suficiente para o distinguir do nada negativo (KrV A 596 Anm) mas não para lhe alterar a vacuidade nem para lhe assegurar verdadeira objectividade. A ausência de contradição não passa de unia «condição negativa» (KrV A 150/B 189) e, por isso, o princípio de não-contradição é apenas «o princípio universal e plenamente suficiente de todo o conhecimento analítico» (KrV A 151/B 191). Confundir a possibilidade lógica do conceito com a possibilidade transcendental ou objectiva do mesmo é uma ilusão (KrV A 7) a que só fugimos, examinando se o conceito se reporta ao objecto e significa algo, que seja a sua possibilidade real (KrV B 303). Pensar não é visar intelectualmente algo, que aparece «ex natura rei» mas é pensar a unidade da própria consciência, que por conceitos sintetiza o múltiplo recebido na intuição sensível, nascendo o conhecimento do objecto. Deste modo, o pensamento como unidade pura da consciência pela relação cognoscitiva ao objecto sensível torna-se unidade transcendental da apercepção em que o múltiplo da intuição sensível é unificado no conceito de objecto e o objecto é correlativamente a síntese do múltiplo intuitivamente oferecido (KrV B 139; B 137). Agora são dados à percepção sensível não os objectos-em-si como na antiga «scientia transcendens» mas apenas fenómenos múltiplos e porque os objectos-em-si não podem determinar os conceitos, são os conceitos a priori que orientam e unificam de modo necessário o múltiplo sensível recebido (KrV B 166). Só a percepção, que fornece a matéria ao conceito, justifica se fale de realidade (KrV A 225 B 273) e por isso, a «realidade objectiva» do conhecimento é a sua referência a um objecto, quando este lhe for sensivelmente dado de algum modo (KrV A 155, B 194). Portanto, agora não é o acto puro de intelecção, que capta a realidade, como acontecia no «sistema intelectual» de mundo de Leibniz e de Wolff 166 , mas «a possibilidade da experiência... que dá qualidade objectiva a todos os nossos conhecimentos a priori» (KrV A 156; B 194). Enquanto para a 166 Cf. L. HONNEFELDER, o.c. 449. pp. 3-63 Revista Filosófica de Coimbra - n.° 15 (1999) Metafísica e modernidade nos caminhos do milénio 47 «scientia transcendens» de Escoto a realidade objectiva não só implicava o possível lógico mas também a cognoscibilidade da «coisa-em-si» possível ou real e, por isso, a verdade como adequação era «ex natura rei» lógica e ontológica, em Kant o lógico é ressalvado mas o ontológico é suspenso e, por isso, a realidade é a do conceito, que unifica o múltiplo sensível recebido. A adequação continua no conhecimento kantiano mas radicalmente mudada, pois os conceitos em que o objecto é pensado, fundam-se na capacidade cognoscitiva do sujeito e não em qualquer prévia realidade objectiva e a unidade do objecto espelha apenas a unidade da consciência e não qualquer oferta, que transcenda a subjectividade do homem. Por isso, os conceitos kantianos não são objectivamente reais em virtude de essencialidades formais «ex se» predadas de modo objectivo, de cuja não-repugnância nasceria a possibilidade de existir, mas são apenas conceitos de algo formal, subjectivamente predado, que exerce a função de forma a priori de toda a experiência 167 e permaneceria vazio, se a experiência sensível faltasse. Por isso, aos objectos, que aparecem como sínteses da multiplicidade sensível ou fenoménica, opõem-se as «essências do intelecto» (númenos), que só uma intuição intelectual poderia captar e o intelecto humano, desta privado, apenas pensar como algo desconhecido (KrV B 306, B 312) ou receber como uma coisa-em-si, que não é objecto da nossa intuição sensível (KrV B 307). Para Kant é espontânea a referência não arbitrária das nossas representações a um objecto indeterminado ou a algo incognoscível, que é «um objecto transcendental », de que nada podemos saber. Porém, a única possibilidade de o conhecer é convertê-lo em «correlato da unidade da apercepção» como unidade do múltiplo recebido na intuição, pois a referência ao objecto pertence por essência à unidade da consciência (KrV A 109). Também para Escoto a análise do conhecimento terminava em algo em geral e indeterminado , sem o qual nenhum conhecimento seria conhecimento de algo. O que o conceito de ser apreende, não é uma realidade própria e determinada mas a entidade unívoca na raiz de qualquer ser, que, para Escoto, é pensada como antecedendo o acto de pensar e formalmente consistente a partir de si. Os momentos determinantes do conteúdo dos conceitos são, neste caso, os momentos determinantes da entidade do ser, num paralelismo , que mantém distintos para Escoto pensar e ser 168. A esfera dos conteúdos, que, sem possuírem existência própria, têm consistência formal a partir de si, constitui uma região de estruturas essenciais objectivamente predadas e passíveis de serem conhecidas 167 ID., o.c. 451-452. 168 ID., o.c. 455. Revista FilosGJica de Coimbra - n.° /5 (1999) pp. 3-63 48 Miguel Baptista Pereira mesmo pelo pensamento humano. Tal objectividade «ex natura rei», que antecede a realidade e todo o pensamento, foi reduzida por Kant a uma esfera de conceitos no sentido de estruturas subjectivamente predadas, que doravante são procuradas no terreno do sujeito como formas puras da sua experiência, despojadas de toda a relação a uma realidade transcendente. A aptidão para ser comum a Escoto, Fonseca, Suarez e Wolff foi invertida na sua marcha e interiorizada no sujeito humano, que a realiza segundo os modos da unificação categorial da experiência sensível, invalidando a pretensão metafísica da razão pura. Os jovens wolffianos consideraram a Metafísica Ciência dos primeiros princípios do conhecimento humano, que subjazem aos princípios de todas as outras ciências. Por isso, a Metafísica tornou-se doutrina de princípios, teoria do conhecimento, que M. Knutzen e A. G. Baurngarten transmitiram a Kant. Assim, no § 27 de seus Elementos de Filosofia Racional ou Lógica (1747), M. Knutzen, professor de Kant, afirma que a Metafísica «se pode definir como ciência, que em si contém os princípios universais supremos da filosofia e de todas as restantes ciências» e A. G. Baumgarten no § 1 da sua Metafísica (1739) entende-a como «ciência dos primeiros princípios do conhecimento humano» 169. Esta doutrina de princípios, porém, suspende na sua raiz a relação ao real transcendente e fáctico e torna-se uma Metafísica da subjectividade ou «Lógica do intelecto puro», que, na leitura de Kant, é uma ciência dos conceitos e dos princípios fundamentais, que estruturam a multiplicidade das representações empíricas mas nada do ser enunciam, pois no círculo da experiência, a que a finitude vincula a razão humana, não podem conhecer dentro das possibilidades lógicas o que é em si, mas apenas os fenómenos por eles constituídos. A Crítica da Razão Pura é a crítica de uma Metafísica, que no seu «transcensus» perdeu ou esqueceu o ser e por isso, apenas poderá ser Metafísica da Subjectividade ou Filosofia Transcendental da Razão. Também na prática do método transcendental se distingue em Kant o duplo movimento da redução e da dedução, que mutuamente se condicionam. A via redutiva consiste na tematização dos pressupostos ou condições de possibilidade implicados nos dados imediatos da consciência ou na explicitação ou abertura de algo, que a priori os precede. A via dedutiva consiste em derivar a partir deste a priori a realização empírica da consciência na sua essência, possibilidade e necessidade. Tais condições a priori do conhecimento objectivo estão apenas implicadas no acto concreto de conhecimento sem nunca serem imediatamente visíveis em si mesmas, pois a intuição para Kant é exclu- 169 Cf., E. CORETH, Metaphnvsik 2 (lnnsbruck/Wien/Muenchen 1964) 27. pp. 3-63 Revista Filou; fica de Coi,nbra - 2° 15 (1999) Metafísica e modernidade nos caminhos do milénio 49 sivamente empírica e sensível e o entendimento é, por essência, referido ao objecto sensível intuído sem lhe introduzir novo conteúdo. Despido de todo o carácter ontológico, o a priori Kantiano é condição puramente formal de possibilidade dada de modo não-objectivo mas apenas funcional no acto de conhecer, como grandeza puramente formal do sujeito mas não «ex se» e «ex natura rei». O que se chamou tradicionalmente a totalidade do ser, foi por Kant reduzido à consciência, dotada de estruturas a priori, que precedem a experiência individual e o conhecimento ôntico dos objectos singulares. A transcendência transforma-se agora no «regresso transcendental» àquilo que o homem é na sua condição de horizonte de tudo o que se pode objectivar na experiência. As determinações ontológicas de fundo chamadas categorias por Aristóteles são agora na consciência as condições de possibilidade requeridas para que algo possa entrar no espaço da mesma consciência e por esta ser experienciado e conhecido. As determinações do ser convertem-se deste modo em momentos da objectividade dos objectos da consciência sem os quais não pode haver qualquer «estar diante» nem tão-pouco qualquer presença na consciência, pois agora o ser é a consciência presente de um sujeito puro, universal, super-individual e desinteressado , as essências são as categorias deste sujeito e os seres concretos são os objectos da consciência. A apercepção transcendental é a unidade de todas as articulações de sentido a que foi reduzido o ser, a essência e o sendo pela consciência. Todos os poderes reais de outrora como o do ser, o da essência, o do sendo autónomo e o da substância foram metamorfoseados em construções de sentido de uma imanência criadora , que projectou a Metafísica no passado de «um mito do jogo de forças» donde dimanou o mundo e o sendo de modo cosmogónico e ontogónico 170. Agora a apercepção transcendental objectiva-se como o maior horizonte do sujeito, que se reparte pelas ideias de mundo ou unidade cósmica de objectos exteriores, de alma ou unidade dos fenó- menos psíquicos e de Deus ou unidade última de todos os fenómenos. O sujeito como ponto de referência de todo o sentido dá-se a si mesmo e aos objectos as condições e o espaço de possibilidade, cindindo as duas faces subjectiva e objectiva de sentido e mantendo-as referidas entre si, como seu senhor e criador 171. Para Husserl, a Fenomenologia enquanto Idealismo Transcendental é análise do sentido e da significação sediados 170 M. MUELLER, Existenzphilosophie. Von der Metaphvsik zur Metalristorik, hrsg. v. Alois Halder 4 (Freiburg/ Muenchen 1986) 172. 171 ID., o.c. 173-174. Revista Filosófica de Coimbra - n.° 15 (/999) pp. 3-63 50 Miguel Baptista Pereira na consciência sem que o sujeito dite para tal as condições de possibilidade, pois tanto o sujeito como o objecto se concebem a partir do sentido, que outorga aos actos da consciência a sua intenção interna e aos objectos a sua essência. A «consciência absoluta» não é subjectiva nem objectiva mas pátria-mãe do sentido, que se realiza em sujeitos e objectos, porque os precede e a eles se oferece como o primário e o originário puro. Como a essência pura precedia todas as realizações no sujeito pensante e na esfera ôntica dos objectos, o sentido é o a priori, que antecede a subjectividade e a objectividade e, por isso, não é construído pelo sujeito nem tão-pouco abstraído do objecto mas visto nele mesmo como sentido do mundo após as reduções do chamado «método fenomenológico» 172. Por seu lado, M. Heidegger não segue o caminho da construção, da abstracção nem o da intuição para atingir o sentido de fundo, que historicamente acontece, ordenando o mundo e aparecendo num envio- -tarefa ao homem, mediante uma experiência histórica hermeneuticamente interpretável. Este sentido histórico de ser foi pressentido pelo jovem Heidegger, quando objectou a Husserl que, se ele falava de um Eu Transcendental, então deveria este Eu apreender-se como histórico, pois o Eu Puro nasce precisamente de uma repressão da historicidade, que o