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Cidade de Deus: A exclusão e o processo civilizatório

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Por:   •  16/6/2013  •  Resenha  •  2.688 Palavras (11 Páginas)  •  554 Visualizações

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Cidade de Deus: A exclusão e o processo civilizatório, Sérgio Telles

"Cidade de Deus", o festejado filme de Fernando Meireles, é baseado no livro homônimo de Paulo Lins. A matéria prima do romance veio de uma pesquisa sobre criminalidade na favela carioca Cidade de Deus, da qual participou o autor. A partir de personagens reais e fatos ali ocorridos, Lins construiu seu enredo, situado nos anos 70 e 80, mostrando como o tráfico de drogas se iniciou timidamente, apenas mais uma entre várias práticas marginais, como assaltos e roubos, até se instalar como atividade principal das gangues. Vemos ali, in statu nascendi, a força e o poder econômico que essas novas quadrilhas atingiram, a ponto de serem hoje um poder paralelo, que desafia o estado, impondo suas próprias exigências.

Tanto o romance como o filme - que focalizam a extraordinária violência da fração marginal - não estão preocupados em fazer um relato documental sobre a favela como um todo. Em sua rica complexidade social, a favela entremescla trabalhadores honestos e bandidos, em áreas bem delimitadas e discriminadas, segundo o próprio autor. Ele mesmo é uma evidência disso, pois sempre morou na Cidade de Deus com seus pais, numa família bem constituída, estudou regularmente e entrou numa universidade. Antes do romance que foi filmado, escrevera livros de poesia.

É necessário dizer isso para evitar estereótipos que confundem favelados com marginais. Embora ambos convivam em situações muitas vezes sub-humanas, miseráveis e de exclusão, nem todos reagem da mesma forma a essa privação. O que faz com que frente a miséria e suas condições degradantes, alguns optem, se é que podemos falar assim, pelo crime e outros não, é uma das questões que ventilaremos aqui, sem pretender esgotá-la.

"Cidade de Deus" tem como núcleo central o fenômeno da violência e da criminalidade. Se este fenômeno pode ser estudado via depoimentos e estudos sociológicos, a abordagem ficcional não é menos rica, pois a percepção fina e acurada do artista, ao recortar a realidade para montar sua obra, produz intensos e valiosos efeitos de verdade.

Vamos então seguir o enfoque do autor. Embora o filme conte várias histórias diferentes, o núcleo narrativo mais duro está centrado em três adolescentes e seus irmãos menores, entre eles o narrador Buscapé (que centraliza e unifica os diversos episódios contados em flash-back) e a dupla Bené e Dadinho, que terão grande destaque no desenvolver da trama.

Uma coisa que o artista deixa logo patente é a quase total falta de adultos. É como se naquelemundo ali retratado não existissem os adultos, como se não existissem pais ou famílias. A cena é inteiramente dominada por adolescentes e crianças.

Na primeira fase, os adolescentes executam pequenos golpes e assaltos. Não planejam matar ninguém em suas incursões. Se isso ocorre deve-se mais a um imprevisto inoportuno do que a uma ação planejada. O autor mostra a marginalidade num momento pré-tráfico de drogas, coisa que se alterará completamente na década seguinte. O episódio que mostra o final trágico dos três adolescentes e o posterior, que trata da irrupção franca do tráfico, estão ligados pelo personagem Dadinho. Muito mais jóvem, uma criança, ele teimava em participar das incursões dos três amigos. Já naquela ocasião, Dadinho se diferençava pela intensidade assustadora de sua violência e agressividade.

Vemos que Dadinho, adolescente ou jóvem adulto, vai a um pai-de-santo que o rebatiza com o nome de Zé Pequeno, prometendo-lhe imunidade contra os inimigos, caso usasse um determinado amuleto. A partir daí, Zé Pequeno se transforma num chefão da droga. Instaura um reino de terror e violência, apenas mediado pelo amigo Bené, que muitas vezes o contem no extravasar da mais pura violência.

Em determinado momento, Bené se apaixona. Planeja abandonar o crime e viver em outro lugar. Faz uma festa de despedida, onde é acidentalmente morto. Essa perda radicaliza a violência de Zé Pequeno até os estertores finais.

Analiticamente, podemos aprender algumas coisas apresentadas pelo autor. Em primeiro lugar, parece ele apontar para o abandono das crianças - a ausência de pais, adultos, famílias - como uma das maiores causas da violência e criminalidade.

Isso estaria muito próximo da compreensão analítica. Sabemos que para a psicanálise, o ser humano nasce em desamparo e se constitui no contato com o outro. É necessário que sejam exercidas as funções materna e paterna para que o infans se constitua como sujeito desejante. A "função materna" (que não necessita ser executada pela mãe biológica) corresponde não só os cuidados com a vida orgânica do bebê, a satisfação de suas necessidades fisiológicas, bem como o fundamental envolvimento fusional afetivo da díade mãe-bebê, que permite a introdução do bebê no mundo simbólico cultural, através da linguagem. A "função paterna" (tal como dito acima, não necessita ser executado pelo pai biológico) é aquela que vem regular essa relação fusional, pemitindo que a mãe e o bebê se separem e se reconheçam como subjeitos discriminados. Posteriormente, esse pai estabelece a lei, a interdição do desejo, dando à criança acesso ao mundo externo e à realidade. Estamos resumindo os três momentos do édipo segundo Lacan, pois essas relações básicas primeiras vão estabelecer as identificações constitutivas do próprio psiquismo do novo ser humano, organizando as interdições necessárias à vida em sociedade.

A agressão desimpedida e a libido também sem restrições tornariam a vida em sociedade inviável. A civilização, diz Freud, repousa necessariamente na repressão dessas duas grandes forças pulsionais, daí seu permanente e estrutural "mal-estar". Essa repressão que permite o convívio social, se organiza singularmente através das já mencionadas funções paterna e materna, que são internalizadas como o complexo de édipo.

Isso tudo é importante lembrar, pois na medida em que no filme vemos crianças totalmente abandonadas na rua, podemos concluir que esse abandono produz uma definitiva falha estrutural psíquica, onde a regulação da agressividade - uma dotação comum a todos - fica prejudicada.

O filme dá algumas confirmações dessa hipótese. Não é gratuito que Buscapé, de todos os personagens, o único que escapa do inferno ali descrito, advém de uma família constituída, onde aparecem pai e mãe, exercendo suas funções estruturantes. Os demais personagens, parecem organizar suas identificações com os chefes de gangue, incapazes de transmitirem a lei.

Poder-se-ia dizer que não, que tais chefes de gangue transmitem sim a lei, a sua lei

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