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O trabalho no fio da navalha

Por:   •  29/9/2021  •  Monografia  •  2.156 Palavras (9 Páginas)  •  152 Visualizações

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                O trabalho no fio da navalha:

nova morfologia no Serviço Social em tempos de devastação e pandemia

  • O artigo problematiza a confluência das crises desencadeadas pela epidemia do novo coronavírus e seus impactos no mundo do trabalho, no Serviço Social e no trabalho cotidiano de assistentes sociais, cujo desvendamento deve ser remetido à crise estrutural do capital das últimas décadas e às suas estratégias de enfrentamento.

  • A pandemia de COVID-19 evidenciou carências rudimentares, como a falta de equipamentos de proteção individual e coletiva, insuficiência de instalações hospitalares e de recursos humanos e capacidade de cobertura insuficientes, requisitos absolutamente necessários aos cuidados sanitários da população. Tornou-se inevitável a implementação de diversas medidas de restrição de circulação, confinamento e quarentena, a fim de evitar o aumento da propagação do contágio. Nesse contexto, os grupos mais atingidos foram os segmentos mais vulnerabilizados e periféricos das classes trabalhadoras, em função das precárias condições de moradia, trabalho e vida que marcam seu cotidiano. As referências à crise sanitária, à estagnação e crise econômica, ao aumento do desemprego e à crise social tornaram-se o centro das manchetes, e preocupações e angústias de grande parte da população ao redor do planeta. Situações inusitadas para as quais o mundo não estava preparado e, portanto, não tinha respostas.
  • Entretanto, a origem da crise em curso não está na covid-19, mas nas lógicas e configurações do sistema de metabolismo antissocial do capital, nos termos de Antunes (2020a e 2000b), que já estavam em desenvolvimento desde a década de 1970 e que se aprofundaram com as crises de 2007 e 2008.
  • Rob Wallace (2020) argumenta que as origens da atual pandemia de covid-19, assim como das diversas outras epidemias dos últimos anos, residem na globalização das práticas predatórias do agronegócio, mais especificamente na pecuária intensiva, cujos efeitos colaterais abrangem a produção de catástrofes ecológicas, epidemias e pandemias cada vez mais comuns e destrutivas. O aumento da ocorrência dos vírus estaria, para Wallace (2020), intimamente ligado à produção alimentar e à rentabilidade das empresas transnacionais, numa lógica de desenvolvimento de commodities e de usurpação de terras e recursos naturais, que buscam a maximização de lucros, independentemente dos riscos sanitários e humanos decorrentes desse modo de acumulação de capital.
  • A crise sanitária, econômica e social que assola o mundo no início do século XXI está imbrincada com as profundas modificações do capitalismo na sua forma de organização e de atuação econômica, social e política, tendo como base o capital imperialismo (Fontes, 2010), cujos traços fundamentais são: predomínio do capital monetário e seu impulso avassaladoramente expropriador; aumento da concentração e centralização do capital; presença de propriedade capitalista altamente transnacionalizada e difusa; captura de todos os recursos disponíveis e todas as atividades humanas para a sua transformação em forma de produção e extração de valor
  • O relatório da Oxfam Brasil (2017), intitulado A distância que nos une: um retrato das desigualdades brasileiras, escancarou a distância que, de fato, aparta a sociedade brasileira, quando apenas seis pessoas possuem riqueza equivalente ao patrimônio de 100 milhões de brasileiros e quando os 5% mais ricos detêm a mesma fatia de renda que os demais 95% da população (Oxfam, 2017, p. 6).

Desigualdade estrutural que se produz e reproduz num contexto cada vez mais antagônico à concepção de direitos humanos e se materializa nos mais diversos tipos de violências e violações contra a população negra, contra a população indígena, contra jovens negros(as), pobres e periféricos(as), contra a população LGTBI+, contra a mulher, contra os imigrantes, contra a classe trabalhadora; em suma, contra a maioria da população brasileira. A expressão máxima fica evidente no país quando o presidente trata um problema sanitário mundial de proporções inusitadas como uma “gripezinha”, enquanto o número de mortes pela covid-19 alcançou, até meados de outubro de 2020, 160 mil pessoas.

  • Sabemos que as crises no capitalismo não são fenômenos eventuais, mas constitutivos do movimento sociometabólico do capital. Nesse processo, o capital incorpora as inovações e os avanços tecnológicos e científicos, especialmente as tecnologias de base digital, que aceleram a produtividade do trabalho, provocam a economia de trabalho vivo e ampliam a população sobrante para as necessidades médias de valorização do capital, ampliando e diversificando a superpopulação relativa (Marx, 1968 e 1975). Dinâmica que aprofunda as taxas de desemprego e de precarização do trabalho em escala mundial.