torna mero sujeito de «actos realmente teoréticos» 173. Mais tarde, só pela «destruição» libertadora de sentido, de que fala no § 6 de Ser e Tempo, poderá realizar o lema husserliano da «ida até às próprias coisas». A esta crítica de Husserl associou-se logo em 1927/8 a Interpretação Fenomenológica da Crítica da Razão Pura, em 1929 Kant e o Problema da Metafísica e sete anos mais tarde apareceu a lição Sobre a essência da Liberdade Humana de Schelling, que descobriu a facticidade da razão extática contra a «filosofia negativa» das puras possibilidades e das construções humanas. Ao contrário de Kant, que apenas defendia uma intuição exclusivamente sensível, Fichte e Schelling elevaram a «intuição intelectual» imediata, originariamente certa e situada no fundo da consciência, a radical ponto de partida de uma dedução filosófica. Para Fichte, o que é absolutamente primeiro, é o Eu Absoluto, que se põe a si mesmo, opondo-se ao não-eu, e inicia de modo analítico-sintético a dedução de toda a experiência. Também de início Schelling parte de um ponto absoluto de 172 ID., o.c. 178-179; T. TRAPPE, Transzendentale Erfahrung, Vorsradien zu einer transzendentalen Methodenlehre (Basel 1996) passim. 171 O. POEGGELER, « Heideggers logische Untersuchungen» in: VARIOS , Martin Heidegger. Innen - und Aussenansichten. hrsg. com Fonim fizer Philosophie Bad Homburg (Frankfurt/M. 1989) 83. pp. 3-63 Revista Filosófica de Coimbra - a.° 15 119991 Metafísica e modernidade nos caminhos do milénio 51 indiferença, que precede sujeito e objecto, eu e não-eu e deste ponto absoluto deduz todo o sistema. Hegel volta à redução transcendental efectuada pela Fenomenologia do Espírito até ao saber absoluto, ponto de partida do processo dialéctico-dedutivo. Porém, o Schelling tardio reconheceu que a razão humana explorada pelo idealismo alemão, ao propor constituir-se de modo absoluto como o ser, esbarrou com a fronteira intransponível da sua própria impotência e viu-se como não posta nem capaz de se pôr a si mesma, dado que a sua existência não coincidia de modo algum com o seu próprio conceito. Neste fracasso, deparou a razão com a sua própria facticidade enquanto algo predado, que nesta condição remete para um outro enigmático. Ao saber absoluto da razão sucede a experiência de um «imemorial», que oferece aquilo que a razão se não pode dar a si mesma. Embora a razão não possua a chave que abre a sua experiência e pensamento, ela não deixa de pensar e de experienciar a partir de condições de possibilidade oferecidas e não criadas por ela mesma. Com este fundamento, podemos designar esta experiência um acontecimento na própria razão 174. Schelling fornece elementos importantes para a teoria de uma experiência que o pensamento faz em si mesmo da doação das próprias condições de pensar. Esta experiência do imemorial, não construída nem traçada autonomamente pelo pensamento mas portadora das suas condições de possibilidade, é um acontecimento-berço do pensar, que lhe doa o conteúdo originário e teleológico. Independentemente da dificuldade da resposta, o Schelling tardio viveu a pergunta pela essência da experiência, que o pensamento em si mesmo faz do imemorial, que lhe serve de fundamento. O indubitavelmente existente não é o apenas «cogitável», o «possível» de Escoto, Suarez ou Wolff mas aquilo perante o qual o pensamento se cala e a razão se inclina. Este carácter «experiencial» ou empírico do ponto de partida em que o indubitavelmente existente toca a razão, é via de acesso ao que é absolutamente primeiro e dispensa todo o conhecimento a priori a partir do qual ele fosse conhecido. Por isso, perante o existente necessário não faz sentido perguntar se ele pode existir, pois isto equivaleria a uma essência, a um quid, a uma possibilidade, que precederia o existente necessário, quando se trata apenas de o afirmar como o existente puro e simples, irredutível a uma essência ou quid, que o pretendesse substituir 175. Porque a razão apenas se inclina perante o existente necessário e indubitável, não 174 H. M. SCHMIDINGER, Nachidealistische Philosophie rurd christliches Denken. Zur Frage nach der Denkbarkeit des Unvordenklichen (Freiburg-Muenchen 1985) 78. 175 J.-F. COURTINE, Extase de la Raison. Essai sur Schelling (Paris 1990) 307. Revista Filosófica de Coimbra - n.° /5 (1999) pp. 3-63 52 Miguel Baptista Pereira pode este conceber-se como possibilidade a priori. A razão, ao afirmar o ser puro e simples como absolutamente exterior a ela, sai fora de si de modo absolutamente extático. A experiência inaugural da filosofia positiva é este êxtase, que, despojando a razão de si mesma e expulsando-a do domínio do possível, a expõe ao existir puro, que, pela sua prioridade absoluta e anterioridade incontornável, fere de assombro e mutismo a mesma razão. Só por uma inversão pode a ideia abandonar o possível e o conceito e visar o existir. O êxtase da razão coincide com o fim da filosofia negativa e nas imagens que exprimem este êxtase, ecoa a tradição mística e o vocabulário da consciência religiosa 176 O êxtase da razão liga- -se ao fracasso dos sistemas racionais e, simultaneamente, à «docta ignorantia» do misticismo. A filosofia negativa encerra-se no pensamento puro, cristaliza-se na ideia pura mas a filosofia positiva converte-se ao real por excelência, que precede a razão e a experiência. Neste contexto, o conceito schellingiano de revelação entendido como chegada, aparição e, ao mesmo tempo, superação, elevação, vitória, indissociáveis do velamento e da ocultação, está na base da crítica ao conceito hegeliano de Espírito ou reflexividade pura do conceito 117. Kant no seu ensaio de 1763 O único Fundamento possível de unia Demonstração da Existência de Deus forneceu a Schelling um apoio essencial na análise da existência incondicionada antes de todo o pensamento e pressuposta por toda a possibilidade, pois há uma realidade certa, cuja abolição ou negação suprimiria toda a possibilidade intrínseca em geral. Por isso, ao evocar o êxtase da razão, que marca a passagem brusca de um regime de pensamento para outro, o salto do negativo para o positivo, Schelling remete para a Crítica da Razão Pura de Kant, onde a ideia do ser necessário aparece como o «abismo da razão humana» (KrV A 613, B 641), lido por Schelling como «o inconcebível a priori», que a filosofia positiva deve conceber, recuperando os direitos da razão 178. Comentando o itinerário de Jacobi interrompido perante a Terra Prometida, à semelhança de Moisés, Schelling lê X76 X. TILLIETTE, « Deux philosophies en Une» in: G. PLANTY- BONJOUR, Ed., Actualité de Schelling ( Paris 1979) 96. 