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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Por:   •  16/11/2018  •  Trabalho acadêmico  •  83.152 Palavras (333 Páginas)  •  270 Visualizações

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Programa de Graduação em Direito

Professor José Claudio do Nascimento Henriques

Maria Regina dos Santos

Lógica Aplicada ao Direito

Belo Horizonte

2017

Assunto: Avaliaçao 3 

Mensagem: 
Questao referente ao livro Auto engano a ser entregue domingo dia 19 ate as 23:59 via sga., no icone "trabalhos"! 


" Auto engano. A questão que proponho é esta: Há, objetivamente, uma proposta do professor ao indicar a leitura deste livro a partir de três vértices, a saber: ética e moral / o homem / mentiras necessárias e patológicas , que poderia facilmente ser confundido com uma obra de auto ajuda. Tomando os três temas como premissas de uma argumentação, use duas laudas para elaborar uma conclusão consistente que unifique e esclareça tais premissas."

lizado avança, o mistério e a perplexidade se adensam. Eliminar falsas respostas é mais fácil do que enfrentar as verdadeiras questões. O que aƘnal sabemos sobre nós mesmos? A racionalidade orienta mas não move; a ciência ilumina mas não sacia; o progresso tecnológico acelera o tempo e abre o leque mas não delibera rumos nem escolhe os Ƙns. O universo subjetivo no qual vivemos imersos é tão real quanto o mundo objetivo no qual trabalhamos e agimos. A relação mais íntima, traiçoeira e deƘnidora de um ser humano é a que ele trava consigo mesmo. Este livro aborda a questão do auto-engano a partir de quatro ângulos distintos e complementares. O primeiro é a identificação do fenômeno: o que é o auto-engano e no que ele difere da ação de enganar o outro? Outra vertente de análise trata da explicação de sua existência. Por que o autoconhecimento é um desaƘo tão difícil para o ser humano e quais as motivações básicas alimentando a nossa propensão espontânea ao auto-engano? O terceiro ângulo de abordagem é de natureza lógica: como é possível para uma mesma pessoa enganarse a si própria? Como nos desincumbimos de proezas como crer no que não cremos, mentir para nós mesmos e acreditar na mentira ou remar de costas rumo a um objetivo? Finalmente, a questão do auto-engano é discutida a partir de um ponto de vista ético. Qual o lugar e o valor do auto-engano na vida prática, tanto sob a ótica dos projetos, desejos e aspirações de cada indivíduo em particular (ética pessoal) como na perspectiva mais ampla da nossa convivência em sociedades complexas (ética cívica)? Esses quatro conjuntos de questões sobre o tema comum do auto-engano deƘnem, com uma única exceção apenas, a estrutura e a seqüência do livro. O capítulo 1 é dedicado à análise do repertório do engano no mundo natural, à caracterização do auto-engano como fenômeno singularmente humano e à descrição de suas principais modalidades de ocorrência. O porquê e o como do auto-engano são tratados nos dois capítulos seguintes. Enquanto o capítulo 2 tem como foco principal a precariedade do autoconhecimento e os fatores subjacentes à nossa inclinação ao auto-engano, o capítulo 3 aborda a lógica paradoxal do fenômeno e busca elucidar os meandros do prometer auto-enganado no amor e na política em particular. No capítulo 4, que arremata o livro, discuto as implicações do auto-engano para a interação humana em sociedade e o papel das regras impessoais da ética cívica na moderação e prevenção dos seus piores efeitos. A grande exceção — a questão que não se enquadra na seqüência temática acima descrita — é a discussão do auto-engano na perspectiva da ética pessoal. A razão é simples. O tema da relação entre auto-engano, formação de crenças, motivação e comportamento individual é o único que não aparece conƘnado a algum capítulo especíƘco do livro porque ele é precisamente o Ƙo condutor — o eixo temático estrutural — que une, costura e atravessa o argumento do início ao Ƙm do trabalho. Do elogio do auto-engano no primeiro capítulo (seções 5 a 7) à discussão da exploração intertemporal de uma pessoa por ela mesma no último (seção 5), passando pela epistemologia do autoconhecimento e a lógica do auto-engano nos dois capítulos intermediários, são as questões da ética pessoal que conferem unidade e deƘnem a orientação básica do livro como um todo. Cada indivíduo é um microcosmo: um todo complexo de forças contraditórias e apenas parcialmente ciente de si mesmo. Por motivos que busco examinar em detalhe no livro, as perguntas da ética pessoal — quem sou? o que pretendo fazer de minha vida? como