  • Nesses termos, a precarização do trabalho não é uma fatalidade, como muitos(as) querem fazer crer, mas uma estratégia do padrão de acumulação capitalista em tempos de mundialização neoliberal, tanto no centro quanto na periferia dependente. Trata-se de um poderoso mecanismo de reorganização do trabalho no contexto do capitalismo hegemonizado pelas finanças, que combina flexibilização, terceirização e informalidade do trabalho “como partes inseparáveis do léxico e da pragmática da empresa corporativa global” (Antunes, 2020b, p. 11). Mesmo que a precariedade do trabalho seja um requisito inerente ao capitalismo, sua processualidade foi se transformando historicamente, assumindo na contemporaneidade capitalista traços de um movimento permanente de perdas, regressão social, ofensiva contra os trabalhadores, superexploração da força de trabalho em âmbito mundial, com expressões nefastas na periferia dependente. Portanto, “a precarização social do trabalho é um novo e um velho fenômeno, porque é diferente e igual, porque é passado e presente e porque é um fenômeno de caráter macro e microssocial”
  • A precarização do trabalho assume novas dimensões e manifestações na atualidade, atingindo o conjunto da classe trabalhadora, ainda que com diferentes intensidades, considerando-se a divisão sociotécnica, sexual e étnico-racial do trabalho. No âmbito das relações trabalhistas, desde os anos 1990 experimenta-se um processo permanente de erosão do trabalho contratado, regulado e protegido dominante no século XX, mesmo que no Brasil tenha se instalado um Estado de mal-estar social, nos termos do saudoso professor Francisco de Oliveira, que jamais universalizou o trabalho assalariado e os direitos daí decorrentes, desnudando a matriz do nosso capitalismo escravocrata, patrimonialista, patriarcal e genocida.
  • Em julho de 2020, os dados do IBGE (2020) revelavam o aumento para mais de 50% da força de trabalho (52 milhões de pessoas) entre desocupados, desalentados e subutilizados no mercado de trabalho brasileiro.4 Situação que se agrava ainda mais se considerarmos dimensões de gênero, raça e etnia, pois sabemos que os salários das mulheres são menores do que o dos homens que exercem a mesma atividade; e se forem pretas e pardas, serão submetidas a trabalhos mais precários e a salários ainda mais baixos.
  • Trata-se, porém, de um quadro que tende a piorar nos próximos meses. De um lado, porque apenas começam a ser sentidos os impactos da redução do auxílio emergencial (de R$ 600,00 para R$ 300,00) e sua extinção no final do ano de 2020. E, de outro, porque com a flexibilização das medidas de isolamento social, as pessoas que perderam o emprego e não estavam saindo para procurar em função da pandemia começarão a fazê-lo daqui para a frente, passando a figurar nas estatísticas, pois o IBGE só considera desempregado quem está em busca de emprego.5 Ao mesmo tempo, essa dinâmica societária transformou a composição e o perfil da classe trabalhadora, tornando-a mais heterogênea, compósita e complexa (Antunes, 1999, 2020a e 2020b), o que cria enormes desafios políticos para os sindicatos e entidades representativas da classe trabalhadora construírem pautas coletivas que representem os interesses e as necessidades desse conjunto diversificado de trabalhadores e trabalhadoras.
  • A situação de pandemia expõe com muita crueza as dimensões contraditórias desse processo de ruptura do pacto social construído em torno da Constituição Federal de 88 especificamente na Seguridade Social: de um lado, a falência das medidas ultraneoliberais que desfinanciaram as políticas sociais, especialmente o SUS e o Suas, os sistemas de proteção social mais requisitados no contexto da pandemia. E, ao mesmo tempo, a necessidade de mais Estado e do fortalecimento das políticas públicas para enfrentamento dessa grave crise.
  • As metamorfoses no “mundo” do trabalho incidem no mercado de trabalho do Serviço Social e no exercício profissional de assistentes sociais e demais profissionais, em uma contextualização de degradação do trabalho e precarização das condições em que ele é exercido, impactando não apenas as condições materiais dos sujeitos que vivem do trabalho, mas também suas sociabilidades individual e coletiva, considerando ainda a erosão dos sistemas públicos de proteção social, lugar institucional privilegiado onde operam os(as) trabalhadores(as) sociais.
  • O ponto a ser destacado é que essa a nova-velha morfologia do trabalho repercute e reconfigura o trabalho social de diferentes categorias profissionais, entre elas assistentes sociais, que têm nas políticas públicas sua mais ampla inserção.
  • No que se refere às condições e relações de trabalho, assistentes sociais, na condição de trabalhadores(as) assalariados(as), são submetidos(as) aos mesmos processos de degradação e violação de direitos que sofre o conjunto da classe trabalhadora, no interior da heterogeneidade que a caracteriza. Dentre esses processos, ao lado do(a) servidor(a) público, estatutário com contrato regido por regime jurídico próprio (profundamente atacado nesse momento), encontramos os mais variados vínculos contratuais, entre os quais: os chamados PJs ou “pejotização” no jargão da área; a terceirização; o trabalho temporário; o trabalho em tempo parcial, por tarefa, por projeto; o trabalho intermitente, entre outros.