177 Cf. J.-F. COURTINE, « Temporalité et Révélation » in: J.-F. COURTINE/J.-F. MARQUET, Le dernier Scbelling . Raison et Positivité ( Paris 1994) 22 ss . Sobre a filosofia negativa e positiva de Schelling , cf. também W. KASPER , Das Absolute in der Gescbichte, Philosophie und Theologie der Geschichte in der Spaetphilosophie Schellings ( Mainz 1965) 111-124, 125-152 ; F. Josef Wetz , Das nackte Dass. Die Frage nach der Faktizitaet (Pfullingen 1990 ) 95-106, 106-126. 178 J.-F. COURTINE, Extase de Ia Raison 310: J.-F- MARQUET, Liberté et Existente (Paris 1971 ) 544 ss. pp. 3-63 Revista Filosófica de Coimbra - a." /5 (/999) Metafísica e modernidade nos caminhos do milénio 53 nesse filósofo a incapacidade de conceber um Princípio, que possuísse a razão sem que esta, por sua vez, o pudesse possuir, pois todo o conceito, para Jacobi, deveria ser garantido pela consciência de si, que, ao pôr a conceito, se põe a si mesma. Ora, esta concepção negativa da coerência racional impede o acesso a um conceito, que se opusesse a tal regresso a si da razão, se apresentasse como fonte do saber e, portanto, como «não- -saber» relativamente aos outros conceitos. Trata-se aqui do «positivo puro», que está em todo o saber e neste se encerra para se dar infinitamente: «É o ser disponível para toda a figura», em que o «positivo puro» se encerra para se dar e revelar como doador. É preciso abrir-se à imprevisibilidade do Amor, despojando-nos dos nossos esquemas de cálculo e de legitimação e abandonando as nossas medidas para dar lugar à verdadeira magia da existência, que nos ultrapassa 179. A uma razão, que tocou os limites especulativos dos seus sonhos de domínio e de auto- -mediação, opôs Schelling a via de uma atitude nova, que dá prioridade ao «que chega antes da ideia» e nos lembra que a procura dos princípios não pode substituir o acolhimento do Princípio Absoluto. O êxodo da razão, que pelo «transcensus» se prendeu da «filosofia negativa » ou reduto transcendental da «ratio possibilium», é recepção extática da realidade fáctica, que chega. Do vivo diálogo iniciado pela Escola Católica de Tuebingen com o Romantismo e o Idealismo do séc. XIX 180, foi testemunha relevante C. Braig, que na arquitectónica da sua Ontologia reservou um espaço crítico para a filosofia transcendental. No ser, diferente dos possíveis e dos sendos e neste sentido «nada» (diferença ontológica), viu este mestre de M. Heidegger a condição radical de possibilidade de todos os sendos, da consciência e das suas formas. No começo do séc. XX, C. Braig propunha uma filosofia, que respeitasse a razão na base da Religião e da Teologia e recusava o «sujeito transcendental» ou o acto do «Eu Penso» sem um sujeito real pensante e todo o psicologismo, que praticava a confusão entre validade lógica de argumentos e vivências psíquicas em que aquela transparece. A terceira via de C. Braig, situada para além da subjectividade transcendental anónima e da eliminação psicologista de todas as idealidades e validades autó- 179 M. MAESSCHALCK, «Événement et Destinée» in: J.-F. COURTINE-J.-M. MARQUET, o. c. 41-42, 45. iso B. WELTE, «Zum Strukturwandel der katholischen Theologie ml 19. Jahrhundert» in: ID., Auf der Spur des Ewigen (Freiburg/Breisgau 1965) 380-409; P. Huenerntann, Der Durchbruch geschichtlichen Denkens int 19. Jalu-hundert, Johann Gustav Drorsen, Wilhelia Dilthey, Graf Jorck von Wartenberg. Ihr Weg und ihre Weisung fitei- die Theologie (Freiburg/Basel /Wien 1967) 21-48. Revista Filosófica de Coimbra - n.° 15 (1999) pp. 3-63 54 Miguel Baptista Pereira nomas, consistia na redução das leis fundamentais da Lógica às leis do ser, como escreveu o autor na sua obra Sobre o Pensamento: «As leis fundamentais do pensamento coincidem com as leis do ser da essência pensante » 181. A ontologia de C. Braig tornou -se a ciência fundamental, a nova ciência dos princípios a que mais tarde Heidegger fará corresponder a sua Ontologia Fundamental. A impossibilidade de as ciências esclarecerem os seus próprios fundamentos como a 1ndestrutibilidade da pulsão metafísica do homem são teses comuns a C. Braig e a Heidegger. A rela- ção entre ser e nada, ser e tempo com referência ao livro XI das Confissões de Santo Agostinho e ao conceito de tempo da Física de Aristóteles, o significado ontológico do conceito de tempo, a referência a Kant, cujo discurso sobre a interioridade inacessível do sujeito era urna das origens do niilismo, a pergunta pelo fundamento do sendo - são temas, que a leitura de Braig ofereceu à reflexão do jovem Heidegger 182. No mesmo ano (1927) em que Heidegger propunha em Ser e Tempo a «destruição» da ontologia tradicional, repetindo à distância o salto schellingiano da «filosofia negativa» para o êxtase da razão, publicava G. Marcel o Journal Métaphysique, que registava a viragem do autor para o concreto e o existencial mediante uma reflexão «sobre as anomalias, que todo o racionalismo escamoteia ou de que se desvia mais ou menos visivelmente para tecer a sua teia conceptual, como a sensação, a união da alma e do corpo, os factos de psicologia supernormal, cuja realidade a minha experiência pessoal me permitiu determinar durante a guerra em condições, que não podiam deixar lugar a qualquer dúvida» 183. A imagem da Escola de Tuebingen, prossegue agora no pensamento francófono o diálogo crítico da Filosofia da Escola com o sentido «transcendental» do pensamento de Kant. Ao génio de J. Maréchal (1878-1944) devemos desde 1927 o arrojo da pretensão de superar por um aprofundamento do método transcendental as insuficiências da posição kantiana 184. A originalidade de Maréchal está em ter assumido a investigação kantiana da subjectividade com as respectivas distinções entre condições de possibilidade e possibilitados ao nível da sensibilidade, entendimento e razão e em ter 181 Cf. M. B. PEREIRA, «Tradição e Crise no Pensamento do Jovem Heidegger» in: Biblos LXV (1989) 311. 