viver melhor individual e coletivamente? — revelam-se especialmente escorregadias e vulneráveis à ação do vasto repertório das tergiversações especiosas da mente humana. Se a propensão ao auto-engano é com freqüência uma maldição, essa maldição parece ser também a fonte secreta e inigualável das apostas no imponderável das quais dependem não só as maiores realizações criativas da humanidade como a esperança selvagem e inexplicável que nos alimenta, impulsiona e sustenta em nossas vidas. Mapear, analisar, ilustrar e discutir as implicações éticas do auto-engano na vida pública e privada, tendo a formação de crenças, as pulsões e a conduta individual como focos privilegiados da investigação, são os objetivos centrais deste livro. Um trabalho como este é inevitavelmente exploratório e incompleto. Do auto-engano pode-se dizer o que disseram Sócrates do bem e da virtude e Agostinho do tempo: todos nos imaginamos familiarizados com ele, mas somos incapazes de entendê-lo de forma clara e satisfatória. Pior que o simples desconhecimento, contudo, é a ignorância potenciada de uma falsa certeza — o acreditar convicto de quem está seguro de que sabe o que desconhece. Abrirse à dúvida radical — à possibilidade de que estejamos seriamente enganados sobre nós mesmos e sobre as crenças, paixões e valores que nos governam — é abrir-se à oportunidade de rever e avançar. É ousar saber quem se é para poder repensar a vida e tornar-se quem se pode ser. A ƘlosoƘa analítica do auto-engano é de certo modo o avesso da terapêutica exortatória da auto-ajuda. Nada mais longe do propósito deste livro do que a pretensão de “curar”, converter ou convencer a mudar quem quer que seja. Não acredito na eƘcácia de homilias e “curas” em cápsulas anódinas de auto-ajuda, assim como sou cético acerca da possibilidade de alguma forma de “regeneração” por meio de convencimento moral. Creio, porém, na força do desejo de cada ser humano de fazer de sua vida o melhor de que é capaz; e creio no princípio socrático de que o autoconhecimento — uma visão clara e crítica dos valores e crenças que regem a nossa existência — é parte indispensável da melhor vida ao nosso alcance. Espero que o esforço prospectivo, a intenção por vezes francamente provocadora e as inumeráveis perplexidades deste livro possam de algum modo contribuir não para reduzir a freqüência dos nossos auto-enganos, mas para torná-los menos nocivos e mais profícuos. A leitura de um texto é a ocasião de um encontro. Quando o teor do trabalho é predominantemente técnico ou factual, os termos da troca entre autor e leitor tendem a ser claros e bem deƘnidos: o que um oferece e o outro busca na leitura são informações relevantes e ferramentas para a obtenção de novos resultados. O contato entre as mentes é de superfície e o grau de assimilação dos conteúdos é mensurável. Mas quando se trata de um texto literário ou ƘlosóƘco de conteúdo essencialmente reƙexivo, como é o caso aqui, a natureza da relação mediada pela palavra impressa é outra. Mais que uma simples troca intelectual entre autor e leitor, a leitura é o enredo de dois solilóquios silenciosos e separados no tempo: o diálogo interno do autor com ele mesmo enquanto concebe e escreve o que lhe vai pela mente absorta; e o diálogo interno do leitor consigo próprio enquanto lê, interpreta, assimila e recorda o que leu. Como alguém que passa boa parte do seu tempo lendo e investigando o destino das idéias alheias (sou pesquisador na área de história das idéias), nunca me canso de perguntar a mim mesmo: onde estamos, o que procuramos e no que pensamos enquanto lemos? O depoimento do leitor Fernando Pessoa representa o ponto extremo de uma experiência que, em graus variáveis de intensidade, é provavelmente comum a todos. “Embora tenha sido um leitor voraz e ardente”, relata o poeta, “não me recordo de nenhum livro que tenha lido, a tal ponto eram minhas leituras estados de minha própria mente, sonhos meus, e mais ainda provocações de sonhos.” Ler é recriar. A palavra Ƙnal não é dada por quem a escreve, mas por quem a lê. O diálogo interno do autor é a semente que frutiƘca (ou deƘnha) no diálogo interno do leitor. A aposta é recíproca, o resultado imprevisível. Entendimento absoluto não há. Um malentendido — o folhear aleatório e absorto de um texto que acidentalmente nos cai nas mãos — pode ser o início de algo mais criativo e valioso do que uma leitura reta, porém burocrática e maquinal. “Autores são atores, livros são teatros.” A verdadeira trama é a que transcorre na mente do leitor-interlocutor. A ocasião da leitura, não menos que a da criação