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O Sentimento Da Infância As Idades Da Vida

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Por:   •  16/3/2015  •  7.895 Palavras (32 Páginas)  •  1.742 Visualizações

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Um homem do século XVI ou XVI,I ficaria espantado com as exigências de identidade civil que

nós nos submetemos com naturalidade. Assim que nossas crianças começam a falar, ensinamos lhes seu nome, o nome de seus pais e sua idade. Ficamos muito orgulhosos quando Paulinho, ao ser perguntado sobre sua idade, responde corretamente que tem dois anos e meio. De fato, sentimos que é importante que Paulinho não erre: que seria dele se esquecesse sua idade? Na savana africana a idade é ainda uma noção bastante obscura, algo não tão importante a ponto de não poder ser esquecido. Mas em nossas civilizações técnicas, como poderíamos esquecer a data exata de nosso nascimento, se a cada viagem temos de eserevê-la na ficha de policia do hotel, se a cada candidatura, a cada requerimento, a cada formulário a ser preenchido, e Deus sabe quantos há e quantos haverá no futuro, é sempre preciso recordá-la. Paulinho dará sua idade na escola e logo se tornará Paulo N. da turma X.

Quando arranjar seu primeiro emprego, junto com sua carteira de trabalho, receberá um número

de inscrição que passará a acompanhar seu nome. Ao mesmo tempo, e até mesmo mais do que Paulo N., ele será um numero, que começara por seu sexo, seu ano e mês de nascimento. Um dia chegará em que todos os cidadãos terão seu número de registro: esta é a meta dos serviços de identidade. Nossa personalidade civil já se exprime com maior precisão através de nossas coordenadas de nascimento do que através de nosso sobrenome. Este, com o tempo, poderia muito bem não desaparecer, mas ficar reservado à vida particular, enquanto um número de identidade, em que a data de nascimento seria um dos elementos, o substituiria para o uso civil.

Na Idade Média, o primeiro nome já fora considerado uma designação muito imprecisa, e foi

necessário completá-lo por um sobrenome de família, muitas vezes um nome de lugar. Agora, tornou-se conveniente acrescentar uma nova precisão, de caráter numérico, a idade. O nome pertence ao mundo da fantasia, enquanto o sobrenome pertence ao mundo da tradição. A idade, quantidade legalmente mensurável com uma precisão quase de horas, é produto de um outro mundo, o da exatidão e do número. Hoje, nossos hábitos de identidade civil estão ligados ao mesmo tempo a esses três mundos. Entretanto, existem documentos que nos comprometem seriamente, que nós mesmos redigimos, mas cuja redação não exige a indicação da data de nascimento.

De gêneros bastante diferentes, esses documentos podem ser titulos de comércio, letras de câmbio ou cheques, ou ainda testamentos. Todos eles, porém, foram inventados épocas muito remotas, antes que o rigor da identidade moderna se introduzisse nos costumes. A inscrição do nascimento nos registros paroquiais foi imposta aos párocos da França por Francisco I. Para que fosse respeitada, foi preciso que essa medida, já prescrita pela autoridade dos concílios, fosse aceita pelos costumes, que durante muito tempo se mantiveram avessos ao rigor de uma contabilidade abstrata. Acredita-se que foi somente no século XVIII que os párocos passaram a manter seus registros com a exatidão ou a consciência de exatidão que um Estado moderno exige de seus funcionários de registro civil. A importância pessoal da noção de idade deve ter-se afirmado à medida que os reformadores religiosos e civis a impuseram nos documentos, começando pelas camadas mais instruidas da sociedade, ou seja, no século XVI, aquelas camadas que passavam pelos colégios. Nas memórias dos séculos XVI e XVII que consultei para reconstituir alguns exemplos de escolaridade ', não é raro encontrar no início da narrativa a idade ou a data e o lugar de nascimento do narrador. Em certos casos, a idade chega a tornar-se objeto de uma atenção especial. É inscrita nos retratos como um sinal suplementar de individualização, de exatidão e de autenticidade. Em numerosos retratos do século XVI, encontramos inscrições do gênero: Aetatis ,suae 29 - o vigésimo nono ano de sua idade, com a data da pintura ANDNI 1551 (retrato de Jean Fernaguut, por Pourbus, Bruges) 2. Nos retratos de personagens ilustres, nos retratos da corte, essa referência em geral está ausente; ela subsiste seja sobre a tela, seja sobre moldura antiga dos retratos de família, ligada a um simbolismo failiar. Um dos exemplos mais antigos talvez seja o admirável retrato de Margaretha Van Eyck: no alto, co(n)iux m(eus)s John(hann)es me c(om) plevit an(n)o 1439P, 17 Junii (quanta precisão: meu marido me pintou em 17 de junho de 1439); e embaixo: Aetas mea triginta trium an~n~orum, 33 anos. Muitas vezes esses retratos do século XVI formam pares: um representa a mulher, e o outro o marido. Os dois trazem a mesma data, repetida portanto duas vezes, ao lado da idade decada um dos cônjuges: as duas telas de Pourbus representando Jean Fernaguut e sua mulher, Adrienne de Buc 3, trazem a mesma indicação: Anno domini 1551; no retrato do homem lê-se Aetatis suae 29, e, no da mulher, 19. Há casos também em que os retratos do marido e da mulher se acham reunidosna mesma tela, como o retrato dos Van Gindertaelen atribuído a Pourbus, em que o casal é representado junto com seus dois filhinhos. O marido traz uma das mãos no quadril e apóia a outra no ombro da mulher. As duas crianças brincam a seus pés. A data e 1559. Do lado do marido, aparecem suas armas com a inscrição aetus an. Z7, e, do lado da mulher, as armas de sua família e a inscri‡ão Aetatis, mec. 20 . Esses dados de identidade civil assumem às vezes o papel de uma verdadeira fórmula epigráfica, como no quadro de Martin de Voos, datado de 1572, que representa Antoon Anselme, um magistrado de Antuérpia, sua mulher e seus dois filhos 5. Os dois cônjuges estão sentados dos lados opostos de uma mesa, um segurando o menino, e o outro, a menina. Entre suas cabeças, no alto e no meio da tela, aparece uma bela faixa de pergaminho, cuidadosamente ornamentada,