  • Essa heterogeneidade — que tipifica o processo continuado de reestruturação produtiva do trabalho e do capital, caracterizado pelas diversas formas de contratação, de organização e de processamento do trabalho — expressa a nova morfologia ou a “uberização” do trabalho, como vem sendo denominado esse amplo movimento de mudanças que atinge o trabalho no capitalismo contemporâneo. E é preciso considerar que não se trata apenas da empresa Uber, mas, como observado anteriormente, da forma contemporânea do trabalho degradado e superexplorado que se dissemina amplamente para todos os setores e nichos do mercado de trabalho, com intensa incorporação das tecnologias de informação e comunicação (TIC).
  • No quadro pandêmico atual, o que era residual e embrionário, como o trabalho remoto ou o teletrabalho, generalizou-se como o “novo normal” — que não deve ser naturalizado —, exigindo acompanhamento crítico, pois certamente muitas dessas modalidades de trabalho, adotadas na situação de excepcionalidade, tendem a permanecer mesmo após a pandemia, inclusive no trabalho docente. Trata-se de um conjunto de novas situações de trabalho impostas de cima para baixo na maioria das instituições, mesmo nas universidades.
  • O trabalho profissional e seus sujeitos encontram-se tensionados pelas novas situações decorrentes do isolamento social, vivenciadas por indivíduos e famílias que transitam pela condição de trabalhadores(as) informais, precarizados(as), intermitentes, com predomínio de pretos(as) e pardos(as), acompanhando as estatísticas gerais que tipificam a população brasileira para os grupos mais pobres, com destaque para as mulheres. Seu traço definidor é a desigualdade e uma emblemática condição de subalternidade, que repercute, em muitos casos, na aceitação das regras institucionais como se fossem naturais. Ao mesmo tempo, é preciso considerar as condições sociais e materiais da população atendida pelas políticas públicas, bem como as implicações quando não dispõem de celular e/ou computador com acesso à internet e recursos para acesso on-line.
  • Em meio a esse quadro agravado pela pandemia, considerando a sua dimensão contraditória, o uso das TIC também tem sido potente para promover atividades essenciais, como: contatos e informações a familiares de pacientes internados; conversas de pessoas presas com seus familiares por meio de tablets doados; articulação com serviços e rede socioassistencial nos territórios de moradia; circulação de informações; novas interações intersetoriais; maior interlocução entre profissionais, equipes e setores, antes distanciados.
  • É importante ter presente que a generalização do teletrabalho na pandemia está funcionando para as empresas e instituições públicas e privadas, entre elas as universidades, como um grande laboratório. E sua continuidade pós-pandemia, defendida abertamente pelos(as) dirigentes institucionais para economizar custos e aumentar a produtividade do trabalho, poderá contar, como várias pesquisas vêm apontando, com a aprovação dos(as) próprios(as) trabalhadores(as).
  • O impacto das TIC e das novas formas de gestão empresarial e gerencialista das políticas educacionais e do trabalho docente é imenso e diversificado: no tipo de contrato uberizado (temporário, intermitente, terceirizado); na expansão ilimitada do número de alunos por turma; na expropriação do saber docente; na perda de autonomia acadêmica para tomada de decisões sobre procedimentos pedagógicos, definição de conteúdo, material didático, metodologias de avaliação etc.
  • A proximidade do Serviço Social e seus(as) trabalhadores(as) com diferentes segmentos das classes trabalhadoras e populares cria condições para o conhecimento das suas reais necessidades, seus modos de vida, de trabalho e de luta pela sobrevivência, suas fragilidades e fortalezas lapidadas pelo duro cotidiano. A socialização de informações, assim como a denúncia sobre violação de direitos, são instrumentos potentes a ser mobilizados.
  • O cotidiano profissional é marcado por tensões e desafios, mas é nesse mesmo cotidiano que se apresentam as possibilidades de superação e enfrentamento das requisições impostas, às quais os(as) assistentes sociais não estão obrigados(as) a se submeter, dispondo de autonomia relativa para propor e negociar suas propostas profissionais.
  • Para fazer frente a essa conjuntura desafiadora que interpela trabalhadores(as) e entidades de representação profissional e acadêmica, é fundamental ampliar e multiplicar os fóruns e debates coletivos, mesmo que virtuais, internos e externos ao Serviço Social. E resgatar o sentido de pertencimento de classe e alianças com forças coletivas de resistência.

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