literária, pode ser o momento para um encontro sereno, amistoso e concentrado — algo cada vez mais raro e difícil, ao que parece, hoje em dia — com a nossa própria subjetividade. No diálogo interno do qual resultou este livro procurei acima de tudo ser Ƙel a mim mesmo. Na prática isso signiƘcou aceitar o desaƘo de pensar diretamente e por minha conta e risco o problema do auto-engano, em vez de esconder-me sob o manto protetor do que Mário de Andrade batizou certa feita, referindo-se a um verdadeiro vício ocupacional do intelectual brasileiro, de “exposição sedentária de doutrinas alheias”. Daí a opção de escrever um livro que não pressupõe nenhum tipo de conhecimento prévio especializado e daí o empenho em buscar evitar ao máximo a tentação de entremear o argumento desenvolvido no corpo principal do trabalho com citações e digressões eruditas. Como a carne, porém, é muitas vezes fraca, servi-me copiosamente das notas ao Ƙnal do livro para dar vazão à incontinência do historiador de idéias. O importante, entretanto, é frisar que a leitura do texto principal prescinde inteiramente da consulta às notas e referências que se encontram no Ƙnal do volume. O uso das notas é portanto facultativo e depende apenas do interesse especíƘco do leitor por algum ponto abordado no trabalho. Talvez o melhor a fazer durante a leitura, a Ƙm de preservar a ƙuência do texto e o Ƙo do enredo, seja simplesmente ignorar e esquecer que as notas existem. As traduções são todas de minha autoria, exceto quando referem-se a obras cuja tradução para o português constam da bibliografia. A composição de um livro é a ocasião de novos encontros. Com a exceção do prefácio e das notas, este livro foi integralmente escrito durante quatro estadias de um mês cada na pousada Solar da Ponte, situada na cidade histórica mineira de Tiradentes. Quando para lá parti pela primeira vez, no início de 1996, buscando o recolhimento e a solidão necessários para concentrar-me na redação do livro, não sabia como reagiria e o que poderia encontrar do outro lado. A experiência, felizmente, superou as minhas melhores expectativas. Na atmosfera serena e acolhedora da pousada — uma pequena obra de arte incrustada no encantador cenário tiradentino — encontrei o ambiente ideal que buscava para a realização do trabalho. A John e Anna Maria Parsons e a todo o pessoal do Solar — Suzana, Márcio, Inês, Pedro, Marlene, Bete, Mazé e Siloé — desejo expressar a minha sincera gratidão pela generosa e cordial hospitalidade com que me receberam. De minha parte, Ƙca a saudade e a esperança de poder reviver no futuro dias de mística alegria e calma plenitude como os que tive a sorte de poder usufruir em Tiradentes. Diversas pessoas leram e comentaram, verbalmente e/ou por escrito, algum dos diversos rascunhos preparatórios do livro. Ciente de que seria impossível lembrar de todos que, direta ou indiretamente, contribuíram para melhorar o argumento, fazer novas leituras, evitar obscuridades e persistir na execução do trabalho, gostaria de agradecer a: Cleber Aquino, Persio Arida, Ana Maria Bianchi, Carlos Alberto Primo Braga, Antonio Cicero, Renê Decol, Angus Foster, Norman Gall, Carlos Alberto Inada, Celia de Andrade Lessa, Luiz Alberto Machado, Juan Moldau, Verônica de Oliveira, Nilson Vieira Oliveira, Antonio DelƘm Netto, Samuel Pessoa, Celso Pinto, Horácio Piva, Rui Proença, José Maria Rodriguez Ramos, Bernardo Ricupero, Carlos Antonio Rocca, Jorge Sabbaga, Pedro Moreira Salles, Luiz Schwarcz, Marcelo Tsuji, Caetano Veloso e Andrea Cury Waslander. Versões preliminares dos três primeiros capítulos foram apresentadas e debatidas em seminários acadêmicos no Instituto de Pesquisas Econômicas da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo. Agradeço aos alunos de pósgraduação e aos demais participantes desses seminários pelo interesse e pelas perguntas e comentários feitos, alguns dos quais foram depois incorporados no trabalho. Gostaria, ainda, de fazer um agradecimento especial a quatro grandes amigos — Marcos Pompéia, Maria Cecília Gomes dos Reis (Quilha), Luiz Fernando Ramos (Nando) e Tal Goldfajn — que participaram calorosa e ativamente de minhas incursões pelos caminhos e subterrâneos do auto-engano. Mais do que ninguém, eles foram os interlocutores com quem tive a oportunidade de dialogar de forma exaustiva, fecunda e quase ininterrupta sobre as idéias, pistas, indagações e perplexidades que vinha trabalhando no livro. Este livro é dedicado a minha mãe Yone, poeta e psicanalista. Foi a forma que encontrei para tentar transmitir não apenas a ela, mas aos demais membros da família, a