com a seguinte inscrição: concordi ae antonii anselmi et johannae Hooftmans feliciq: propagini, Martino de Vos pictore, DD natus est ille ann MDXXX Vl die IX februxor ann MDL V D X Vl decembr liberi a A egidius ann MDLXX V XXI Augusti Johanna ann MDLXVI XXVI septembr. Essa inscrição sugere o motivo que inspirava essa epigrafia: ela parece estar ligada ao sentimento da família e a seu desenvolvimento na época.Esses retratos de família datados eram documentos de história familiar, como o seriam três ou quatro séculos mais tarde os álbuns de fotografias. Frutos desse mesmo espírito eram os diários de família, onde eram anotados, além das contas, os acontecimentos domésticos, os nascimentos e as mortes. Nesses diários se uniam a preocupação com a precisão cronológica e o sentimento familiar. Tratava-se menos das coordenadas do indivíduo do que das dos membros da família: as pessoas sentiam necessidade de dar à vida familiar uma história, datando-a. Essa curiosa preocupação em datar não aparecia apenas nos retratos, mas também nos objetos e na mobília. No século XVII, generalizou-se o hábito de gravar ou pintar uma data nas camas, cofres, baús, armários, colheres ou copos de cerimônia. A data correspondia a um momento solene da história familiar, geralmente um casamento. Em certas regiões, na Alsácia, na Suíça, na Áustria e na Europa central, os moveis

do século XVII ao XIX, especialmente os móveis pintados, eram datados, trazendo também o nome de seus dois proprietários. Observei no museu de Thun, entre outras, a seguinte inscrição sobre um baú: "Hans Bischof- 1709 Elizabeth Misler". Às vezes, as pessoas se contentavam comsuas iniciais de cada lado da data, a data do casamento. Esse costume seria muito difundido na França, e so desapareceria no fim do século XIX: um pesquisador do Museu de Artes e Tradições Populares descobriu, por exemplo, a seguinte inscrição num móvel da região da Haute-Loire: 1873 LT JV. A inscrição das idades ou de uma data num retrato ou num objeto correspondia ao mesmo sentimento que tendia a dar à familia maior consistência histórica. Esse gosto pela incrição cronologica, embora tenha subsistido até meados do século XIX, pelo menos entre as camadas médias, desapareceu rapidamente na cidade e na corte, onde foi logo considerado ingênuo e provinciano. A partir de meados do século XVII, as inscrições tenderam a desaparecer dos quadros (podiam ser encontradas ainda, mas em pintores de província ou provincializantes). A bela mobília da época era assinada, ou, quando datada, era-o discretamente.

Apesar dessa importancia que a idade adquiriu na epigrafia familiar no século XVI, subsistiram nos costumes curiosos resquícios do tempo em que era raro e difícil uma pessoa lembrar-se de sua idade. Observei acima que nosso Paulinho sabe sua idade desde o momento em que começa a falar. Sancho Panca não sabia exatamente a idade de sua filha, a quem, entretanto, amava muito: "Ela pode ter 15 anos, ou dois anos a mais ou a menos. Mas é alta como uma lança e fresca como uma manhã de abril ..." Tratava-se de um homem do povo. No século XVI, e mesmo nas categorias escolarizadas em que e observaram mais cedo hábitos de precisão moderna, as crianças sem dúvida sabiam sua idade; mas um hábito muito curioso de boas maneiras obrigava-as a não confessá-la claramente e a responder com certas reservas. Quando o humanista e pedagogo Thomas Platter, natural do Valais, conta a história de sua vida, diz com bastante precisão quando e onde nasceu, mas se considera obrigado a envolver o fato numa prudente paráfrase: "E, para começar, não há nada que eu possa garantir menos do que a época exata de meu nascimento.

Quando tive a ideia de me informar sobre a data de meu nascimento, responderam me que eu tinha vindo ao mundo em 1499, no domingo da Qüinquagésima, no exato momento em que os sinos chamavam para a missa". Curiosa mistura de incerteza e rigor. Na verdade, não se deve tomar essa reserva ao pé da letra: trata-se de uma reserva de praxe, lembrança de um tempo emque não se sabia jamais uma data exata. O surpreendente é que essa reserva se tivesse tornado um hábito de boas-maneiras, pois era assim que convinha dizer a própria idade a um interlocutor. Nos diálogos de Cordier 9 dois meninos se interrogam na escola, durante o recreio: "Quantos anos você tem? - Treze anos, como ouvi minha mae dizer". Mesmo

quando os hábitos de cronologia pessoal eram aceitos pelos costumes, eles não chegavam a se

mpor como um conhecimento positivo, e não dissipavam de imediato a antiga obscuridade da idade, que subsistiu ainda algum tempo nos hábitos de civilidade.

As "idades da vida" ocupam um lugar importante nos tratados pseudocientíficos da Idade Média.

Seus autores empregam uma terminologia que nos parece puramente verbal: infancia e puerilidade,juventude e adolescência, velhice e senilidade cada uma dessas palavras designando um período diferente da vida. Desde então, adotamos algumas dessas palavras para designar noções abstratas como puerilidade ou senilidade, mas estes sentidos não estavam contidos nas primeiras acepcões. De fato, tratava-se originalmente de uma terminologia erudita, que com o tempo se tornou familiar. As "idades", "idades da vida", ou "idades do homem" correspondiam no espírito de nossos ancestrais a noções positivas, tão conhecidas, tão repetidas e tão usuais, que passaram do domínio da ciência ao da experiência comum. Hoje em dia não temos mais idéia da importancia da noção de idade nas antigas representações do mundo. A idade do homem era uma categoria científica da mesma ordem que o peso ou a velocidade o são para nossos contemporaneos. Pertencia a um sistema de descrição e de explicação fisica que remontava aos filósofos jônicos do século VI a.C., que fora revivido pelos compiladores medievais nos escritos do Império Bizantino, e que ainda inspirava os primeiros livros impressos de vulgarização científica no século XVI. Não tencionamos determinar aqui sua formulação exata e seu lugar na história das ciências. Importa-nos apenas perceber em que medida essa ciência se havia tornado familiar, seus conceitos haviam passado para os hábitos mentais, e o que ela representava na vida quotidiana. Compreenderemos melhor o problema examinando a edisão de 1556 "' Le Grand Propriétaire de toutes choses. Tratava-se de uma compilação latina do século XIII, que retomava todos os dados dos escritores do Impsrio Bizantino. Considerou-se oportuno traduzi-la para o francês e dar-lhe, através da impressão, uma maior difusão: essa ciência antigo-medieval era portanto, em meados do século XVI, objeto de vulgarização. Le Crand Propriétaire de toutes choses é uma enciclopédia

de todos os conhecimentos profanos e sacros, uma espécle de Grand-Larousse, mas que teria uma concepção não-analítica e traduziria a unidade essencial da natureza e de Deus.

