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Memórias da Pandemia

Por:   •  25/11/2022  •  Monografia  •  1.022 Palavras (5 Páginas)  •  67 Visualizações

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Crônicas da Pandemia 1

Vai passar, professora.  Isso tudo vai passar

        Depois de mais de um ano longe dele, volto ao campus da Gávea.  E faço isso pela mais prosaica das razões:  preciso de dinheiro vivo em casa e a agência do banco nos Pilotis da Ala Frings me parece a alternativa menos perigosa.  Pego o carro meio que sem pensar e refaço o caminho tantas vezes percorrido.  Mas o caminho é outro, passa por ruas semidesertas, cruzadas por poucos e estranhos seres mascarados, cabisbaixos e esquivos.  Eu também sou outra.  O tempo passado fechada em casa, refém do temor do contágio, me faz olhar para o caminho tão conhecido como se fosse outro, como se a minha cidade fosse outra, como se o meu mundo tivesse sido abduzido para outro planeta.

        Me assombra a quantidade de comércios de portas fechadas.  E mais ainda a infinidade de placas de “vende-se”, “aluga-se” e “passo o ponto” presas nos muros de casas, nas janelas de apartamentos, nas portas arriadas de antigas lojas.  Por toda parte vejo as feridas abertas pela pandemia no tecido urbano e em tantas vidas.  Tenho a sensação de dirigir por uma cidade assolada por uma catástrofe, de ser uma sobrevivente, de circular no day after de alguma desgraça terrível.  

        Passo pelo Planetário adormecido, e me pergunto se, lá dentro, o firmamento projetado na cúpula mostrará os planetas e as estrelas inertes, paralisados pelo vírus invisível, mas poderoso, que imobilizou o planeta terra.  Chego ao portão sempre aberto, como devem ser as portas de uma Universidade.  Os guardas me param, pergunto se eles e suas famílias estão bem e cada um me conta sua história nesses tempos sombrios enquanto, maquinalmente, cumprem o protocolo de medir minha temperatura e me dizem, acolhedores, o mesmo que eu queria dizer a eles: “bom ver a senhora de novo”.

        Os carros estacionados em quase todas as vagas me dizem que as salas dos professores e os laboratórios voltaram a ter vida.  Mas os Pilotis estão vazios.  A agência bancária, por contraste, está repleta.  Muitos funcionários e nenhum professor ou aluno.  Entro na fila, converso com quem está a meu lado enquanto espero, retiro o dinheiro e faço o caminho de volta em direção ao carro estacionado. Mas paro no meio do caminho.

        Pela primeira vez os pilotis estão calados às 11 horas de uma manhã de quinta feira.  Escuto aquele silêncio.  Olho aquele vazio.  Mas não ouço nem vejo ninguém que me explique o sentido do que estamos vivendo desde o dia 13 de março de 2020.  E sinto uma enorme vontade de abraçar alguém e de ser abraçada.  Mas nos Pilotis há apenas uma profusão de totens com embalagens de álcool em gel e mensagens encorajadoras para que quem passe por ali proceda ao novo ritual de purificação que se espalhou por toda parte.  Como em templos de muitas religiões, é obrigatória a ablução das mãos, mas não com a água fresca e pura.  Faço isso mecanicamente, enquanto penso que o único que divide comigo os pilotis despovoados, o sempre ali deslocado John Kennedy, não poderá seguir o rito do álcool em gel, porque não tem mãos para purificar.  

        Abro a porta do carro e giro a chave do motor.  Não tenho nenhuma vontade de subir até o Departamento de História, onde passei mais tempo que em minha própria casa nos últimos 50 anos.  Também não quero atravessar o rio Rainha para ir até a sala 263 L, onde há 15 anos vivo a cada dia a aventura de criar, junto com uma equipe muito competente, o Núcleo de Memória da PUC-Rio.  Nem o Departamento, nem o Núcleo são salas vazias.  Nem os Pilotis, as salas de aula, a biblioteca, os laboratórios, os jardins e os corredores desabitados são a Universidade.

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