gratidão que sinto pelo privilégio de nossa convivência durante todos esses anos. 1. A NATUREZA E O VALOR DO AUTO-ENGANO 1. a arte do engano no mundo natural: princípios A natureza submete tudo o que vive ao jugo de duas exigências fatais: manter-se vivo e reproduzir a vida. Nada escapa. Do protozoário unicelular ao autodesignado Homo sapiens, a preservação do indivíduo e a perpetuação da espécie constituem o mínimo denominador comum da subsistência biológica.1 Por que é assim, ninguém sabe. O que parece claro é que o risco de extinção é comum a todas as espécies e nem todos os seres vivos têm a mesma facilidade em satisfazer os imperativos de sobreviver e procriar. As condições ambientais mudam ao sabor de forças aleatórias e os poderes de um organismo nem sempre correspondem às demandas deƘnidas por suas necessidades vitais. A natureza pode ser pródiga, mas não faz concessões. Falar em “guerra” seria exagero — cataclismos esporádicos à parte, há pelo menos tanta criação e exuberância quanto destruição e ruína no ƙuxo natural da vida pelo planeta. O que se observa, contudo, é que o processo evolutivo é marcado pela existência de forte competição e conƙito na disputa por recursos escassos. Alguns ambientes, é verdade, são mais exigentes que outros. Mas, se eles forem generosamente bem-dotados para a preservação e reprodução da vida, a própria proliferação de seres vivos resultante desse fato auspicioso se encarregará de alterar o ambiente e apertar o cerco sobre cada um. Quando o ambiente se torna mais rigoroso, a peneira da seleção contrai: a nota de corte aumenta. O desaƘo de sobreviver e procriar com sucesso na natureza é um jogo de astúcia e agilidade, sorte e força bruta — um jogo no qual nem todos os chamados logram se fazer escolher. Até onde pode chegar um ser vivo na busca de seus imperativos biológicos? A pergunta soa pueril quando nos debruçamos sobre o mundo natural. A natureza, ao que tudo indica, é cega, perseverante e desprovida de escrúpulos. Um organismo simplesmente fará tudo o que estiver ao seu alcance para saciar suas necessidades prementes. Ele agirá impelido pela intensidade de suas carências, de um lado, e limitado pelo seu leque de comportamentos e pelas ameaças e obstáculos com que se depara, de outro. Mas se os Ƙns perseguidos por todos os seres vivos são essencialmente uniformes, os meios dos quais dispõem para persegui-los são os mais diversiƘcados. O repertório é fabuloso e inclui peças de espantosa sagacidade. A arte do engano — o uso pelo organismo de traços morfológicos e de padrões de comportamento capazes de iludir e driblar os sistemas de ataque e defesa de outros seres vivos — é parte expressiva do arsenal de sobrevivência e reprodução no mundo natural. Há enganos para todos os gostos. Do mais simples ao mais complexo organismo natural, o ilusionismo defensivo e ofensivo permeia toda a cadeia do ser. A arte do engano, como veremos a seguir, não requer premeditação consciente ou intencionalidade por parte de quem a pratica. Ela aparece não só nas relações entre os membros de diferentes espécies (entre- espécies) como também, em diversos casos, nas interações dentro de uma mesma espécie (intra-espécie). Os primeiros indícios do que vem pela frente manifestam-se já na esfera da vida molecular. O funcionamento do sistema imunológico dos animais baseia-se na operação automática de mecanismos que protegem o organismo contra a invasão de substâncias nocivas — microrganismos patogênicos como bactérias, vírus e protozoários. A missão do sistema imunológico é dupla: detectar a presença do invasor e despachar a artilharia adequada de anticorpos para eliminá-lo. A identiƘcação do invasor patogênico é feita pelo reconhecimento de diferenças relevantes na composição bioquímica das células que pertencem ao organismo (e que portanto devem ser preservadas), de um lado, e das substâncias nocivas que não pertencem a ele (e por isso precisam ser destruídas), de outro. Nem sempre, contudo, a coisa funciona. Se a identiƘcação é falha, duas coisas podem acontecer: o invasor penetra à vontade e faz a festa nas entranhas do anƘtrião ou, como acontece nas doenças auto-imunes, uma parte das células boas do organismo é erroneamente destruída pela pontaria desastrada do batalhão defensivo. A guerrilha intestina opondo invasores patogênicos e o sistema imunológico é um campo repleto de práticas de camuƙagem, despiste e desinformação. Diversas bactérias conseguem burlar o mecanismo de detecção imunológica dos mamíferos graças à presença de uma camada química superƘcial que as reveste e que tem a propriedade