182 Th. RENTSCH, Martin Heidegger. Das Sein und der Tod. Eine kritische Einfuehrung ( Muenchen 1989) 31-34. 183 G. MARCEL, Journal Métaphysique (Paris 1927) X. 184 Cf. J. MARECHAL, Le Point de Départ de la Métaphysique V. Le Thomisnie devant Ia Philosophie Critique (Paris 1947): M. B. PEREIRA, Ser e Pessoa. Pedro da Fonseca 61-62. pp. 3-63 Revista Filosófica de Coimbra -n.° /5 (/9991 Metafísica e modernidade nos caminhos do milénio 55 descoberto na última condição de possibilidade, o Eu Puro, uma dinâ- mica relação ao Absoluto, eliminando toda a indeterminação ontológica. Maréchal vê no mais íntimo da subjectividade a afirmação de algo, que transcende a região dos objectos e fenómenos e o ideal meramente regulador da ideia kantiana. Esta relação ao Absoluto e Incondicionado é o peso ontológico do juízo ou afirmação como saída dinâmica do homem para o ser. Neste caso, a análise das várias zonas de objectos e dos correlativos actos intencionais prepara, mediando, mas não revela ainda a transcendência do ser à consciência. Os princípios a priori unificadores do múltiplo nas esferas da sensibilidade e do entendimento recebem o sentido ontológico , que a razão, no último reduto da subjectividade, dita à indeterminação dos objectos, ao afirmar no juízo dinâmica e absolutamente o ser. Como no Tomismo o ser é perfeição sem limites, na afirmação judicativa há uma implícita afirmação de Deus, raiz criadora da totalidade das coisas e do pensar humano. A distinção de Maréchal entre a estrutura dos actos intencionais e seus objectos, por um lado, e a afirmação do ser no dinamismo do acto judicativo, por outro, é a reconquista da distinção real essência-ser a partir da análise transcendental kantiana . Nesta posição metódica, o mundo das essências-objectos fica indeterminado enquanto o espírito não descobrir no absoluto da afirmação um sentido transcendente , isto é, o ser. Não procurou Maréchal investigar se a exigência sem limites de desenvolver a partir do «desiderium naturale» da subjectividade humana as condições transcendentais de possibilidade da transcendência autêntica gnosiológica, ontológica, cosmológica e teológica era já na sua raiz não um mero projecto mas uma resposta à interpelação histórica ou iniciativa vinda da realidade enigmática do ser. De facto, o desejo natural solitário, preso da sua finitude, não consegue projectar o espaço absoluto do ser, por maior que seja a pressão do dinamismo interno, que o move. Também Maréchal carecia de uma viragem, que fizesse do dinamismo transcendental da razão metafísica uma resposta ao que G. Marcel chamou «le mystère de 1'être» nas conferências de Aberdeen de 1949 e 1950, que visaram «despertar uma certa vida profunda da reflexão» 185. O êxtase ou saída da casa da razão é provocado pela surpresa do que chega e não apenas pelo desejo incontido de quem habita. Foi na década de 30 que a reflexão heideggeriana sobre a natureza dos Pressocráticos, a verdade como desvelamento, a essência da obra de arte, 185 Cf. G. MARCEL, Le Mvstère de l'Être /. Reflexion et Mvvstère (Paris 1951) Avant- -Propos. Revista Filosófica de Coimbra - n.° 15 (1999) pp. 3-63 56 Miguel Baptista Pereira o pensamento de Nietzche, a poesia de Hoelderlin e sobretudo a redacção da sua obra de viragem Contribuições para a Filosofia (Sobre Ereignis) (1936-38) influíram na «Kehre» de dois discípulos de Maréchal. Para o semestre de inverno de 1934/5, dois professores de filosofia - M. Heidegger e N. Hartmann - surgiram no horizonte de escolha de dois jovens jesuítas K. Rahner e J.-B. Lotz, que desejavam prosseguir os seus estudos de filosofia: «Decidimo-nos pelo primeiro, porque dele esperávamos incitamentos mais fortes em virtude do seu maior poder de pensamento, embora ficasse aberta a possibilidade de, após dois semestres, trocarmos Freiburg por Berlin e de nos transferirmos para as aulas de Hartmann» 186 A atracção filosófica de Heidegger foi tão intensa que prendeu os dois jovens filósofos à Universidade de Freiburg até 1936, permitindo-lhes frequentar as lições sobre a ode «Germânia» de Hoelderlin e o seminário sobre a «Fenomenologia do Espírito» de Hegel. Com a mesma mestria pedagógica , o mesmo poder de fomentar o diálogo entre os participantes, a mesma capacidade de esclarecer textos obscuros e de dar vida a conteúdos mortos, outros seminários se sucederam com temas como a Monadologia de Leibniz, a «Crítica da Faculdade de Julgar» de Kant e o «Tratado sobre a Liberdade Humana» de Schelling 187. Terminados os semestres de aluno, Lotz prosseguiu sempre o seu diálogo com o pensamento de Heidegger, «que através de todos os anos manteve a sua força formadora e fecundante». No prefácio à primeira edição de O Juízo e o Ser, publicado em 1938, J.-B. Lotz recorda o estudo de Kant e de Hegel nos seminários de Heidegger e, sobretudo, « a não pequena influência» vinda do seu ensino, confessando que «o seu seminário sobre Leibniz no semestre de inverno de 1935/6 deu o impulso ao desenvolvimento da visão fundamental de que o ser... se identifica com o agir» 188. Depois da publicação em 1975 do livro Martin Heidegger e Tomás de Aquino, que é o estádio último do diálogo crítico de uma vida já longa de professor com seu Mestre de Freiburg, que retribuiu a oferta com os dois primeiros volumes das suas Obras Completas 189, foi a obra Experiência Transcendental de Lotz, publicada em 1978, a súmula de um denso percurso de pensamento em que a experiência ôntica é superada e fundada por uma experiência super-objectiva ou transcendental, que engloba os degraus 186 J.