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Escravo negro na vida sexual e familiar de um brasileiro

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Por:   •  7/9/2014  •  Artigo  •  9.937 Palavras (40 Páginas)  •  640 Visualizações

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IV - O escravo negro na vida sexual e de família do brasileiro

(Do Livro: “Casa, Grande & Senzala”, de Gilberto Freyre,

Editora Record, 28ª Edição, 1992, 283-379)

Disponível também no site: http://www.ufrgs.br/proin/versao_1/casa/index.html

Gilberto Freyre

Todo o brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na alma, quando não na alma e no corpo - há muita gente de jenipapo ou mancha mongólica pelo Brasil - a sombra, ou pelo menos a pinta, do indígena ou do negro. No litoral, do Maranhão ao Rio Grande do Sul, e em Minas Gerais, principalmente do negro. A influência direta, ou vaga e remota, do africano.

Na ternura, na mímica excessiva, no catolicismo em que se deliciam nossos sentidos, na música, no andar, na fala, no canto de ninar menino pequeno, em tudo que é expressão sincera de vida, trazemos quase todos a marca da influência negra. Da escrava ou sinhama que nos embalou. Que nos deu de mamar. Que nos deu de comer, ela própria amolegando na mão o bolão de comida. Da negra velha que nos contou as primeiras histórias de bicho e de mal-assombrado. Da mulata que nos tirou o primeiro bicho-de-pé de uma coceira tão boa. Da que nos iniciou no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da cama-de-vento, a primeira sensação completa de homem. Do moleque que foi o nosso primeiro companheiro de brinquedo.

Já houve quem insinuasse a possibilidade dê se desenvolver das relações íntimas da criança branca com a ama-de-leite negra muito do pendor sexual que se nota pelas mulheres de cor no filho-família dos países escravocratas. A importância psíquica do ato de mamar, dos seus efeitos sobre a criança, é na verdade considerada enorme pelos psicólogos modernos; e talvez tenha alguma razão Calhoun para supor esses efeitos de grande significação no caso de brancos criados por amas negras.

É verdade que as condições sociais do desenvolvimento do menino nos antigos engenhos de açúcar do Brasil, como nas plantações ante-bellum da Virgínia e das Carolinas - do menino sempre rodeado de negra ou mulata fácil - talvez expliquem, por si sós, aquela predileção. Conhecem-se casos no Brasil não só de predileção mas de exclusivismo: homens brancos que só gozam com negra. De rapaz de importante família rural de Pernambuco conta a tradição que foi impossível aos pais promoverem-lhe o casamento com primas ou outras moças brancas de famílias igualmente ilustres. Só queria saber de molecas. Outro caso, referiu-nos Raoul Dunlop de um jovem de conhecida família escravocrata do Sul: este para excitar-se diante da noiva branca precisou, nas primeiras noites de casado, de levar para a alcova a camisa úmida de suor, impregnada de budum, da escrava negra sua amante. Casos de exclusivismo ou fixação. Mórbidos, portanto; mas através dos quais se sente a sombra do escravo negro sobre a vida sexual e de família do brasileiro.

Não nos interessa, senão indiretamente, neste ensaio, a importância do negro na vida estética, muito menos no puro progresso econômico, do Brasil. Devemos, entretanto, recordar que foi imensa. No litoral agrário, muito maior, ao nosso ver, que a do indígena. Maior, em certo sentido, que a do português.

Idéia extravagante para os meios ortodoxos e oficiais do Brasil, essa do negro superior ao indígena e até ao português, em vários aspectos de cultura material e moral. Superior em capacidade técnica e artística. Mas já um livro de acadêmico acolheu, em páginas didáticas, a primeira tese - a superioridade do negro sobre o indígena. E deu o seu a seu dono, reconhecendo no africano, aqui introduzido pelo colonizador português, cultura superior ao indígena: "estavam [os africanos] numa evolução social mais adiantada que a dos nossos índios". É certo que semelhante ousadia do Professor Afrânio Peixoto custou-lhe severas restrições da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. "Com efeito, os nossos aborígines", escreveu a douta Revista em comentário ao livro do Professor Peixoto, "eram já astrólatras, enquanto os filhos do continente negro aqui introduzidos não haviam ainda transcendido o fetichismo puro, sendo alguns francamente dendrólatras."

Acrescentando com soberano desdém pela realidade: "nem pelos artefatos, nem pela cultura dos vegetais, nem pela domesticação das espécies zoológicas, nem pela constituição da família ou das tribos, nem pelos conhecimentos astronômicos, nem pela criação da linguagem e das lendas, eram os pretos superiores aos nossos silvícolas"; para concluir com ar de triunfo: "e até quanto à separação dos poderes temporal e espiritual, da sua rudimentar organização política, ainda não podem os autóctones do Brasil ser postos em degrau inferior aos filhos da terra adusta de Cam".

O estudo realizado entre as sociedades primitivas da América, em torno dos valores de cultura desigualmente acumulados nas várias partes do continente - acumulação que, elevando-se em semicivilizações no centro, achata-se, em grande pobreza de relevo, na região da floresta tropical para estender-se ainda mais rente com o solo na da Patagônia - deixa grande parte da população indígena do Brasil nessas duas áreas menos favorecidas. Apenas às margens, como em Marajó, verificam-se expressões mais salientes de cultura. Resultado, naturalmente, do contágio com o centro da América.

O mapa de áreas de cultura da América, organizado por Kroeber, dá-nos idéia exata da maior ou menor quantidade ou elaboração de valores. Dos altos e baixos caraterísticos da formação cultural do continente. Vê-se que a área da Patagônia, mais rasteira que a da floresta tropical, contrasta notavelmente com as duas ou três áreas que dão relevo cultural à América.

Nem da cultura nativa da América pode-se falar sem muita e rigorosa discriminação - tal a

desigualdade de relevo cultural - nem da África basta excluir o Egito, com a sua opulência inconfundível de civilização, para falar-se então à vontade da cultura africana, chata e uma só. Esta se apresenta com notáveis diferenças de relevo, variando seus valores na quantidade e na elaboração. Um mapa das diferentes áreas já identificadas, umas por Leo Frobenius, diversas, de modo geral, por Melville J. Herskovits, nos permitiria apreciar mais a cômodo que através de secas palavras de antropólogos ou de etnólogos, essas variações, às vezes profundas, da cultura continental africana. Semelhante mapa nos alertaria, pelo

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