de torná-las aparentemente idênticas às células normais do organismo. Alguns vírus, como o da pólio, certos tipos de gripe e talvez o hiv, acionam as defesas do organismo, mas entregam somente moléculas menores em sacrifício, servindo-se de táticas de camuƙagem química para evitar o fogo hostil dos anticorpos sobre os alvos moleculares cruciais.2 O tripanossomo africano — um protozoário parasita responsável pela doença do sono — vai mais longe. Ao penetrar no aparelho circulatório humano, ele exibe uma proteína-isca que dispara os alarmes do sistema imunológico e ativa rápida e vigorosa reação. O problema é que, quando a tropa de choque dos anticorpos está pronta para entrar em campo e massacrar o invasor, o tripanossomo já trocou de armadura e exibe outra variante daquela mesma proteína, neutralizando assim a primeira linha de defesa e provocando a convocação de um novo batalhão de anticorpos. No momento em que nova conƙagração é iminente, entretanto, ela é suspensa por outra alteração na superfície química do invasor. Desse modo, proteínas-isca e variações protéicas de superfície vão se sucedendo — o tripanossomo carrega genes para mais de mil manobras diversionistas análogas —, até que, Ƙnalmente, a infecção torna-se crônica e o organismo anfitrião sucumbe (não é para menos!) e cai em profunda letargia. Campo fértil para a propagação da ƙora do engano — não obstante a sua aparência inocente — é o reino vegetal. Algumas plantas, como por exemplo a erva-de-vênus (Dionaea muscipula), ostentam uma pseudoƙor que funciona como emboscada para atrair, prender e tragar insetos. Apesar de perfeitamente ociosa do ponto de vista da reprodução da erva, a pseudoflor é preciosa quando o que está em jogo é a próxima refeição. Diversas plantas, por sua vez, mimetizam o aspecto e o odor de fezes secas para atrair moscas e besouros em busca de alimento e sítio adequado para depositar seus ovos. Ao se darem conta do embuste, os insetos reiniciam a busca e inadvertidamente polinizam as impostoras vizinhas. A camuƙagem defensiva é um ardil típico de vegetais que povoam o ambiente rigoroso das regiões semi-áridas. Como sua única chance de escapar com vida do olhar famélico dos herbívoros locais é não dar na vista, muitas espécies de planta do agreste acabam adquirindo aspecto e coloração evasiva, ou seja, semelhante ao de substâncias indigestas como arbustos secos, galhos mortos, grama seca e pedregulhos. À delicada e numerosa família das orquídeas — existem cerca de 15 mil espécies distintas classiƘcadas — está reservado um lugar de honra na ƙora do engano vegetal. As orquídeas reproduzem-se por meio de alogamia: o processo de fecundação requer que o pólen de uma ƙor se misture ao estigma de outra. Como vencer a distância? A solução é recorrer ao fascínio do sexo. Diferentes tipos de orquídea especializaram-se em atrair diferentes tipos de insetos, seduzindo-os com estímulos sexuais que evocam o aspecto, a coloração e o odor das respectivas fêmeas. Acontece que incitar o inseto a tão-somente acercar-se da ƙor, atraído pela promessa de sexo, não basta. Para que a polinização seja bem-sucedida ele precisa se animar a montar na ƙor, senti-la de perto e partir para uma pseudocópula com ela. Só assim os sacos de pólen se Ƙxarão em seu corpo e serão efetivamente carregados e misturados ao órgão sexual de outra orquídea. O que é espantoso, contudo, é o grau de requinte e soƘsticação a que certas orquídeas chegaram na simulação dos apelos de determinadas fêmeas de inseto. Para as abelhas do gênero Andrena, por exemplo, o charme e o encanto das ƙores da Ophrys litea superam os atrativos da fêmea real. Diante da opção concreta entre uma e outra, a maioria dos machos revela que prefere embarcar no sexo ilusório e radiante da pseudocópula.3 A cópia excede o original. Propaganda enganosa? 2. a arte do engano no reino animal: aplicações Ao prosseguirmos na escala evolutiva, avançando rumo ao reino animal e aos primatas inteligentes, o repertório do engano se amplia e prolifera. Ao contrário de microrganismos e vegetais, os animais não se restringem a recursos morfológicos — ligados à forma e propriedades externas do organismo — na arte de iludir e engabelar o próximo. A novidade aqui é que começam a entrar em cena, passando a dominar de forma progressiva o espetáculo do engano no mundo natural, variações e estratégias comportamentais das mais insuspeitas procedências. À máscara que disfarça junta-se o gesto que ludibria. O que esperar de um inseto? Se a morfologia atrapalha, a astúcia resolve. O percevejo africano Acanthaspis petax desenvolveu