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CIÊNCIA, BOM

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Por:   •  20/8/2014  •  Artigo  •  2.630 Palavras (11 Páginas)  •  232 Visualizações

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CIÊNCIA, COISA BOA...

Rubem Alves.

Fernando Pessoa dizia que “pensar é estar doente dos olhos”. No que eu concordo. E até amplio um pouco: “pensar é estar doente do corpo”. O pensamento marca o lugar da enfermidade. Ah! Você duvida. O meu palpite é que, neste preciso momento, você não deva estar tendo pensamentos sobre os seus dentes, a menos que um deles esteja doendo. Quando os dentes estão bons não pensamos neles. Como se eles fossem inexistentes. O mesmo com os olhos. Você só tomará consciência deles se estiver com problemas oculares, miopia ou outras atrapalhações. Quando os olhos estão bem a gente não pensa neles: eles se tornam transparentes, invisíveis, desconhecidos, e através de sua absoluta transparência e invisibilidade o mundo aparece. O corpo inteiro é assim. Quando está bom, sem pedras no sapato, sem cálculos renais ou hemorróidas, sem taquicardias ou enxaquecas, ele fica também transparente, e a gente se coloca inteiramente, não nele, mas na coisa de fora: o caqui, a árvore, o poema, o corpo do outro, a música. Quando o corpo está bem ele não conhece. Claro que tem pensamentos; mas são pensamentos de outro tipo, de puro gozo, expressivos de uma harmonia que não deve ser perturbada por nenhuma atividade.

Mas basta aparecer a dor para que tudo se altere. A dor indica que um problema apareceu. A vida não vai bem. É aquela perturbação estomacal, mal-estar terrível, vontade de vomitar, e vem logo a pergunta: “Que foi que comi? Será que bebi demais? Ou teria sido a lingüiça frita? Pode ser, também, que tudo tenha sido provocado por aquela contrariedade que tive...” Estas perguntas que fazemos, diante de um problema, são aquilo que na linguagem científica recebe o nome de hipóteses. Hipótese é o conjunto de peças imaginárias de um quebra-cabeças, que acrescentamos àquela que já temos em mãos com o propósito de compreendê-la. Compreender, evidentemente, para evitar que o incômodo se repita. Pensar para não sofrer. Deve haver, no universo, milhões e milhões de situações que nunca passaram pela nossa cabeça: nunca tomamos consciência delas, nunca as conhecemos. É que elas nunca nos incomodaram, não perturbaram o corpo, não lhe produziram dor. Só conhecemos aquilo que incomoda. Não, não estou dizendo toda a verdade. Não é só da dor. Do prazer também. Você vai almoçar numa casa e lá lhe oferecem um prato divino, que dá ao seu corpo sensações novas de gosto e olfato. Vem logo a idéia: “Que bom seria se, de vez em quando, eu pudesse renovar este prazer. E, infelizmente, não posso pedir para continuar a ser convidado”. Usamos então a fórmula clássica: “- Que delícia: quero a receita...” Traduzindo, para os nossos propósitos: “Quero possuir um conhecimento que me possibilite repetir um prazer já tido.” O conhecimento tem sempre o caráter de receita culinária. Uma receita tem a função de permitir a repetição de uma experiência de prazer. Mas quem pede a repetição não é o intelecto. É o corpo. Na verdade, o intelecto puro odeia a repetição. Está sempre atrás de novidades. Uma vez de posse de um determinado conhecimento ele não o fica repassando. “Já sei”, ele diz, e prossegue para coisas diferentes. Com o corpo acontece o contrário. Ele não recusa um copo de vinho, dizendo que daquele já bebeu, e nem recusa a ouvir uma música, dizendo que já a ouviu antes, e nem rejeita fazer amor, sob a alegação de já ter feito uma vez: Uma vez só não chega. O corpo trabalha em cima da lógica do prazer. E, do ponto de vista do prazer, o que é bom tem de ser repetido, indefinidamente.

O desejo de conhecer é um servo do desejo do prazer. Conhecer por conhecer é um contra-senso. Talvez que o caso mais gritante e mais patológico disto que estamos dizendo (todas as coisas normais têm sua patologia) se encontre nesta coisa que se chama exames vestibulares: a moçada, pela alegria esperada de entrar na universidade, se submete às maiores violências, armazena conhecimento inútil e não digerível, tortura o corpo, lhe nega os prazeres mais elementares. Por quê? Tudo tem a ver com a lógica da dor e do prazer. Há a dor incrível de não passar, de ser deixado para trás, de ver-se ao espelho como incapaz (no espelho dos olhos dos outros); e há a fantasiada alegria da condição de universitário, gente adulta, num mundo de adultos. Claro, coisa da imaginação... E o corpo se disciplina para fugir da dor e para ganhar o prazer. E logo depois de passado o evento o corpo, triunfante, trata de se desvencilhar de todo o conhecimento inútil que armazenara, esquece quase tudo, sobram uns fragmentos: porque agora a dor já foi ultrapassada e o prazer foi alcançado.

A gente pensa para que o corpo tenha prazer.

Alguns dirão: “Absurdo. É verdade que, em certas situações, o conhecimento tem esta função prática. Mas, em outras, não existe nada disto. Na ciência a gente conhece por conhecer, sem que a experiência de conhecimento ofereça qualquer tipo de prazer”. Duvido. O cientista que fica horas, dias, meses, anos em seu laboratório não fica lá por dever; pode até ser que haja pessoas assim: trabalhar por dever. Só que elas nunca produzirão nada novo. O senso de dever pode ensinar as pessoas a repetir coisas: excelentes técnicos de laboratório, bons funcionários, discípulos de Kant (um homem que desprezava o prazer e achava que, certo mesmo, só as coisas feitas por dever). Com o que concordaria o venerável Santo Agostinho que propôs a curiosa teoria, ainda defendida por certas lideranças religiosas, de que o jeito certo de fazer sexo é “sem prazer, por dever”, burocratas fiéis aos relógios de ponto. Cozinheiro por dever só faz comida sem gosto. Cientista também. Não consegue ver nada novo, é bicho sem asas, tartaruga fiel, rastejante. Idéias criativas requerem os vôos da imaginação, aquilo que, em linguagem psicanalítica tem o nome de “investimento libidinal”, coisa que a linguagem irreverente diz de maneira mais direta e matafórica: “tesão” – quando o corpo fica in/tenso de desejo, tenso por dentro, querendo muito. E é só por isto que o cientista fica lá, anos a fio – como verdadeiro apaixonado. Tudo por um único momento de êxtase: aquele em que, após um enorme sacrifício, ele diz: “Consegui! Eureka!” E ele sai como doido, possuído pelos deuses, pela alegria de uma descoberta. E então me dirão: “- Mas este não é um prazer do corpo, justamente com tudo o mais? Jogar xadrez: coisa do pensamento, que dá prazer. Lutar com um problema de matemática: coisa do pensamento, que dá prazer. E a decifração dos enigmas da natureza, dos seres humanos. Cada enigma é um mar desconhecido que convida: atravessar o oceano Atlântico

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