Uma física, uma metafísica, uma história natural, uma fisiologia e uma anatomia humanas, um tratado de medicina e de higiene, uma astronomia e ao mesmo tempo uma teologia. Vinte livros tratam de

Deus, dos anjos, dos elementos, do homem e de seu corpo, das doenças, do céu, do tempo, da matéria, do ar, do fogo, dos passaros etc. O último livro é consagrado aos números e às medidas. Havia também nesses livros algumas receitas práticas. Uma idéia geral emanava da obra, ideia erudita que logo se tornou extremamente popular: a idéia da unidade fundamental da natureza, da solidariedade existente entre todos os fenômenos da natureza, que não se separam das manifestações sobrenaturais. A idéia de que não havia oposição entre o natural e o sobrenatural pertencia ao mesmo tempo às crenças populares herdadas do paganismo, e a uma ciência tanto física quanto teológica. Eu diria que essa concepção rigorosa da unidade da natureza deve ser considerada responsável pelo atraso do desenvolvimento científico, muito mais do que aautoridade da Tradição, dos Antigos ou da Escritura. Nós só agimos sobre um elemento da natureza quando admitimos que ele é suficientemente isolável. A partir de um certo grau de solidariedade entre os fenômenos, tal como postula o

Le Grand Propriétaire, não é mais possível intervir sem provocar reações em cadeia, sem destruir a ordem do mundo: nenhuma das categorias do cosmo dispõe de uma autonomia suficiente, e nada pode ser feito contra o determinismo universal. O conhecimento da natureza limita-se então ao estudo das relações que comandam os fenômenos através de uma mesma causalidade – um conhecimento queprevê, mas que não modifica. Não há meio de fugir a essa causalidade, exceto através da magia ou do milagre. Uma mesma lei rigorosarege ao mesmo tempo o movimento dos planetas, o ciclo vegetativo das estações, as relações entre os elementos, o corpo humano e seus humores, e o destino do homem: assim, a astrologia permite conhecer as incidências pessoais desse determinismo universal. Ainda em meados do século XVII, a prática da astrologia era bastante difundida para que Molière, esse espírito cético, a tomasse por alvo de suas caçoadas em Les Amanls Magnifiques.

A correspondência dos números aparecia então como uma das chaves dessa solidariedade profunda; o simbolismo dos números era familiar, encontrava-se ao mesmo tempo nas especulações religiosas, nas descrições de física, de história natural, e nas práticas mágicas. Por exemplo, havia uma correspondência entre o número dos elementos, o dos temperamentos do homem e o das estações: o número 4. Para nós é difícil imaginar essa concepção formidável de um mundo maciço, do qual se perceberiam apenas algumas correspondências. A ciência havia permitido formular as correspondências e definir as categorias que elas ligavam. Mas essas correspondências, com o passar dos séculos, tinham deslizado do domínio da ciência para o do mito popular. Essas concepções nascidas na Jônia do século VI com o tempo haviam sido adotadas pela mentalidade comum, e as pessoas representavam o mundo dessa forma. As categorias da ciência antigo-medieval se haviam tornado familiares: os elementos, os temperamentos, os planetas e seu sentido astrológico, e o simbolismo dos

números.

As idades da vida eram também uma das formas comuns de conceber a biologia humana, em relação com as correspondências secretas internaturais. Essa noção, destinada a se tornar tão popular, certamente não remontava às belas épocas da ciência antiga. Pertencia às especulações dramáticas do Império Bizantino, ao século Vl ".

Fulgêncio a percebia oculta na Eneida: detectava no naufrágio de Enéias o símbolo do nascimento do homem em meio às tempestades da existência. Interpretava os cantos Il e 111 como a imagem da infancia ávida de narrativas fabulosas, e assim por diante. Um afresco da Arábia do século Vlll já representava as idades da vida 12.

Os textos da Idade Média sobre esse tema são abundantes. Legrand Propriétaire de totes choses trata das idades em seu livro Vl. Aí, as idades correspondem aos planetas, em número de 7: "A primeira idade é a infancia que planta os dentes, e essa idade começa quando a criança nasce e dura até os sete anos, e nessa idade aquilo que nasce é chamado de enfant (criança),que quer dizer não falante,pois nessa idade a pessoa não pode falar bem nem formar perfeitamente suas palavras, pois ainda não tem seus dentes bem ordenados nem firmes, como dizem Isidoro e Constantino. Após a infância, vema segunda idade... chama-se pueritia e é assim chamada porque nessa idade a pessoa é ainda como a menina do olho, como diz Isidoro, e essa idade dura até os 14 anos."