-B . LOTZ, « Im Gespraech » in: VÁRIOS, Erinnerung an Martin Heidegger (Pfullingen 1977) 154. 187 ID., o.c. 156-157. 188 ID., Das Urteil und das Sein. Eine Grundiegung der Metaptnvsik 2 ( Pullach bei Muenchen 1957) VIII. 189 ID., Im Gesprãch 160. pp. 3-63 Revista Filosófica de Coimbra - a.° 15 (/999) Metafísica e modernidade nos caminhos do milénio 57 ascensionais do nível ôntico, ontológico, metafísico e religioso, surgindo a meditação como o mais alto cume da experiência transcendental. De facto, para Lotz, quem medita, alcança uma tal permeabilidade que todos os planos se tornam transparentes ao fundo de latência em que mergulham . O que acontece neste pensamento meditativo, atinge expressão linguística apenas nas palavras dos homens totalmente purificados, dos santos , dos poetas e dos pensadores, que são os únicos capazes de transformar de tal modo as palavras dos homens, que elas deixam de estranhar o mistério. Filosofar e meditar são duas realizações da experiência transcendental matricial, que lhes insufla a vida, se desenvolve nelas numa luta contra a morte do pensamento anunciada na prisão circular dos próprios conceitos 190 Já não são os possíveis que «ex se» e «ex natura rei» se concebem expostos num espaço e tempo absolutos, mas é a aventura da facticidade do ser, que na sua chegada nos surpreende. O próprio mundo recusa-se a um sistema translúcido de conceitos, como escreveu A. Einstein: «O eternamente inconcebível no mundo é a sua conceptibilidade» 111, atitude paralela à de Heidegger, que não pautou a sua expectativa pela figura da representação : «Porque a espera sem nada representar avança para o aberto, eu procurei libertar-me de toda a representação» 192. O que se espera para além dos conceitos ou das representações, não é o «ex se» dos possíveis mas o que se mostra e oculta a partir da sua própria realidade como dom, a que responde a receptividade originária do homem. O êxtase de Schelling vai ao encontro do dom que chega como o desvelamento de Heidegger é, ao mesmo tempo, doação de um dar, que se mostra e oculta ao humano poder receptivo desde um tempo sem escrita, tão imemoriais são as nossas relações ao gratuito. Diz-se do ser que ele dá, porque ele é ainda impensado e só se pensa historicamente, dando-se «nas palavras dos pensadores essenciais » 193. Ao mundo concreto do dar e da alteridade generosa e à consciência do donatário, que o habita, é estranha a já longínqua intencionalidade noético-noemática da consciência teórica e, por isso a diferença está marcada numa sentença inserta num manuscrito ainda inédito, de Heidegger: «Aprendei primariamente a agradecer, depois 190 ID., Transzendentale Eifahrung (Freiburg-Basel-Wien 1978) 287. 191 A. EINSTEIN, «Physik und Realitaet» in: Journal of the Franklin lnstitute 221.3 (1936) 315, cit. por B. CASPER, Das Ereignis des Betens. Grundlinien einer Hermeneutik des religioesen Geschehens (Freiburg-Muenchen 1998) 23 '>. 192 M. HEIDEGGER, Gelassenheit (Pfullingen 1959) 44. 193 ID., «Ueber den «Humanismus», Brief an Jean Beaufret, Paris» in: ID., Platons Lehre von der Wahrheit. Mil einem Brief ueber dei? «Humanismus» 2 (Bern 1954) 81. Revista Filosófica de Coimbra - n.° 15 (1999) pp. 3-63 58 Miguel Baptista Pereira podeis pensar» 194 O espaço-tempo em que o homem habita como destinatário do dom e o doador se hospeda, é o topos da reunião ou casa. O homem está presente «hic et nunc» porque é o «aí» ou a clareira incarnada do ser. Só o «ser» do «aí» tem o traço de fundo da ex-sistência ou do estar por dentro na verdade do ser 195. Isto vincula clareira, liberdade e linguagem, porque as plantas e os animais têm ambiente «mas jamais são postos livremente na clareira do ser» e, por isso, «falta-lhes a linguagem», que é «chegada luminosa e ocultante do próprio ser» 196. A linguagem não é a unidade de figura fónica ou escrita, melodia, ritmo e significações nem a correspondência ao homem como animal racional ou unidade somático-psíquico-pneumática mas é «a casa do ser apropriada historicamente por ele e a partir dele estruturada» e, pela correspondência do ser-aí, a habitação do homem 197. No seu trabalho Tese de Kant sobre o Ser (1962) lembra Heidegger que na linguagem peninsular a palavra «ser» vem de «sedere» (sentar- -se) e os alemães usam a palavra «sede» para dizer o domicílio, como Hoelderlin, que desejava «cantar as sedes dos príncipes e dos seus pais». Ouvir o dizer da linguagem, que no modelo do português e do espanhol poderia fazer do ser como «sentar» o habitar, é compreender os acenos, que do «sentar» ou ser nos vêm ao pensamento 198. Ao preferir a posição do sujeito objectivador aos acenos do ser através do habitar, a tese kantiana do ser passa ao lado do «não-dito, não-pensado, não perguntado» como toda a Metafísica esquecida do que é o mais digno de pensar para o pensamento. Já em 1956, usava Heidegger a expressão «topologia» para designar aquele lugar, que reúne ser e nada, casa e sem-casa, determina a essência do niilismo e «deixa conhecer os caminhos em que se esboçam os modos de uma possível superação do niilismo» 199. Procurar os lugares históricos e múltiplos do ser como (pllotç, ió a, : v&p-yEta, posição dinâmica do sujeito, espírito absoluto e vontade de poder, rememorar o ser ou ouvi-lo ressoar no esquecimento e abandono são referências diferentes não a um vácuo mas ao aberto denso, histórico, concreto e fáctico, que orienta todas as localizações. Os «lugares comuns» são agora 194 Informação de Curd Ochwadt, editor do volume 75 de Obras Completas de M. Heidegger, a B. Casper, o.c. 28. 195 M. HEIDEGGER, Ueber den «Humanismus» 69. 196 ID., o.c. 70. 191 ID., o.c. 79. 1911 ID., Kants These ueber das Sein (FrankfurtlM. 