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Índio didáctico

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Por:   •  20/11/2014  •  Projeto de pesquisa  •  9.899 Palavras (40 Páginas)  •  276 Visualizações

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Um índio didático

Notas para o estudo de representações

Everardo Pereira Guimarães Rocha

Introdução

I. Este trabalho tem como objetivo primeiro analisar a representação do índio presente no livro didático. Neste sentido, ele se enquadra, por um lado, dentro da temática mais ampla do estudo das representações sociais em geral e, por outro, levanta questões quanto ao papel do sistema de ensino como elemento de reprodução de determinados valores e atitudes socialmente privilegiados numa dada cultura.

Todos aqueles que passaram pelos bancos escolares sabem que dali receberam, além de toda uma gama diversificada de informações, uma série significativa de valores componentes de um sistema de ideias que lhes foi regularmente inculcado ao longo de sua trajetória na vida acadêmica. Muitos destes valores assumem a forma de representações que se constituem em fatores fundamentais para a orientação da vida cotidiana e para a ordenação do mundo que nos cerca.

Podemos pensar na ampla quantidade de representações de que dispomos para categorizar as mais diferentes situações e os mais variados grupos de pessoas. Dessa maneira, quase tudo aquilo que se coloca como divergente e/ou contrastante com a realidade onde nos encontramos pode servir como matéria-prima para a construção das representações. Estas, positiva ou negativamente acionadas, têm como característica fundamental o fato de se prestarem a uma comunicação efetiva e a um conhecimento facilmente partilhado e difundido no interior da vida social. Assim, a colocação central que motivou o presente trabalho pode ser expressa nos seguintes termos: através de que mecanismos se instalam e se perpetuam tantas e tão profundas distorções, nas representações que fazemos da vida daqueles que são diferentes de nós?

Este problema não é exclusivo de uma determinada época nem de uma única sociedade. Acredito que o pano de fundo onde se inscreve esta questão vai bem longe na história humana. É um problema que nasce, talvez, na constatação das diferenças. De um lado, vemos um eu que come igual, veste igual, conhece o mesmo tipo de coisas, acredita nos mesmos deuses, casaigual, distribui o poder da mesma forma, significa igual e procede, por muitas maneiras, semelhantemente. E então, repentinamente, nos deparamos com um outro que não faz nada disso ou faz completamente diferente, que também sobrevive à sua maneira e que, por isso mesmo, se torna ameaçador, intratável, selvagem.

A sociedade do eu é a melhor, a superior. É representada como o espaço da cultura por excelência. É onde existe a civilização, o trabalho, o progresso. A sociedade do outro é atrasada.

É o espaço da natureza. São os selvagens, os bárbaros. São qualquer coisa menos humanos, pois estes somos nós. O barbarismo evoca a confusão, a desarticulação, a desordem. O selvagem é o que vem da floresta, da selva, que lembra, de alguma forma, a vida animal. A noção do que é de homens, do humano sempre pode ter algum limite. Existem coisas que são além. A humanidade enquanto um conceito que designa todas as formas de vida, raça e cultura dos homens não expressou, para o senso comum ao longo da história, uma ideia tão aberta quanto se quer hoje. Quase sempre um limite foi imposto a esta noção. Permite-se assim um exercício de classificação que os homens se impõem uns aos outros a partir da vivência de certos contrastes. Alguns exemplos engraçados e trágicos, ao mesmo tempo, nos são dados por Lévi-Strauss:

A humanidade acaba nas fronteiras da tribo, do grupo linguístico, por vezes mesmo, da aldeia; a tal ponto que um grande número das populações ditas primitivas se designa por um nome que significa os "homens" (ou por vezes, digamos com mais discrição ˗ os "bons", os "excelentes", os "perfeitos"), implicando assim que as outras tribos, grupos ou aldeias não participam das virtudes - ou mesmo da natureza - humanas, mas são, quando muito, compostos por "maus", "perversos", "macacos da terra", ou "ovos de piolho". Chegando mesmo, a maior parte das vezes a privar o estrangeiro deste último grau de realidade, fazendo dele um "fantasma" ou uma "aparição".

Talvez, a partir daí, possamos ter um entendimento mais certo do que ocorreu com Diogo Álvares, o Caramuru, a quem os índios brasileiros endeusaram; menos provavelmente, por sua pontaria e suas armas, como o quer a história oficial, que por uma velha atitude etnocêntrica que privou aquele pobre português perdido no mato de toda a chance de ser uma realidade. Assim,os exemplos se multiplicam. Linhas abaixo do texto transcrito Lévi-Strauss conta que após a descoberta da América, enquanto da Espanha eram enviadas comissões para investigar se o índios tinham ou não alma, estes, por seu turno, afogavam os brancos para saber se seu cadáver estava, como o deles, sujeito à putrefação.

O que importa realmente, a par dos exemplos, é o fato de que uma mesma atitude informa os diferentes grupos. Esta atitude tem um correlato bastante elucidativo e que talvez seja o fator maior no exacerbamento da maneira de encarar o outro. Existe realmente, paralelo à violência que a atitude etnocêntrica encerra, o pressuposto de que o outro deve ser alguma coisa que não desfrute da palavra para dizer algo de si mesmo. O outro do qual falamos na nossa sociedade é apenas uma representação que manipulamos como bem entendemos e a quem negamos, invariavelmente, um mínimo de autonomia. Assim como nos filmes e livros de science-fiction podemos pensar o quanto é cruel, grotesca e monstruosa uma civilização de marcianos que capturou nosso foguete; também, nada na verdade nos impede de termos, nestes mesmosfilmes e livros, um marciano simpático e inteligente que com incrível perícia salva a terra de uma colisão fatal com um meteoro gigante.

De um ponto de vista do grupo do eu, os que estão de fora podem ser maus e traiçoeiros bem como mansos e bondosos. A figura do louco, por exemplo, na nossa sociedade, é manipulada por uma série de representações que oscilam entre estes dois pólos, sendo denegrida ou privilegiada ao sabor das intenções que se tenha. Esta oscilação é não só periódica como também contextual. A expressão corrente muito louco, por exemplo, pode adquirir sentido pejorativo em determinados contextos e, em outros, ser referida elogiosamente. O louco, ao longo da história, foi, às vezes, acorrentado e, às vezes, feito portador de uma palavra sagrada. Aqueles que são diferentes de nós por não poderem dizer de si mesmo, são representados sempre através de nossa

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