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Espaços de solidão, morte e encantamento no conto O voo da madrugada de Sérgio Sant’Anna

Por:   •  24/11/2016  •  Artigo  •  3.242 Palavras (13 Páginas)  •  325 Visualizações

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Espaços de solidão, morte e encantamento no conto O voo da madrugada de Sérgio Sant’Anna

Karin Bakke de Araújo

        O conto O voo da madrugada foi publicado no livro de mesmo título em 2003. A obra traz outros dezesseis textos do contista, poeta, dramaturgo e romancista carioca Sérgio Sant’Anna (1941) e foi vencedora do Prêmio Portugal Telecom de Literatura Brasileira.

        Considerando que o espaço no texto literário pode ser utilizado como uma ferramenta de recriação do mundo contendo o potencial de descortino da essência da fabulação, é nosso propósito analisar o conto especialmente a partir da função estruturante e reveladora desse instrumento, sem ignorar outras categorias construtivas conjugadas com essa abordagem central. Consideraremos a sua importância na composição da atmosfera social e psicológica da narrativa. Para tanto, teremos como apoio teórico principal os conceitos sobre a poética do espaço de Gaston Bachelard (1884-1962).         

        A obra tem como protagonista sem nome um auditor de um laboratório farmacêutico que, dominado pela solidão e pelo desassossego, acaba embarcando num voo noturno especial destinado a transportar os mortos vitimados por um acidente aéreo e seus familiares. Esse voo prolonga-se madrugada adentro e, cercado de mortos, a personagem tem o momento de encantamento supremo de sua vida, representado por meio de uma fábula constituída da tensão do herói com ele mesmo, reproduzida num monólogo dirigido ao leitor.

        No primeiro parágrafo do conto, o narrador-protagonista já deixa registrado que partilhará com o leitor o momento mais marcante de sua existência: “Se alguma coisa digna de registro aconteceu em minha vida dura e insípida foi estar entre os passageiros daquele voo extra, de Boa Vista para São Paulo”. (SANT’ANNA, 2003, p. 9) As instalações do avião durante aquele voo seriam o espaço privilegiado de sua vida, ao lado de outros tantos, também importantes, mesmo que rotineiros e insípidos ou até mesmo opressivos e insuportáveis.

        Essa voz enunciativa pode ser compreendida conforme a classifica Norman Friedman (2002, p. 177): “O narrador-protagonista [...] encontra-se quase que inteiramente limitado a seus próprios pensamentos, sentimentos e percepções. De maneira semelhante, o ângulo de visão é aquele do centro fixo”.

        O texto é narrado em primeira pessoa e os dados nos são transmitidos por meio das impressões do narrador, inclusive a descrição dos espaços entranhados na narrativa e que representarão um espelho dos seus sentimentos e serão, também, fonte potencial de significados. A trama chega ao leitor na forma em que é percebida pelo narrador em reflexão profunda sobre sua existência, que ele deixa registrada em forma de escrita.

        O autor, ao eleger o recurso espacial como arcabouço do enredo, põe em prática a ideia de que o “espaço constitui uma das mais importantes categorias da narrativa, não só pelas articulações funcionais que estabelece com as categorias restantes, mas também pelas incidências semânticas que o caracterizam”. (REIS; LOPES, 1988, p. 204) De fato, no conto ora analisado, ele é o fator de sustentação da trajetória da personagem.

1.  Espaço de solidão opressiva

        Numa noite, véspera do dia previsto para voltar para casa de uma viagem de trabalho, um quarto de hotel barato em frente a uma boate que fazia chegar até os ouvidos do narrador uma música “para se dançar em discotecas vagabundas” é o refúgio da personagem insone que, nesse seu canto temporário do mundo, transmite-nos devaneios sobre seus sofrimentos, tão agudos que ele prefere “não materializá-los em peças escritas”. Afastada a cortina da janela, aquele refúgio é invadido pelo seu entorno, uma “zona de tráfico, contrabando e prostituição”. (SANT’ANNA, 2003, p. 9, 10) Depois dessa visão de sua janela, aquele espaço de aconchego, representado pelo quarto do hotel, impregnado da solidão e do sofrimento do narrador, acaba sendo o catalisador de sua confissão ao leitor sobre a sua grande experiência e desencanto com prostitutas, levando-o para a rua e para uma inquietante desilusão: naquela região de prostituição lhe é oferecida por um gigolô uma prostituta-menina. Por estar diante de uma realidade inaceitável, esse fato leva o narrador a um estado de horror, maculando o espaço do próprio hotel, que não mais poderia servir de abrigo, mas tornara-se uma ameaça de concretização de impulsos inaceitáveis. Ele sente que, ficando lá, poderia acabar cometendo um ato sem perdão diante de sua consciência. Assim, ele procura e consegue um voo noturno imediato de volta para São Paulo, onde mora.

        Podemos afirmar que, nessa parte do conto, o espaço desencadeia a ação, sendo responsável pela caracterização do espaço íntimo da personagem e de seus conflitos profundos. Depois de subir de volta ao quarto, ele confessa: “sentei-me na cama, e então, sim, pude compreender a verdadeira extensão do meu horror e fascínio, que me impeliam a querer partir imediatamente daquele lugar maldito”. (SANT’ANNA, 2003, p. 13) Também se delineia a presença da atmosfera social, entrevista inicialmente pela janela, e a reação da personagem ao se deslocar para o espaço externo e constatar que a sua realidade é inaceitável e, ao mesmo tempo, perturbadora para ele. Transparece o desprezo do eu narrador por coisas vulgares, chegando mesmo a demonstrar sua posição crítica em relação à estrutura da sociedade, quando menciona que a polícia fica a uma distância conveniente ignorando as flagrantes infrações à lei.

2 . Espaço de passagem

        Já no aeroporto, a personagem encontrará um lugar de passagem revelador, inserido na narrativa como introdução ao espaço da experiência vital. Sua estrutura física é composta somente de “um grande galpão e uma pista de pouso.” Além do mais, era madrugada e, estando com fome, o narrador não localiza nada parecido com “uma lanchonete aberta”. Contudo, encontra uma “mulher negra, muito velha, com uma cafeteira presa ao ombro” (SANT’ANNA, 2003, p. 16) que lhe serviria um café fresco e saboroso, antecipando, por meio de um contato feminino, a paz que viria a seguir. Essa personagem feminina nada tem do habitualmente atraente numa mulher, não lhe restava nenhum dente na boca e tinha uma perna amputada, mas ela faz o protagonista rir pela primeira vez naquela noite, ao sentir-se tocado pelo “fio entre a vida e a morte” (SANT’ANNA, 2003, p.16) que sente na anciã. Aquele encontro rápido e profundo preparará, naquele lugar de passagem, o espaço do encontro com a plenitude, já introduzindo o detalhe de estranhamento: a anciã ainda sente a sua perna amputada.

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