1962) 32, 36. Cf. O. POEGGELER, Der Denk Weg Martin Heideggers (Pfullingen 1963) 280-299. 199 ID., Zur Seinsfrage 4 (FrankfurtlM. 1977)32. pp. 3-63 Revista Filosófica de Coimbra - n." /5 (/999) Metafísica e modernidade nos caminhos do milénio 59 modos de proximidade, habitação ou pertença mútua entre homem e ser. Ir à procura das coisas de modo fenomenológico correu o perigo de as transformar de novo em presenças cristalizadas num lugar hiperceleste, com leis lógicas, valores e, em geral, essências em si, referidas na Modernidade a um Eu Transcendental. A este perigo responde o pensamento concreto e situado, que impede se reduzam a essências puras hipostasiadas os fenómenos, que temporalmente se desvelam nas situações da experiência de que o «sentar» do ser não abdica 200. O logos heideggeriano é um dizer, que situa o já pensado em relação com o impensado, que ficou por dizer no dito. Situar é perceber no modo como algo chegou ao pensamento , um aceno do que há que pensar. Neste aceno, o pensado remete para o impensado, o desvelado para o que se oculta, exigindo do pensamento o «salto», que lhe permite deixar o lugar do pensado para outro lugar 201, à maneira de libertação. Situar é experienciar-se acenado e transportar -se ao lugar do ser histórico de algo, reunindo-se ao acontecimento apropriante, que, por sua vez, ao deixar-se apropriar, permite ao homem projectar. Nas situações em que os homens diferem, continua viva a «luta amorosa » dos pensadores em volta do ser, que no confronto interminável os continua a reunir 202. Contra a totalidade sistemática e hermética a topologia requer um falar a partir do lugar, que se integre no acontecimento do desvelamento da verdade. Por isso, as Contribuições para a Filosofia (1936-38) são um tecido de configurações sempre abertas, que, à maneira de partituras em movimento, compõem a fuga inconclusa e polissémica do ser. O pensamento em situação elimina toda a resposta definitiva e mantém-se sempre na subida ao que merece ser interrogado na sua permanente abertura. Por isso, a resposta não pode ter a figura dogmática da palavra definitiva nem lhe é lícito desvincular-se do lugar a que pertence. A validade universal não é agora «o que é válido em si, em geral e sempre, o invariável, eterno e supertemporal» mas o historicamente limitado, cuja unidade e mesmidade de essência trazem em si a possibilidade da mudança 203. Para o pensamento em situação a abertura de uma coisa é sempre mais do que aquilo que ela é, dada a ocultação, que a vela e, por tal abertura, é negação do permanente e do disponível e jamais pode ser captada por relações genérico-específicas da Lógica. A abertura da situação concreta diz-se em palavras-caminho, que se não deixam cristalizar no espartilho das definições lógicas nem 200 ID., Unterwegs zur Sprache2 (Pfullingen 1959) 121. 201 ID., o.c. 138. 202 ID ., Ueber den « Humanismus» 82. 203 ID ., Nietzsche . Erster óancd ( Pfullingen 1961 ) 173 ss). Revista Filosófica de Coimbra -?1." 15 (1999) pp. 3-63 60 Miguel Baptista Pereira volatilizar em representações, que não nasceram «da experiência da história» 204. O pensamento em situação recoloca os nomes historicamente falantes no lugar, que eles ocupam «no campo do pensamento ocidental» e na via do desvelamento 205. As grandes palavras da tradição são palavras condutoras e de caminho, que levam o pensamento ao seu lugar próprio inscrito no caminho, que elas rasgam. É também aceno a resposta, que o pensamento dá aos acenos de desvelamento e, deste modo, a palavra acena ao que temos que pensar e envia para um acontecimento de verdade, que nos solicita206. Na polissemia das palavras, o que em primeiro lugar interessa, é a diferença, que aparta os que historicamente se pertencem e a multiplicação de lugares da situação por onde passa a unidade diferenciadora do envio do ser: «A multiplicidade das significações é histórica e nasce do facto de nós mesmos sermos visados no falar da linguagem , isto é, interpelados de modos diferentes segundo o envio ontológico do ser do sendo» 207. Só se compreendem as grandes palavras da linguagem heideggeriana, quando simultaneamente se refaz o caminho em que elas surgiram e prosseguiram. Os lugares de Heidegger recortam- -se no caminho, que ele confessou jamais ter abandonado: «Eu segui sempre apenas um rasto apagado de caminho mas eu segui-o. O rasto era uma promessa a custo perceptível, que anunciava uma libertação autêntica, ora de modo obscuro e desconcertante ora à maneira de relâmpago como num súbito golpe de vista, que sempre se furtou por longo tempo a toda a tentativa renovada de o dizer» 2208. A situação, que está na base da compreensão e da explicação, é o núcleo da «topologia do ser», que diz (logos) o lugar (topos) em que a verdade como desvelamento de modos novos acontece, unindo as margens do pensado e dito e do impensado e não-dito 209. Nesta topologia, o ser toma a sua sede, abrindo-se em clareira e caminho de muitos lugares e situações. A topologia não é um método do sujeito, que transforma tudo em objectos da sua consciência, mas alicerça-se na experiência de fenó- menos, que o pensamento faz, caminhando e na qual a verdade se mostra também a caminho. A situação é o desvelamento histórico da verdade no corpo da linguagem em sentido amplo e, por isso, o caminho é o jogo sempre inacabado de lugares, que o desvelamento oferece ao pensamento. 203 ID., Der Satz vom Grund7 (Pfullingen 1992) 159-160. 201 ID., o.c. 25. 206 ID., Unterwegs zur Sprache 114 ss. 207 ID., Der Satz vom Grund 161. 208 ID., Unterwegs zur Sprache 137. 209 ID., Aus der Eifalirung des Denkens6 (Pfullingen 1986) 23. pp. 3-63 Revista Filusó/ica de Caiuthra - ii.