uma técnica ardilosa de usar as formigas com o intuito de comê-las. Primeiro ele caça algumas formigas avulsas e gruda as suas carcaças sobre o seu próprio corpo. Assim disfarçado, ele se dirige ao formigueiro mais apetitoso das redondezas, penetra nele sem ser molestado e banqueteia-se lá dentro com o divino manjar. Na falta de formigas avulsas para se ocultar, o percevejo repete a façanha recorrendo a fragmentos de solo e areia. Se a erva-de-vênus, com a sua pseudoƙor, é o equivalente botânico do canto das sereias homérico, esse percevejo africano é a matriz biológica do cavalo de Tróia. O aumento da ƙexibilidade comportamental faz também vir à baila a prática do oportunismo intra-espécie baseado em engano. É o que se veriƘca, por exemplo, no caso de algumas variedades de mosca-doméstica nas quais o macho corteja a fêmea oferecendo-lhe como prenda algum alimento. Enquanto a fêmea se delicia e lambuza com a prenda, o macho aproveita para se acasalar com ela. Até aí tudo certo: nenhuma ilusão ou ardil, apenas uma troca tristemente familiar de equivalentes. O logro só aparece no momento em que surge um macho heterodoxo da mesma espécie que faz a mímica de fêmea interessada, consegue induzir um macho reto a fazer-lhe a oferenda e, na hora do coito, apanha o alimento e chispa para longe. De um pseudotravesti como esse, nem mesmo uma mísera pseudocópula a mosca iludida e fraudada consegue arrancar... Outro exemplo de oportunismo intra-espécie baseado em engano é o do peixe-roda de guelras azuis (Lepomis macrochirus). O macho normal dessa espécie é do tipo que precisa fazer um razoável investimento paterno para ter a chance de procriar. Ele prepara o local da fertilização construindo um grande número de ninhos onde a fêmea, devidamente cortejada, possa vir depositar os ovos. Em seguida, o macho fertiliza os ovos e faz a guarda dos ninhos, protegendo-os contra predadores até o nascimento das crias. Há, contudo, uma variante bem deƘnida de peixe-roda macho que, por atingir precocemente a maturidade sexual — aos dois anos em vez de aos sete anos de idade —, não consegue competir com os outros na busca e preparação de sítios adequados para a procriação. Nem por isso, é claro, desanimam. O jeito é inƘltrar-se no momento oportuno em ninhos alheios e despejar os seus gametas sobre os ovos que lá estiverem. Feita a incursão, os precoces não perdem tempo: zarpam para novos ninhos e deixam que os sentinelas ludibriados zelem pelos “seus” rebentos. A chave da inƘltração no reduto alheio é a ilusão do sexo. Enquanto são novos, os machos precoces têm o tamanho e o aspecto das fêmeas; quando crescem e atingem a maturidade, eles passam a encobrir suas incursões furtivas adquirindo a coloração e os trejeitos delas.4 Pelo mesmo atalho oportunista do peixe-roda precoce, ainda que se servindo dos préstimos escusos de outras espécies que não a sua, segue o pássaro cuco (Cuculos canorus). Além de sua capacidade de imitar o timbre vocal de diversas aves, o cuco especializou-se na arte de depositar seus ovos em ninhos de outras espécies de pássaros. Se o ninho-alvo é pequeno demais para que a fêmea do cuco ponha o seu ovo diretamente nele — aproveitando-se, é claro, da ausência oportuna da anƘtriã —, ela bota o ovo no solo e transporta-o com o bico até ele. O segredo básico do cuco é botar ovos cujo aspecto externo é semelhante ao dos ovos da anƘtriã. Outro cuidado importante é não abusar da hospitalidade: um ovo apenas, de cada vez, em ninho alheio. A cautela, ao que parece, compensa. Apesar da agressividade do Ƙlhote de cuco — ao nascer ele tenta destruir os demais ovos e expulsar do ninho os perplexos “irmãozinhos” —, ovos de cuco já foram encontrados em ninhos de 180 espécies distintas de aves. A análise da arte do engano no mundo natural revela que o repertório ilusionista gravita ao redor de dois estratagemas básicos. Há o engano por ocultamento, que se baseia em ardis de camuƙagem, mimetismo e dissimulação; e há o engano por desinformação ativa, baseado em práticas como o blefe, o logro e a manipulação da atenção. No primeiro caso, o engano deriva de uma ilusão negativa: a discrepância entre realidade e aparência consiste em desaparecer, em não se fazer notar, em induzir o outro organismo a não perceber o que lá está. É o caso, por exemplo, do camaleão; dos sapos furtivos que interceptam fêmeas atraídas por outros machos; do urso polar e de todos os animais que praticam a dissimulação para evitar predadores e rivais ou melhor acercar-se de suas preias. No jogo do ocultamento, quanto mais imperceptível melhor. No engano por desinformação