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As Instituições de Estado e as Políticas de Acusação

Por:   •  4/7/2020  •  Resenha  •  1.792 Palavras (8 Páginas)  •  106 Visualizações

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Neste semestre, na disciplina Antropologia das emoções: modos de (re)construção e de regulação da vida social, discutimos essencialmente como “os marcadores sociais da diferença (gênero, raça, sexualidade e deficiência) são fundantes das ordens sociais, das razões de Estado e da construção e execução do aparato jurídico burocrático”. Dentre todos os temas e textos abordados, gostaria de destacar neste ensaio a dinâmica da ética nos espaços contemporâneos de convivência e vivência, por meio da avaliação moral da diferença.

Pretendo acionar os textos Necropolítica de Achille Mbembe, De que Lado Estamos? De Howard Becker, Aula de 17 de Março de 1976 de Michel Foucault e coteja-los com o trabalho Figuras do constrangimento: As instituições de Estado e as políticas de acusação de Camila Fernandes para que, desta forma, possamos discutir a maneira pela qual o estado moderno governa a vida dos chamados “indesejáveis”. Acionando conceitos como necropolítica, biopolítica, e o fazer antropológico do trabalho de campo, veremos por meio do trabalho do antropólogo como se processa a oscilação entre política de piedade e política de controle governamental. Tentaremos, também, levantar discussão a cerca dos motivos pelos quais em uma sociedade “famosa” por sua hospitalidade e cordialidade, como o Brasil, com frequência encontramos uma indiferença burocrática em relação as necessidades e sentimentos humanos.

Camila Fernandes, em sua tese de doutorado, “analisa a produção de determinadas políticas de acusação sexual presentes no interior de instituições de Estado” (FERNANDES, 2019, p.365). Estas políticas são analisadas por meio do estudo de campo em creche públicas da cidade do Rio de Janeiro. A autora tenta compreender os “circuitos de cuidado”, acompanhando a rotina de trabalho destas mulheres e a rotina de procura por vagas em creches de outras mulheres e suas crianças, além de analisar as políticas públicas que geram discursos e “práticas que contribuem para a gestão de conflitos, recursos, direitos, bens e serviços que chegam à população” estudada.

Neste caminho, veremos a produção de um discurso acusatório a cerca de uma sexualidade feminina “errada” e “irresponsável”, que sobrecarrega o serviço assistencial de crianças e suas demandas de cuidados e traz como consequência o mal funcionamento destes serviços. Esse “tipo de sexualidade”, praticado por mulheres pobres, negras e moradoras da favela, geram um suposto contingente excessivo de crianças, pois, segundo os interlocutores da autora, estas mulheres “não se planejam”, “fazem um filho atrás do outro” e gostam de viver de programas assistências. No trabalho de Fernandes, veremos que a ideia de uma sexualidade “errada” estaria na origem dos problemas sociais da comunidade e esta ideia será explicitada e anunciada com frequência no discurso daqueles profissionais dedicados ao atendimento deste contingente de mulheres e crianças dentro das creches.

Fernandes enfatiza que a “creche pública é um bem escasso” e essencial no oferecimento de cuidados e assistência à criança na favela. É também um espaço considerado por todos, usuários e trabalhadores, como de excelência. Apesar de todos os problemas de escassez existentes no serviço público precarizado, o status de excelência é atingido devido a sua importância e real empenho de todos os envolvidos na sua manutenção. Além disso, uma vaga na creche pública significa que a criança terá acesso, por cerca de quatro anos, a todo um conjunto de “afazeres que estão compreendidos nos termos do ‘tomar conta’”, que inclui ser alimentado, arrumado e principalmente estimulado, o que tornará possível o acesso a futuras realizações dentro do sistema escolar. Estar na creche é também um conjunto de atenções e afetos:

Habitar esta instituição significa que outros recursos poderão ser agregados sem tantas dificuldades, como acompanhamento médico na Clínica da Família, vacinação ou algum tratamento específico, como fonoaudiologia ou ortopedia. Tanto os familiares como as crianças poderão ter acesso e receber orientações relativas a benefícios sociais, encaminhamentos preciosos para este ou aquele serviço público ou de instituições não governamentais, informações sobre teste de DNA, acesso a cursos de profissionalização ou outras necessidades. (FERNANDES, 2019, p. 367)

A creche também funciona, em última análise, como um “Estado que funciona ao lado das casas”. A creche estabelece horários, dita condutas e procedimentos, elege documentos importantes, cria critérios e normas para o cuidado e para o seu acesso. Desta forma, o conjunto de práticas exercidas pelos profissionais da creche, ao executarem a política pública, não reproduzem apenas o aparato burocrático, mas também os conceitos morais do estado. Assim, produzem também discurso sobre o que seria esse “excesso sexual” atribuído às mulheres que pretendem acessar este serviço.

O acesso da criança a creche é restrito e está dentro de um regime fechado de sorteio, que é realizado após um cadastro online no site da prefeitura e a confirmação presencial dos dados. A demanda é imensamente maior do que a oferta, fazendo com que cada unidade tenha uma lista de espera para casos de raríssimas desistências ou surgimento de novas vagas. Fernandes descreve com detalhes o caso de uma mãe que busca, como tantas outras, uma vaga diretamente na secretaria da creche. Esta mãe é recepcionada informalmente, ainda do lado de fora da creche, por uma funcionária que explica os procedimentos burocráticos para a entrada na creche, apenas no próximo ano. Diante deste “não”, a mãe aciona a sua história e elabora seus motivos para um acolhimento mais urgente em ordens de grandeza, primeiro as questões de segurança (sua casa possui mofo e escadas inseguras a criança), depois discorre sobre os problemas de saúde de seu marido que está sob seus cuidados e enumera seus problemas financeiros terminando por lembrar da sua situação de vulnerabilidade como sendo beneficiária do Bolsa Família. Mesmo que inconscientemente, esta mãe aciona os critérios de avaliação estatal para ingresso na creche fora do sistema de sorteio, que se baseia sobretudo na vulnerabilidade social do solicitante. Apesar do apelo, não foi possível romper as barreiras deste sistema e a mãe foi orientada pela funcionária a voltar outro dia para conversar com a direção da instituição, mesmo sabendo que a resposta negativa seria a mesma.

Outra situação marcante descrita pela autora foi o caso de uma mulher que buscava uma vaga para que o filho pudesse ficar na creche algum tempo e não presenciasse as agressões sofridas pelo marido.

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