"Depois segue-se a terceira idade, que é chamada de adolescência, que termina, segundo Constantino em seu viático, no vigésimo primeiro ano, mas, segundo Isidoro, dura até 28 anos... e pode estender-se até 30 ou 35 anos. Essa idade é chamada de adolescência porque a pessoa é bastante grande para procriar, disse Isidoro. Nessa idade os membros são moles e aptos a crescer e a receber força e vigor do calor natural. E por isso a pessoa cresce nessa idade toda a grandeza que lhe é devida pela natureza." [ O crescimento, no entanto, termina antes dos 30 ou 35 anos, e até mesmo antes dos 28. Certamente devia ser ainda menos tardio numa época em que o trabalho precoce mobilizava mais cedo as reservas do organismo."Depois segue-se a juventude, que está no meio das idades, embora a pessoa aí esteja na plenitude de suas forcas, e essa idade dura até 45 anos, segundo Isidoro; ou até 50, segundo os outros. Essa idade é chamada de juventude devido à força que está na pessoa, para ajudar a si mesma e aos outros, disse Aristóteles. Depois segue-se a senectude, segundo Isidoro, que está a meio caminho entre a juventude e a velhice, e Isidoro a chama de gravidade, porque a pessoa nessa idade é grave nos costumes e nas maneiras; e nessa idade a pessoa não é velha, mas passou a juventude, como diz Isidoro. Após essa idade segue-se a velhice, que dura, segundo alguns, até 70 anos e segundo outros, não tem fim até a morte. A velhice, segundo Isidoro, é assim chamada porque as pessoas velhas já não têm os sentidos tão bons como já tiveram, e caducam em sua velhice... A última parte da velhice é chamada senies em latim, mas em francês não possui outro nome além de vieillesse... O velho está sempre tossindo, escarrando e sujando [ ainda estamos longe do nobre ancião de Greuze e do Romantismo], até voltar a ser a cinza da qual foi tirado." Embora hoje em dia possamos achar esse jargão vazio e verbal, ele tinha um sentido para seus leitores, um sentido próximo do da astrologia: ele evocava o laço que unia o destino do homem aos planetas. O mesmo gênero de correspondência sideral havia inspirado uma outra periodiza‡ão, ligada aos 12 signos do zodíaco, relacionando assim as idades da vida com um dos temas mais populares e mais comoventes da Idade Media, sobretudo gótica: as aenas do calendário. Um poema do século XIV várias vezes reimpresso nos séculos XV e XVI desenvolve esse calendário das idades '3:

Les six premiers ans que vit l homme au monde Nous comparons à janvier droitement. Car en ce

moys vertu ne force habonde Ne plus que quant six ans ha ung enfant.

Ou, segundo a versão do século XV:

Les autres Vl ans la fom croistre...

Aussi fair février tous les ans

Qu'enf n se trait sur le printemps.. .

Et quand les ans a XVlll

11 se change en tel deduit

Qu il cuide wloir mille mors

Et aussi se change li mars

En beauté et reprend chalour...

Du mois qui vient après septembre

Qu'on appelle mois d'ottembre,

Qu'il a LX ans et non plus

Lors devient vieillard et chenu

Et a donc lui doit souvenir

Que le temps Ie mène mourir.

13 Grant Kalendrier et compost des bergiers, edição de 1500, apud J. Morawski, Lcs douze

figurez Archivum romanicum, 1926, pp. 351 a 363.

"Os seis primeiros anos que o homem vive no mundo,/ a janeiro com razão os com- paramos,/ pois nesse mês nem força nem virtude abundam,/ não mais do que quando

uma criança tem seis anos." (N. do T.)

"Os outros seis anos fazem-na crescer.../ Assim também faz fevereiro todos os anos,O qual,

enfim, conduz à primavera... / E quando a pessoa faz 18 anos, /Ela se modifica

de tal forma / Que pensa valer mil pedaços / Assim também o mês de março / Se

transforma em beleza e readquire calor... / No mês que vem depois de setembro / E

que chamamos de outubro, / a pessoa tem 60 anos e não mais. / Então ela se torna velha

e encarquilhada,/ E se lembra de que o tempo a leva a morrer." (N. do T.)

Ou ainda este poema do século XIII '':

Veez yci le mois de janvier

A deux visages le premier ".

Pour ce qu'U regarde a deux tems

C' est le passé et le venant.

Ainsy l'enfant, quand à vescu

Six ans ne peut guère valoir

C ar il n'a guère de scavoir.

Mais l'on doit mettre bonne cure

Pagina 28

Qu'il prenne bonne nourriture

Car qui n'a bon commencement

A tard a bon deff nement...

En octobre après venant

Doit hom semer le bon froment

Duquel doit vivre tout li mon

A insi doit faire le preudoms

Qui est arrivé à LX ans:

11 doit semer aux jeunes gens

Bonnes paroles par exemple

Et faire aumone, si me sembli

Da mesma natureza ainda, era a correspondência entre as idades da vida e os outros "quatro":

consensus quatuor elementorum, quatuor humorum (os temperamentos), quatuor anni temporum et quatuor vitae aetatum 16. Em torno de 1265, Philippe de Novare já falava nos 111 temz d'aage

d'ome ", ou seja, quatro períodos de 20 anos. E essas especulacões continuaram a se repetir nos

textos até o século XVI 1-.

É preciso ter em mente que toda essa terminologia que hoje nos parerece tão oca traduzia nocões

que na época eram científicas, e correspondia também a um sentimento popular e comum da

vida. Aqui também esbarramos em grandes dificuldades de interpretação, pois hoje em dia não

possuímos mais esse sentimento da vida: consideramos a vida como um fenômeno biologico,

como uma situação na sociedade, sim, mas não mais que isso. Entretanto, dizemos "é a vida" J.

Representado nos calendários sob a forma de Janus bifrons.

Vedes aqui o mês de janeiro, /O primeiro de todos, que tem duas faces, / Porque está

voltado para dois tempos: o passado e o ponrir./ Assim também a criança que viveu

apenas / Seis anos não vale quase nada, / Pois quase não possui saber./ Mas deve-se

cuidar / Para que ela se alimente bem, / Pois quem tem um bom começo, / No final

tera um bom fim.../ No mês de outubro, que vcm depois, / O homem deve semear o

bom trigo, / Do qual viverão todos os outros; / Assim deve razer o homem valoroso / Que chegou

aos 60 anos:/ deve semear para os jovens / boas palavras como exemplo, / E dar esmolas - ao

menos, assim me parece. (N. do T.)

Para exprimir ao mesmo tempo nossa resignação e nossa convicção de que existe, fora

do biológico e do sociológico, alguma coisa que não tem nome, mas que nos comove, que

procuramos nas noticias corriqueiras dos jornais, ou sobre a qual podemos dizer "isto tem vida". A vida se torna então um drama, que nos tira do tédio do quotidiano. Para o homem de outrora, ao contrário, a vida era a continuidade inevitável, cíclica, às vezes humoristica ou melancólica das idades, uma continuidade inscrita na ordem geral e abstrata das coisas, mais do que na experiência real, pois poucos homens tinham o privilégio de percorrer todas essas idades naquelas épocas de grande mortalidade.

