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UMA VIAGEM A BORDO DA STULTIFERA NAVIS: A (DES)INSTITUCIONALIZAÇÃO DA LOUCURA

Por:   •  21/1/2019  •  Artigo  •  6.814 Palavras (28 Páginas)  •  194 Visualizações

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UMA VIAGEM A BORDO DA STULTIFERA NAVIS: [pic 1]

A (DES)INSTITUCIONALIZAÇÃO DA LOUCURA

Charles Alexandre Porto[1]

RESUMO

O objetivo do artigo em tela, conforme evidencia seu título, consiste em empreender uma viagem a bordo da Nau dos Loucos com o intuito de perscrutar o processo de institucionalização e desinstitucionalização da loucura. Tendo este propósito mor em vista, no primeiro momento, o background histórico é dado pelo magistral edifício teórico erigido por Michel Foucault em sua História da Loucura. Neste ínterim, procura-se compreender as diferentes significações atreladas à loucura no percurso histórico, até sua institucionalização. A partir daí direciona-se os holofotes de atenção para o processo de institucionalização da loucura ocorrido no Brasil. Ainda sob o prisma histórico, vislumbra-se compreender o tratamento conferido aos “loucos” no país, notoriamente inspirado no modelo francês de asilamento institucional em manicômios e hospícios, que encontra no hospital Colônia de Barbacena, em Minas Gerais, a representação máxima do fracasso desse sistema. Por fim, descortinam-se outras possibilidades, como a desinstitucionalização da loucura e as tendências atuais das políticas de saúde mental.

Palavras-chave: Loucura. Institucionalização. Desinstitucionalização.

ABSTRACT

The aim of the paper screen, as evidenced by its title, is to take a trip aboard the Ship of Fools in order to scrutinize the process of institutionalization and deinstitutionalization. With this major purpose in view, at first, the historical background is given by the masterful theoretical edifice erected by Michel Foucault in his Madness and Civilization. In the meantime, we try to understand the different meanings linked to madness in the historical route, to its institutionalization. From then directs to the spotlight of attention to the process of institutionalization of madness occurred in Brazil. Yet from a historical perspective, sees to understand the treatment given to "crazy" in the country, notably inspired by the institutional institutionalization model in mental hospitals and hospices, lying in Cologne hospital Barbacena, in Minas Gerais, the maximum representation of failure system. Therefore unveil up other possibilities, such as deinstitutionalization and the current trends in mental health policies.

Keywords: Madness. Institutionalization. Deinstitutionalization.

        

I

A GUISA DE INTRODUÇÃO:

O BINÔMIO SANIDADE/LOUCURA

“[...] se, por algum azar, as pessoas compreendessem umas às outras, nunca seriam capazes de chegar a um acordo.”

Charles Baudelaire, Diários Íntimos

Há muito a psiquiatria rechaçou de seus manuais o termo “loucura”. Em seu lugar foram apresentadas as noções de “doença mental” e “psicose”. Não obstante isto, hodiernamente, a loucura ainda povoa o imaginário coletivo, reunindo em torno de si ideologias tecidas a partir de elementos advindos da racionalidade científica e do senso comum. O doente mental ou psicótico já não se encontra mais, como o louco de outrora, aprisionado em manicômios e hospícios, mas a grilhões ideológicos.

Uma das dificuldades que acompanha a noção de loucura diz respeito à sua conceituação. Grande parte dessa dificuldade deve-se ao fato de a loucura ser um conceito relacional, isto é, os termos empregados em sua definição referem-se sempre a outra coisa: um comportamento ou uma maneira de ser.  O louco, por conseguinte, é o indivíduo cujo comportamento ou modo de ser é relativo a outro comportamento ou modo de ser. Obviamente, não em relação a qualquer comportamento ou maneira de ser, mas em relação ao comportamento ou modo normal de ser. Portanto, a loucura é sempre concebida relativamente a uma ordem de “normalidade”, “racionalidade” ou “saúde”, sendo assim inscrita nos quadros da “anormalidade”, “irracionalidade” ou “doença”.[2]