ativa, a ilusão é positiva. A discrepância entre realidade e aparência consiste em induzir um organismo a ver coisas, a formar imagens deturpadas ou a distrair-se momentaneamente. A perceber algo, em suma, que não está lá. A essa modalidade pertence uma fauna estonteante de ocorrências. É o caso, por exemplo, da cascavel, com seu chocalho hipnótico que embruxa a vítima; das raposas que se Ƙngem de mortas para dissuadir predadores e que emitem falsos gritos de alarme para assustar os demais membros da alcatéia e ficar com a comida só para si; da cobra-coral-falsa, com a sua coloração berrante e idêntica à da temida coral venenosa; das fêmeas de insetos que emitem sinais luminosos para emboscar os machos e devorá-los; dos lagartos que ludibriam predadores desprendendo a cauda; dos répteis que se intumescem e dos mamíferos que eriçam os pêlos para parecerem maiores do que são em situações de perigo; dos elefantes que disparam rumo ao ataque mas não atacam, ou, ainda, para não alongar demais a lista, dos cães que latem e mostram agressivamente os dentes mas, na hora da briga, dão no pé. No engano por desinformação ativa, quanto mais verossímil melhor. O que se passa na mente de um animal que engana outro — se é que a noção de mental faz sentido aqui —, ninguém tem condições de saber. A existência de vida subjetiva nos animais, embora intuitivamente plausível em alguns casos, é impossível de ser provada. Se saber o que se passa em nossa própria mente é por vezes delicado (ainda que ninguém pareça capaz de negar que algo se passa nela), o que dizer da hipotética subjetividade de um peixeroda, lagarto, cuco ou cão doméstico?5 É difícil, também, saber até que ponto um determinado tipo de engano animal resulta de genética, pressão do ambiente, aprendizado ou uma combinação de fatores. O que parece claro, entretanto, é que quando chegamos aos parentes evolutivos mais próximos da espécie humana — primatas antropóides como os chimpanzés, gorilas e orangotangos — novos continentes se descortinam para o exercício da arte do engano. A ƙexibilidade comportamental ajuda; a linguagem — a falta dela — é o limite. A inventividade dos primatas parece resultar de uma fusão de elementos cognitivos e comportamentais — não só a capacidade de aprender e inferir como, também, a propensão a improvisar e experimentar na busca de soluções. Os relatos detalhados feitos por etólogos que se especializaram na observação e estudo de diferentes agrupamentos e espécies de macacos, tanto na natureza como em cativeiro, mostram a versatilidade de suas ações e reações diante de novas situações e oportunidades. Em alguns casos especíƘcos, envolvendo interações intra e entre-espécies, a prática do engano parece tangenciar a deliberação e premeditação conscientes. O repertório do engano primata inclui ardis de ocultamento e desinformação ativa. Um chimpanzé jovem e subalterno, por exemplo, precisa evitar a agressividade dos machos dominantes. Mas nem por isso ele vai deixar de colocar as mangas de fora quando puder fazê- lo. Uma saída é usar as mãos. Quando um chimpanzé subalterno tem uma ereção do pênis, ele é capaz de usar a mão para esconder judiciosamente o fato da vista de um macho dominante que esteja próximo a ele, mas tomando o cuidado necessário para que a fêmea na qual está interessado não perca em nada a visão dessa prova contundente de sua virilidade. Mostrar e ocultar estrategicamente os genitais fazem parte da retórica do conƙito e da sedução entre os antropóides. Outro estratagema comum de certos primatas para evitar a agressividade física de um macho mal-encarado é Ƙngir-se machucado, digamos, mancando ostensivamente. Quando o potencial agressor está por perto, o macaco manca; quando ele desaparece de cena, o macaco volta a andar normalmente; mas, se o outro reaparece de repente, o macaco sofre uma súbita “recaída”. A consistência do personagem — “que ele continue até o Ƙm tal como se apresentou no começo e permaneça de acordo consigo mesmo”, como propõe Horácio na Arte poética (linhas 126-7) — é uma das regras básicas da boa ficção narrativa. Episódios de manipulação da atenção alheia e de controle da expressão das próprias emoções são também freqüentes. Uma das técnicas favoritas empregadas pelos estudiosos do comportamento primata é o chamado “problema do alimento escondido”. Como lida um macaco qualquer com uma situação na qual só ele teve a chance de observar o local onde foi escondido um suculento cacho de bananas? As variações em torno dessa mesma trama e as respostas obtidas em diferentes situações, envolvendo não só relações entre