A popularidade das "idades da vida" tornou este tema um dos mais freqüentes da iconografia profana. Encontramo-las, por exemplo, em alguns capitéis historiados do século XII no batistério de Parma '9. O escultor quis representar ao mesmo tempo a parábola do mestre da vinha e dos trabalhadores da décima primeira hora, e o simbolo das idades da vida. Na primeira cena, vemoso mestre da vinha com a mão pousada sobre a cabeca de uma criansa: embaixo, uma legenda precisa a alegoria da criança: prima aetas saeculi: primum humane: infaAncia. Mais adiante: horatertia: puericia seconda aetas - o mestre da vinha tem a mão pousada sobre o ombro de um rapaz que segura um animal e uma foice. O último trabalhador descansa ao lado de seu enxadão: senectus, sexta aetas. Mas foi sobretudo no século XIV que essa iconografia fixou seus tracos essenciais, que

permaneceram quase inalterados ate o século XVIII; reconhecemo-los tanto nos capitéis do palácio dos Doges 20 como num afresco dos Eremitani de Pádua 21. Primeiro, a idade dos

brinquedos: as crianças brincam com um cavalo de pau, uma boneca, um pequeno moinho ou pássaros amarrados. Depois, a idade da escola: os meninos aprendem a ler ou seguram um livro e um estojo; as meninas aprendem a fiar. Em seguida, as idades do amor ou dos esportes da corte e da cavalaria: festas, passeios de rapazes e moças, corte de amor, as bodas ou a caçada do mês de maio dos calendários. Em seguida, as idades da guerra e da cavalaria: um homem armado. Finalmente as idades sedentárias, dos homens da lei, da ciência ou do estudo: o velho sábio barbudo vestido segundo a moda antiga, diante de sua escrivaninha, perto da lareira. As idades da vida não correspondiam apenas a etapas biológicas, mas a funcões sociais; sabemos que havia homens da lei muito jovens, mas, consoante a imagem popular, o estudo era uma

ocupação dos velhos. Esses atributos da arte do século XIV seriam encontrados, quase idênticos, em gravuras de natureza mais popular, mais familiar, que subsistiram do século XVI até o início do XIX, com pouquíssimas mudancas. Essas gravuras eram chamadas Degraus das idades, pois retratavam pessoas que representavam as idades justapostas dó nas- cimento até a morte, muitas vezes de pé, sobre degraus que subiam à esquerda e desciam à direita. No centro dessa escadaria dupla, como que sob o arco de uma ponte, erguia-se o esqueleto da morte, armado com sua foice. Aí, o tema das idades se imbricava com o tema da morte, e sem dúvida não era por acaso que esses temas figuravam entre os mais populares: as estampas representando os degraus das idades e as dancas macabras repetiram até o início do século XIX uma iconografia fixada nos séculos XIV e XV. Mas, ao contrário das dancas macabras, em que os

trajes não mudaram e permaneceram os mesmos dos séculos XV e XVI, mesmo quando a gravura datava do século XIX, os degraus das idades vestiam suas personagens segundo a moda da época: nas últimas gravuras do seculo XIX, vemos surgir o traje de primeira comunhão. A persistência dos atributos por isso mesmo é ainda mais notável: !á estão a criança montada em seu cavalo de pau, o estudante com seu livro e seu estojo, o belo par (às vezes o rapaz segura um arbusto de maio, evocação das festas da adolescência e da primavera), e o homem de armas, agora um oficial cingido com a echarpe do comando, ou carregando um estandarte; na escada descendente, as roupas não estão mais na moda, ou pertencem a uma moda antiga; vemos os homens da lei com suas pastas de processos, os cientistas com seus livros ou seus astrolábios, e os devotos os mais curiosos - com seus rosários. A repetição dessas imagens, pregadas nas paredes ao lado dos calendários, entre os objetos familiares, alimentava a idéia de uma vida dividida em etapas bem delimitadas, correspondendo a modos de atividade, a tipos fisicos, a funções, e a modas no vestir. A periodiza‡ão da vida tinha a mesma fixidez que o ciclo da natureza ou a organiza‡ão da sociedade. Apesar da evocação reiterada do envelhecimento e da morte, as idades da vida permaneceram croquis pitorescos e bem comportados, silhuetas de caráter um tanto humorístico.

Da especulação antigo-medieval restara uma abundante terminologia das idades. No século XVI, quando se decidiu traduzir essa terminologia para o francês, ficou patente que esta língua, e portanto os costumes franceses, não dispunham de tantas palavras como o latim, ou ao menos como o latim clássico. O tradutor de 1556 do Le Grand Propriétaire de toutes choses reconhece sem rodeios essa dificuldade: "Há maior dificuldade em francês do que em latim, pois em latim existem sete idades nomeadas por sete nomes diversos tantas quanto os planetas], dos quais existem apenas três em francês: a saber, enfance, jeunesse e vieillesse.

Observamos que, como juventude significava forca da idade, "idade média", não havia lugar para

a adolescência. Até o século XVIII, a adolescência foi confundida com a infância. No latim dos

colégios, empregava-se indiferentemente a palavra puer e a palavra adolescens Existem, conservados na Bibliothèque Nationale 23, alunos catálogos do colégio dos jesuítas de Caen, uma lista dos nomes dos alunos, seguidos de apreciações. Um rapaz de 15 anos é descrito ai como bonus puer, enquanto seu jovem colega de 13 anos é chamado de optimus adolescens. Baillet 2 num livro consagrado às crianças-prodigio, reconheceu tambem que não existiam termos em francês para distinguir pueri e adolescentes. Conhecia-se apenas a palavra enfant (criança). No final da Idade Média, o sentido desta palavra era particularmente lato. Ela designava tanto o putto (no século XIV dizia-se la chambre aux enfants para indicar o quarto dos putti, o quarto ornado com afrescos representando criancinhas nuas), como o adolescente, o menino grande,

que às vezes era também um menino mal-educado. A palavra enfant, nos Miracles Notre-Dame 25, era empregada nos séculos XIV e XV como sinônimo de outras palavras tais como valets, valeton, garçon, f ls, beauf ls: "ele era valeton" corresponderia ao francês atual "ele era um beau

gars (um belo rapaz)", mas na época o termo se aplicava tanto a um rapaz - "um belo valeton" - como a uma criança - "ele era um valeton, e gostavam muito dele... o valez cresceu!"