É precisamente neste contexto que emerge o binômio loucura/sanidade, normalidade/anormalidade, racionalidade/irracionalidade, saúde/doença. Apesar da obviedade que acompanha esta constatação, a enunciação de algumas indagações sobre o binômio loucura/sanidade faz a simplicidade ceder lugar à complexidade: o que é loucura? O que é sanidade? A sanidade é o oposto da loucura, ou a loucura é o antídoto da sanidade? Qual conceito surgiu primeiro: loucura ou sanidade? Como distinguir um “louco” de uma “pessoa sã” ou “normal”? Ou ainda: qual a zona limítrofe entre a sanidade e a loucura?

As questões levantadas acima não apenas deflagram a dificuldade e complexidade envolvidas na conceituação de loucura e sanidade, normal e anormal, como também àquelas atinentes às relações que (in)existem entre ambas. Significa dizer que, qualquer estudo que aborde uma ou outra deverá fazer menção a ambas, ainda que vise tocar apenas as ranhuras da superfície. Logo, falar sobre a loucura, em alguma medida, implica discorrer também sobre a sanidade.

Com efeito, a palavra sanidade surgiu no século XVII para designar “a saúde do corpo e da mente” – acepção esta concedida pelos novos médicos e higienistas da mente.[3] Já no século XIX esta noção ganharia nova feição, mais familiar, sendo concebida como o antônimo de loucura. Muito embora se conheça sua gênese, até hoje esta não recebeu um tratamento (científico) satisfatório a ponto de descrevê-la e caracterizá-la. Outrossim, diferentemente da loucura, a palavra sanidade é raramente encontrada em poemas, provérbios, piadas, trabalhos artísticos, entre outras manifestações humanas. Segue-se disso tudo que, apesar de necessária, trata-se de uma palavra com praticamente nenhuma credibilidade científica e de pouco uso literário.[4]

Por seu turno, ao longo da história, a loucura tem despertado a curiosidade e perspicácia de religiosos e filósofos, como Erasmo de Roterdã e Michel Foucault, poetas e escritores como Sebastian Brant e Machado de Assis, até artistas como Hieronymus Bosch, além de especialistas das mais variadas ciências, com destaque para a psiquiatria e a psicologia. Em sua incursão sobre a história da loucura Michel Foucault apropria-se das inúmeras representações conferidas à matéria ao longo dos tempos para situar no século XV o momento em que a loucura passou a assombrar e fascinar a imaginação do homem ocidental – o que Foucault denominaria de “manifestação cósmica” da loucura. Talvez ninguém melhor do que Bosch conseguiu captar a essência dessa representação em sua, agora famosa, Stultifera Navis – a Nau de Loucos. Não obstante isto, seria na transição do século XVIII para o século XIX, com o fenômeno da institucionalização dos doentes mentais e o nascimento da psiquiatria, e mais propriamente na década de 1960 e 1970, com o movimento de reforma psiquiátrica ou desinstitucionalização, que se percebeu que a loucura, além de fascinar, despertava o medo nas pessoas – percepção esta que constitui o principal legado do debate travado a esta época entre psiquiatras e antipsiquiatras. Muito se fala no pós-guerra sobre a loucura, mas há pouco entusiasmo sobre a sanidade. Ilustra bem isto a literatura publicada à época que, quando abordou a temática, a tocou apenas superficialmente, como bem ilustra A sociedade sã (1956), de Erich Fromm, o clássico Sanidade, loucura e a família (1964), de R. D. Laing e Aaron Esterson, e o célebre O mito da doença mental (1960), de Thomas Szasz. Depreende-se daí que a ênfase maior sempre esteve do lado da patologia, da loucura, ao passo que, conforme afirma Adam Phillips, “O fervor apocalíptico dos antipsiquiatras e o pretenso realismo sensato dos cientistas se combinavam para fazer toda a noção de sanidade parecer de certo modo irrelevante.”[5]

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