macacos, mas também entre eles e atores humanos, dariam para encher um tratado. Do mais solidário ao mais rapace, tudo parece possível. Uma resposta comumente observada é a dissimulação prolongada, manipuladora e calculadamente egoísta. Um macaco é capaz de se fazer de desentendido durante horas, em plena área do esconderijo, evitando assim que os demais membros do bando cheguem a saber do seu precioso segredo. Mais tarde, enquanto estão todos dormindo menos ele, a “amnésia” acaba. O macaco volta furtivamente ao local do esconderijo, apanha as bananas e adeus. Tudo isso, é claro, na moita. E se os macacos falassem? O desafio de ensinar algum tipo de linguagem humana aos macacos vem provocando a paciência e a engenhosidade de etólogos há várias gerações. À luz do empenho despendido, no entanto, os resultados até o momento são píƘos. As primeiras tentativas, baseadas em comunicação oral, deram em nada. Embora dispostos a “macaquear” praticamente tudo que os homens fazem, os antropóides são um completo Ƙasco no ramo da vocalização. Melhores resultados vêm sendo obtidos com o uso da comunicação por meio de sinais e gestos manuais (linguagem para surdos). Mas o máximo que se conseguiu até hoje foi ensinar um vocabulário de cerca de 130 gestos-sinais, usado basicamente, com raras e dúbias exceções, para expressar desejos locais e tangíveis como “comida”, “brincar”, “coçar” etc. Em sintaxe, gramática e uso descontextualizado da linguagem, a maior nota obtida até agora por um símio ficou próxima de zero.6 O curioso nisso tudo é que, embora precária do ponto de vista lingüístico, a competência dos macacos no uso da linguagem é suƘciente para trair a sua forte propensão à prática do engano. A partir de um certo ponto ainda rudimentar no processo de aquisição de linguagem, os macacos parecem logo se dar conta de que se abrem novas e formidáveis possilidades de “levar vantagem”. As artimanhas do macaco Chantek — um orangotango macho submetido desde pequeno a um regime intensivo de aprendizado em comunicação por gestos manuais — são ilustrativas.7 Em situações normais, Chantek era capaz de transmitir aos seus educadores sinais manifestando algum desejo ou solicitando algum tipo de atenção. Nem sempre, é claro, os seus pedidos eram atendidos. Mas o que ele começou a perceber com o tempo, entretanto, é que o uso de alguns termos especíƘcos — como o sinal “sujo” expressando a vontade de ir ao banheiro, por exemplo — invariavelmente produzia o efeito desejado. Por que não aproveitar a estranha força desse gesto para outros fins? Foi aí que Chantek ensinou algo inédito aos seus mestres. Ele passou a fazer o sinal “sujo”, manifestando supostamente o desejo de sair do quarto para usar a latrina, mas quando era levado pelos treinadores até o banheiro ele “perdia a vontade” e passava a brincar alegremente com o sabonete e a torneira. A generalização da descoberta não tardou. Chantek logo se deu conta de que outros termos além de “sujo” — gestos sinalizando “abraçar”, “abaixar”, “atenção” ou “ouça”, por exemplo — também podiam se prestar a outros usos e Ƙns, nos mais diversos contextos. A manipulação astuciosa da linguagem tornou-se, ironicamente, o seu melhor ardil para interromper e escapar de uma sessão de treinamento demasiado maçante. Foi nesse contexto, por fim, que os treinadores conseguiram arrancar aquela que é talvez a mais sagaz expressão de linguagem até hoje feita por um macaco. Ao notar que estava prestes a ser admoestado por mais uma de suas traquinagens com o idioma, Chantek, acuado e contrito, teria gesticulado em defesa própria: “Chantek bom”. Auto-engano? 3. o viés antropomórfico no espelho da natureza Nada é tudo. Tempo, espaço e condição impõem, em alguma medida, perspectivas, ângulos e Ƙltros. O passado e o futuro só podem ser concebidos a partir do presente; o próximo e o distante só se deƘnem a partir de um ponto determinado; o alheio pressupõe e reƙete o familiar. Se os animais nos parecem desprovidos de escrúpulos e sentido ético na busca de seus alvos, como será que nós, seres humanos, pareceríamos aos olhos deles na busca dos nossos? O antropomorƘsmo pode ser parcialmente mitigado, mas jamais será erradicado por completo. Mesmo que um animal falasse com a desenvoltura de um homem, nós ainda teríamos que interrogá-lo, compreendê-lo e interpretá-lo. Por mais objetivo que seja, o conhecimento humano traz estampado na fronte a marca indelével de nossa humanidade — a forte seletividade cobrada pela teia das percepções, das categorias e dos interesses humanos.

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