Uma única palavra conservou até hoje na lingua francesa essa antiga ambiguidade: a

palavra gars (menino, rapaz ou homem), que passou diretamente do francês antigo para a lingu popular moderna, onde foi conservada. Era uma criança estranha esse mau menino, "tão desleal e tão perverso, que não queria aprender um oficio nem se comportar como convinha à infancia...que de bom grado se acompanhava de glutões e de gentes ociosas, que freqüentemente provocavam rixas nas tabernas e nos bordéis, e jamais encontravam uma mulher sozinha sem a violar." Eis outra criança de 15 anos: "Embora fosse um menino bom e gracioso", recusava-se a montar a cavalo e a se dar com meninas. Seu pai pensava que era por timidez: "É o costume das crianças." Na realidade, o menino estava prometido à Virgem. Seu pai quis obrigá-lo a se casar:"Então a criança ficou muito zangada e bateu-lhe com força." Tentou fugir mas feriu-se mortalmente ao cair da escada. Nesse momento a Virgem veio buscá-lo e disse-lhe: "Belo irmão, vede aqui vossa amiga" - "Então a criança exalou um suspiro." Segundo um calendário das idades do século XVI 26 aos 24 anos "é a criança forte e virtuosa", e "Assim acontece com as crianças quando elas têm 18 anos". O mesmo emprego pode ser constatado no século XVII: uma pesquisa episcopal de 1667 relata que, numa paróquia 27 "há un jeune enfans (uma jovem criança) de cerca de 14 anos de idade, que ensina a ler e a escrever às crianças dos dois sexos há cerca de um ano, desde que habita no dito lugar, por acordo com os habitantes do dito lugar".

Durante o século XVII, houve uma evolução: o antigo costume se conservou nas classes sociais

mais dependentes, enquanto um novo hábito surgiu entre a burguesia, onde a palavra infância serestringiu a seu sentido moderno. A longa duração da infância, tal como aparecia na língua comum, provinha da indiferença que se sentia então pelos fenômenos propriamente biológicos: ninguém teria a idéia de limitar a infancia pela puberdade. A idéia de infância estava ligada à ideia de dependência: as palavras fils, valets e garçons eram também palavras do vocabulário das relacões feudais ou senhoriais de dependência. Só se saía da infancia ao se sair da dependência, ou, ao menos, dos graus mais baixos da dependência. Essa é a razão pela qual as palavras

ligadas à infância iriam subsistir para designar familiarmente, na língua falada, os homens de baixa condição, cuja submissão aos outros continuava a ser total: por exemplo, os lacaios, os auxiliares e os soldados. Um "petit graçon" (menino pequeno) não era necessariamente uma criança, e sim um jovem servidor (da mesma forma hoje, um patrão ou um contramestre dirão de um operário de 20 a 25 anos: "E um bom menino", ou "esse menino não vale nada.

Assim, em 1549, o diretor de um colégio, de um estabelecimento de educação, chamado Baduel,

escrevia ao pai de um de seus jovens alunos, a propósito de seu enxoval e de seu séquito: "No

que concerne ao seu serviço pessoal, basta um petit garçon. No início do século XVIII, o dicionário de Furetière precisou o uso do termo: "Enfant é também um termo de amizade utilizado para saudar ou agradar alguém ou levá-lo a fazer alguma coisa. Quando se diz a uma pessoa de idade: "adeus, bonne mère (boa mãe) até logo, grand-mère (avozinha), na língua da Paris moderna), ela responde "adeus, mon enfant" (ou adeus, mon gars, ou adeus, petit). Ou eritão ela dirá a um lacaio: "mon enJant, vá me buscar aquilo". Um mestre dirá aos trabalhadores, mandando-os trabalhar: "vamos, enfants, trabalhem". Um capitão dirá a seus soldados: "coragem, enfants, agüentem firme". Os soldados da primeira fila, que estavam mais expostos ao perigo, eram

chamados de enfants perdus (criançasperdidas)." Na mesma época, mas nas famílias nobres em que a dependência não era senão uma conseqüência da invalidez física, o vocabulário da infancia tendia quase sempre a designar a primeira idade. No século XVII, seu emprego tornou-se mais freqüente: a expressão "petit enfant" (criança pequena ou criancinha) começou a adquirir o sentido que lhe atribuímos. O uso antigo preferia "jeune enfant" (jovem criança), e esta expressão não foi completamente abandonada. Pagina 33 La Fontaine a empregava, e, em 1714, numa tradução de Erasmo, havia uma referência a uma "jeune f lle" (jovem menina; hoje em diajeune f lle designa uma moça) que ainda não tinha cinco anos: "Tenho uma jeune f lle que mal começou a falar. A palavra petit (pequeno) havia adquirido também um sentido especial no fim do século XVI: designava todos os alunos das "pequenas escolas", mesmoaqueles que não eram mais crianças. Na Inglaterra, a palavra petty tinha o mesmo sentido que em francês, e um texto de 1627 mencionava a escola dos "Iyttle petties", ou seja, dos menores alunos . Foi sobretudo com Port-Royal e com toda a literatura moral e

pedagógica que aí se inspirou (ou que, de modo mais geral, exprimiu uma necessidade de ordem

moral difundida por toda a parte, e da qual Port-Royal era também um testemunho), que os termos utilizados para designar a infância setornaram numerosos e sobretudo modernos: os alunos de Jacqueline Pascal 31 eram divididos em petits moyens e grands (pequenos, médios e grandes)-. "Quanto às crianças pequenas,

escreve Jacqueline Pascal, é preciso ainda mais que às outras ensiná-las e alimentá-las, se

possível como pequenos pombos." O regulamento das pequenas escolas de Port-Royal 32 prescrevia: "Eles não vão à Missa todos os dias, somente os pequenos." Falava-se, de uma forma nova, em "pequenas almas", em