° 15 (1999) Metafísica e modernidade nos caminhos do milénio 61 É evidente o contraste entre a tópica de Fonseca e a topologia do ser de M. Heidegger. À essência possível, não-contraditória, que o Poder Infinito pode realizar, contrapõe Heidegger o possível como a dádiva do gostar e amar, pois no gosto amoroso está a oferta da essência. Tal gostar ou amar «é a essência autêntica da capacidade, que não só pode fazer isto ou aquilo mas também deixar algo acontecer originariamente, isto é, ser» 210. É o poder do gostar e amar que pode fazer que algo seja autenticamente e nesta força está o possível radical, alicerçado essencialmente no amar, que torna possível ao ser pensar. Neste contexto, «o ser enquanto elemento é a força silenciosa da capacidade amante, isto é, do possível» 2211. Os limites, que Heidegger traça à topologia metafísica, são os do empobrecimento do conceito de possível devido ao domínio da «Lógica» e da «Metafísica», que pensam a possibilidade como contra-polo da «efectividade», portanto dentro de uma determinada interpretação metafísica do ser como acto e potência ou existência e essência 212. Ora, a essência extática do homem assenta na ex-sistência, que permanece diferente da existência metafisicamente pensada, que a Idade Média concebeu como «actualitas», Kant representou como a objectividade da experiência, Hegel como a ideia da subjectividade absoluta, que se conhece a si mesma e Nietszche como o eterno retorno do igual 213. Ao contrário de existentia no sentido de actualitas ou efectividade, distinta da simples possibilidade como ideia, a ex-sistência implicada na proposição «o homem ex-siste» não responde à pergunta se o homem é de facto real ou não mas à pergunta se o homem é o «aí» ou a clareira lançada pelo ser 214 e assumida pelo cuidado humano como doação 215. Lançado na verdade como desvelamento pelo ser, o homem ex-siste, protegendo esta verdade à maneira de pastor 216. A verdade como clareira do «aí» é a proximidade do ser em que o homem habita enquanto ex-sistente «sem que ele hoje possa já experienciar propriamente e assumir este habitar» 217. A proximidade do ser é chamada com Hoelderlin e a partir da experiência do esquecimento do ser, «pátria» ou terra-mãe na intenção de pensar a perda moderna de pátria dentro da 210 ID., Ueber den «Humanismus» 57. 211 ID., o.c.1.c. 212 ID., o.c. 57. 213 1D., o.c. 69. 214 ID., o.c. 84. 215 ID., o.c. 71. 216 ID., o.c.l.c. 217 ID., o.c. 84. Revista Filosófica de Coimbra - n.° 15 ( 1999) pp. 3-63 62 Miguel Baptista Pereira história do ser. A pátria deste habitar histórico é a proximidade do ser 218 com suas possibilidades de gosto e amor de cujo abandono nasce a nossa errância. Para Heidegger, a «força silenciosa do possível» não é o «possibile» de uma «possibilitas» representada, não é a «potentia» como «essentia» de um «actus» da «existentia» mas «o próprio ser, que amando tem poder sobre o pensamento e deste medo sobre a essência do homem ou sobre a sua relação ao ser» 219. A «força silenciosa» de poder algo significa, neste contexto, «defendê-lo na sua essência, retê-lo no seu elemento» 2220. De casa cm que dizer é querer a essência do diferente, a linguagem degradou- -se, em consequência do «domínio da metafísica moderna da subjectividade», em «instrumento de domínio sobre o sendo» 221. Nestas condições, o homem situar-se-á na proximidade do ser, se de antemão aprender «a existir no sem-nome», reconhecendo ao mesmo tempo a tentação da publicidade e a impotência da privacidade e deixando-se interpelar pelo ser, correndo mesmo o perigo «de pouco ou raramente ter algo para dizer». Só assim é restituída à palavra o grande valor da sua essência e ao homem a habitação na verdade do ser 2222. O homem novo é o destinatário das dádivas possíveis do gosto e do amor. A essência da razão, quer seja vista na sua união à animalidade ou como faculdade dos princípios, das categorias ou de outros modos, «funda- -se em toda a parte e sempre no facto de o ser anteceder com a sua luz e acontecer no seu desvelamento antes da percepção do sendo no seu ser» 223. Por esta prioridade, o ser é mais distante e, ao mesmo tempo, mais próximo do homem do que os demais seres. Porque é relação de luz e de dádiva à essência do homem, o ser é o mais próximo mas porque primeiramente e sempre o homem começa por ser lapso e perdido entre as coisas, o ser torna-se o mais longínquo. Desperto para a sua autenticidade, o homem supera a representação, que dele fazemos como animal racional, através de algo mais originário e essencial - a sua resposta ou contra- -lançamento às possibilidades oferecidas pelo dar originário do ser. Pelas suas respostas-projecto, o homem não é senhor do sendo, como a subjectividade criadora mas é «o pastor do ser», com a pobreza essencial da sua 218 ID., o.c. 84-85. 219 ID., o.c. 58. 220 ID., o.c.1.c. 221 ID., o.c. 58. 222 ID., o.c. 60-61. 221 ID., o.c. 65. pp- 3-63 Revista Filosófica de Coimbra - n.° /5 (1999) Metafísica e modernidade nos caminhos do milénio 63 condição e a dignidade de ser chamado à verdade e constituído «o vizinho do ser», seu vigilante e guardião 2224. Entre advento e partida, recepção e resposta, situação e caminho, vislumbra-se no fim do milénio uma eco-ontologia em que o regresso saudoso a casa é reconhecimento das raízes, é sentido comunitário de berço, é condição de projecto global de partilha para a realização da liberdade extática, que é outro nome da solidariedade ou nova reunião na casa do mundo. Séculos de construções antropocêntricas apagaram os caminhos da casa, que vêm porventura das raízes do universo 225 na lenta preparação de uma realidade fáctica e plena de possibilidades num tempo irreversível, a que só permanece fiel uma nova estesia, que sinta as «lacrimae rerum» de um mundo ameaçado e um novo pensamento vigilante, que se dobre ao peso esperançoso da saudade das raízes e do futuro por elas mediado. 224 ID., o.c. 90-91. Cf. E. KETTERING, Nahe. Das Denken Martin Heideggers (Pfullingen, 1987 ) passim. 225 R . BREUER , Das anthropische Prinzip. Der Mensch im Facienkreuz der Naturgesetze (Frankfurt/M.-Berlin -Wien 1984). Revista Filosófica de Coimbra-n.° 15 (1999) pp. 3-6

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