"pequenos anjos 33". Estas expressões anunciavam o sentimento do século XVIII e do romantismo. Em seus contos, Mlle Lhéritier 34 pretendia se dirigir aos "jovens espíritos", às "jovens pessoas": "Essas imagens seguramente levam os jovens a reflexões que aperfeiçoam sua razão". Percebe-se então que esse século XVII, que parecia ter desdenhado a infância, ao contrário, introduziu o uso de expressões e de locuções que permanecem até hoje na língua francesa. Junto à palavra enfant de seu dicionário, Furetière citava provérbios que ainda nos são familiares: "É um enJant gdté (criança mimada) aquela a quem se deixou viver de um modo libertino, sem corrigi-la. Il n'y a plus d'enfant equivale a dizer que alguém começa a ter juízo e malícia cedo." "Inocente como a criança que acabou de nascer." Vocês não achavam que essas expressões não remontavam

além do século XIX? Contudo, em seus esforços para falar das crianças pequenas, a língua do século XVII foi

prejudicada pela ausência de palavras que as distinguissem das maiores. O mesmo, alias,

acontecia com o inglês, em que a palavra óaby se aplicava também às crianças grandes. Agramática latina em inglês de Lily 35 (que foi utilizada do início do século XVI até 1866) dirigia-se a all Iyttell babes, all Iyttell chyldren. Por outro lado, havia em francês expressões que pareciam designar as crianças bem pequeninas.

Uma delas era a palavra poupart. Um dos Miracles Notre-Dame tinha como personagem um "petit

fls" que queria dar de comer a uma imagem do menino Jesus. "O bom Jesus, vendo a insistência e a boa vontade da criancinha, falou com ela e disse-lhe: 'Poupart, não chores mais, pois comerás comigo dentro de três dias'." Mas esse poupart na realidade não era um "bebê", como diríamos hoje: também era chamado de clergeon 36 (pequeno clerigo), usava sobrepeliz e ajudava a missa: "Aqui havia crianças de pouca idade que sabiam um pouco as letras, e que prefeririam mamar no seio de sua mãe a ter de ajudar à missa". Na lingua dos séculos XVII e XVIII, a palavra poupart não designava mais uma criança, e sim, sob a forma poupon, o que hoje os franceses ainda chamam pelo mesmo nome, porém no feminino: uma poupée, ou seja, uma

boneca.

O francês seria portanto levado a tomar emprestadas de outras línguas - línguas estrangeiras ou

gírias usadas na escola ou nas diferentes profissões - palavras que designassem essa criança pequena pela qual come,çava a surgir um novo interesse: foi o caso do italiano bambino, que daria origem ao francês bambin. Mme de Sévigné empregava também no mesmo sentido o provençal pitchoun, que ela certamente aprendera em uma de suas estadas na casa dos Grignans 37.Seu primo De Coulanges, que não gostava de crianças, mas que falava muito delas , desconfiava dos "marmousets de três anos", uma palavra antiga que evoluiria para marmots na língua popular, "moleques de queixo engordurado que enfiam o dedo em todos os pratos".

Empregavam-se também termos de gíria dos colégios latinos ou das academias esportivas e militares: "um pequenofrater", um "cadet",e, quando eram numerosos, "populo " ou "petit peuple". Enfim, o uso dos diminutivos tornou-se frequente: encontrarnos fan fan nas cartas de Mme de Sévigné e de Fénelon.

Com o tempo, essas palavras se deslocariam e passariam a designar a criança pequenaa, mas já esperta. Restaria sempre uma lacuna para designar a criança durante seus primeiros meses; essa insuficiência não seria sanada antes do século XIX, quando o francês tomou emprestada do inglês a palavra baby, que, nos séculos XVI e XVII, designava as crianças em idade escolar. Foi esta a última etapa dessa história: daí em diante, com o francês bébé, a criança bem pequenina

recebeu um nome.

Embora um vocabulário da primeira infância tivesse surgido e se ampliado, subsistia a ambigüidade entre a infancia e a adolescência de um lado, e aquela categoria a que se dava o nome de juventude, do outro. Não se possuía a idéia do que hoje chamamos de adolescência, e essa idéia demoraria a se formar. Já a pressentimos no seculo XVIII, com duas personagens uma literária, Querubim, e a outra social, o conscrito. Em Querubim prevalecia a ambigaidade da puberdade, e a ênfase recaía sobre o lado efeminado de um menino que deixava a infância. Isso não era propriamente uma novidade: como se entrava muito cedo na vida social, os tracos cheios e redondos da primeira adolescência, em torno da puberdade, davam aos meninos uma aparência feminina. É isso o que explica a facilidade dos disfarces dos homens em mulheres ou vice-versa, comuns nos romances barrocos do início do século XVII: dois rapazes ou duas moças se tornam amigos, mas um deles é uma moça travestida etc. Por mais crédulos que sejam os leitores de romances de aventuras de todas as épocas, o mínimo de verossimilhança exige que tenha existido alguma semelhança entre o menino ainda imberbe e a menina. Contudo essa semelhanca não era apresentada então como uma característica da adolescência, uma caracteristica da idade. Esses homens sem barba de traços suaves não eram adolescentes, pois já agiam como homens feitos, comandando e combatendo. Em Querubim, ao contrário, o aspecto feminino estava ligado à transição da criança para o adulto: traduzia um estado durante um certo tempo, o tempo o amor nascente.

Querubim não teria sucessores. Ao contrário, seria a força viril que, no caso dos meninos, exprimiria a adolescência, e o adolescente seria prefigurado no século XVIII pelo conscrito. Examinemos o texto de um cartaz de recrutamento que data do final do século XVIII .O cartaz se dirigia à "brilhante juventude": "Os jovens que quiserem partilhar da reputa‡ão que este belo corpo adquiriu poderão dirigir-se a M. D'Ambrun... Eles (os recrutadores) recompensarão aqueles que lhes trouxerem belos homens."

O primeiro adolescente moderno típico foi o Siegfried de Wagner: a música de Siegfried pela primeira vez exprimiu a mistura de pureza (provisória), de força fisica, de naturismo, de espontaneidade e de alegria de viver que faria do adolescente o herói do nosso século XX, o século da adolescência. Esse fenômeno, surgido na Alemanha wagneriana, penetraria mais tarde na França, em torno dos anos 1900. A "juventude", que então era a adolescência, iria tornar-se

um tema literário, e uma preocupação dos moralistas e dos políticos. Começou-se a desejar saber

seriamente o que pensava a juventude, e surgiram pesquisas sobre ela, como as de Massis ou de Henriot. A juventude apareceu como depositária de valores novos, capazes de reavivar uma

sociedade velha e esclerosada. Havia-se experimentado um sentimento semelhante no periodo romântico, mas sem uma referência tão precisa a uma classe de idade. Sobretudo, esse

sentimento romantico se limitava à literatura e àqueles que a liam. Ao contrário, a consciência da

juventude tornou-se um fenômeno geral e banal após a guerra de 1914, em que os combatentes

da frente de batalha se opuseram em massa às velhas gerações da retaguarda. A consciência da juventude começou como um sentimento comum dos excombatentes, e esse sentimento podia ser encontrado em todos os países beligerantes, ate mesmo na América de Dos Passos. Daí em diante, a adolescência se expandiria, empurrando a infância para trás e a maturidade para a frente. Dai em diante, o casamento, que nãoera mais um "estabelecimento", não mais a interromperia: o adolescente casado é um dos tipos mais especificos de nossa época: ele lhepropõe seus valores, seus apetites e seus costumes. Assim, passamos de uma época sem adolescência a uma época em que a adolescência é a idade favorita. Deseja-se chegar a ela cedo e nela permanecer por muito tempo. Essa evolução foi acompanhada por uma evolução paralela, porém inversa, da velhice. Sabemos que a velhice começava cedo na so-ciedade antiga. Os exemplos são conhecidos, a começar pelos velhos de Molière, que aos nossos olhos parecem jovens ainda. Nem sempre, aliás, a iconografia da velhice a representa sob os traços de um individuo decrépito: a velhice começa

com a queda dos cabelos e o uso da barba, e um belo ancião aparece às vezes como um homem calvo. É o caso do ancião no concerto de Ticiano, que é também uma representação das idades da vida. Em geral, porém, antes do século XVIII, o ancião era considerado ridículo. Uma personagem de Rotrou pretendia impor à sua filha um marido qüinquagenário: "Eletem apenas 50 anos; e, além disso, não tem nem um dente!"

11 n-est dans la nature homme qui ne le juge

Du siècle de Saturne ou du temps du Déluge;

Des trois pieds donl il marche. il en a deux goutteux.Qui jusque à chaque pas. trébuchent de vieillesse

Et qu'il faut retenir ou relever sans cesse ".

Dez anos mais tarde, esse ancião se parecia com este sexagenário de Quinault:

Courbé sur son balon. le bon petit vieillard Tousse, e rafhe, se mouahe et Sait le goguenard.

Des contes du vieux temps, etourdit Isahelle".

A França antiga não respeitava a velhice: era a idade do recoIhimento, dos livros, da devoção e

da caduquice. A imagem do homem integral nos séculos XVI-XVII era a de um homem jovem: o

oficial com a echarpe no topo dos degraus das idades. Ele não era um rapaz, embora hoje tivesse

idade para ser considerado como tal. Correspondia a essa segunda categoria das idades, entre a

infancia e a velhice, que no século XVIII era chamada de juventude. Furetière, que ainda levava muito a sério os

problemas arcaicos da periodização da vida,elaborou uma noção intermediária de maturidade,

mas reconheceu que essa noção não era usual, e confessou: "Os jurisconsultos consideram a

juventude e a maturidade uma única idade." O século XVII se reconhecia nessa juventude militar,

assim como o século XX se reconhece em seus adolescentes.

Hoje, ao contrário, a velhice desapareceu, ao menos do francês falado, onde a expressão un vieux, "um velho", subsiste com um sentido de gíria, pejorativo ou protetor. A evolução ocorreu em duas etapas; primeiro, houve o ancião respeitável, o ancestral de cabelos de prata, o Nestor de sábios e prudentes conselhos, o patriarca de experiência preciosa: o ancião de Greuze, Restif de la Bretonne e todo o século XIX. Ele não era ainda muito ágil, mas também não era mais tão decrépito como o ancião dos séculos XVI e XVII. Ainda hoje resta alguma coisa desse respeito pelo ancião em nossos costumes. Mas esse respeito, na realidade, não tem mais objeto, pois, em nossa época, e esta foi a segunda etapa, o ancião desapareceu. Foi substituido pelo "homem de uma certa idade", e por "senhores ou senhoras muito bem conservados". Noção ainda burguesa, mas que tende a se tornar popular. A idéia tecnologica de conservação substitui a ideia ao mesmo tempo biológica e moral da velhice.

Tem-se a impressão, portanto, de que, a cada época corresponderiam uma idade privilegiada e

uma periodização particular da vida humana: a "juventude" é a idade privilegiada do século XVII,

a "infância", do século XIX, e a adolescência", do século XX. Essas variações de um século para o outro dependem das relacões demográficas. São testemunhos da interpretacão ingênua que a opinião faz em cada época da estrutura demográfica, mesmo quando nem sempre pode conhecê-la objetivamente. Assim, a ausência da adolescência ou o desprezo pela velhice, de um lado, ou, de outro, o desaparecimento da velhice, ao menos como degradasão, e a introdução da adolescência, exprimem a reasão da sociedade diante da duração da vida. O prolongamento da média de vida retirou do não ser anterior espaços da vida que os sábios do Império Bizantino e da Idade Média haviam nomeado, embora não existissem nos costumes. E a linguagem moderna tomou emprestados esses velhos vocabulos, originalmente apenas teóricos, para designar realidades novas: último avatar do tema que durante tanto tempo foi familiar e hoje está esquecido, o das "idades da vida". Nas páginas seguintes, examinaremos os signos da infancia.

Não deveremos esquecer o quanto essa representasão da infancia é relativa, diante da predileção reconhecida pela "juventude" no perío-do que estudamos. Esse período não foi nem de crianças, nem de adolescentes, nem develhos: foi um tempo de homens jovens..

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