TrabalhosGratuitos.com - Trabalhos, Monografias, Artigos, Exames, Resumos de livros, Dissertações
Pesquisar

A CRÍTICA DA RAZÃO INDOLENTE: CONTRA O DESPERDÍCIO DA EXPERIÊNCIA

Por:   •  17/3/2017  •  Resenha  •  2.098 Palavras (9 Páginas)  •  456 Visualizações

Página 1 de 9

A CRÍTICA DA RAZÃO INDOLENTE: CONTRA O DESPERDÍCIO DA EXPERIÊNCIA

Boaventura de Souza Santos

PARA DESPENSAR O DIREITO:

Da transição epistemológica à transição societal

        É legítimo o pensamento de que a crise do paradigma da ciência moderna acarreta consigo a crise do paradigma do direito moderno. O direito desenvolveu um autoconhecimento especializado e profissionalizado, que se define como científico (ciência jurídica), dando assim origem à ideologia disciplinar chamada por Boaventura de Souza Santos de cientificismo jurídico. Esse cientificismo e o estatismo jurídico evoluíram simultaneamente. O positivismo jurídico é a versão mais apurada desta co-evolução ideológica. Daí que a sequência saber/poder não pode ser aplicada do mesmo modo em relação à ciência e ao direito. Enquanto na ciência o saber iria gerar poder, no direito, o poder (estatal) iria gerar saber (profissional).

        Do positivismo jurídico à autopoiese (termo criado para designar a capacidade dos seres vivos de produzirem a si próprios), o pressuposto ideológico foi sempre o de que o direito devia desconhecer, por ser irrelevante, o conhecimento social científico da sociedade e, partindo dessa ignorância, deveria construir uma afirmação epistemológica própria (como “direito puro”, “direito auto-referencial” e “subjetividade epistêmica do direito”). Esta é a segunda razão pela qual as condições teóricas da transição paradigmática da ciência moderna não vigoram da mesma forma no domínio do direito.

        As condições teóricas do conhecimento jurídico estão subordinadas às condições sociais do poder jurídico, das quais, até certo ponto, têm de ser deduzidas. A autonomia, universalidade e generalidade do direito assentam numa ligação a um determinado Estado concreto, cujos interesses servem independentemente de estes serem autônomos ou de classe, gerais ou particulares.

        Há a delimitação de três esferas de atividade: as que se relacionam com o mercado (economia), as que se relacionam cm o Estado (ciência política) e as que se reportam a todas as atividades não imediatamente relacionadas com o Estado ou com o mercado, isto é, é a vida pessoal, a vida cotidiana, a família a igreja, a comunidade, o crime, etc. Por esta razão, estas ciências, concebidas para consolidarem a hegemonia do paradigma da modernidade, numa altura em que ele era incontestável, não fornecem, em princípio, nem como projeto epistemológico nem como projeto social que efetivamente transcendem as fronteiras da modernidade. Sendo assim, uma das tarefas primordiais da transição paradigmática consiste em des-pensar as ciências sociais.

        A crise final da modernidade é mais visível como crise espistemológica (uma crise da ciência moderna) do que como crise societal (uma crise do mundo capitalista). A ligação historicamente contingente entre modernidade e capitalismo subjaz às quatro grandes interpretações da transformação social do nosso tempo. De acordo com a primeira interpretação, o capitalismo e o liberalismo triunfaram e esse triunfo constitui a maior realização possível da modernidade. De acordo com a segunda, a modernidade é, ainda hoje, um projeto inacabado, com capacidade intelectual e política para conceber a pôr em prática um futuro não capitalista. De acordo com a terceira, a modernidade decaiu aos pés do capitalismo, cuja expansão e reprodução sócio-cultural irá, daqui pra frente, assumir uma forma pós-moderna. E, finalmente, de acordo com a quarta interpretação, a modernidade entrou em colapso como projeto epistemológico e cultural, o que vem abrir um vasto leque de possibilidades futuras para a sociedade, sendo uma delas um futuro não capitalista e eco-socialista (o pós-moderno de oposição).

        Em tempos normais, essas contradições manifestam-se como excessos ou défices, e as tensões, as crises e os conflitos que daí resultam são resolvidos através dos recursos intelectuais, institucionais e organizacionais do paradigma. Quando isso deixa de acontecer, o efeito cumulativo dos excessos e dos défices não resolvidos gera uma deslegitimação global dos recursos de ajustamento.

        É então que as contradições internas se tornam socialmente visíveis e acabam por converter-se em tópicos de luta social e política. Quando isso acontece, as contradições internas perdem a sua rigidez estrutural, e o tipo de determinismo criado pelo paradigma atenua-se drasticamente. Entende-se, assim, porque é que as transições paradigmáticas, depois de começadas, são indeterminadas, caminham para resultados desconhecidos e se abrem a futuros alternativos. É também por isso que expandem enormemente o “livre-arbítrio”, isto é, a capacidade de inovação e transformação social.

        As tendências seculares, que são a temporalidade da transição, têm de ser reduzidas, enquanto representação social, à duração do ciclo da vida humana, a fim de que as lutas paradigmpaticas sejam politicamente eficazes. Dado este condicionalismo, poderá ser necessário conceitualizar essas lutas como lutas paradigmáticas (contradições internas), mas conduzi-las como se fossem subparadigmáticas (excessos e défices). A luta paradigmática é, portanto, uma utopia cuja eficácia pode residir nos recursos intelectuais e políticos que fornece às lutas subparadigmáticas. Assim, a discussão paradigmática do direito moderno, em conjunto com a da ciência moderna, irá esclarecer os termos e as direções possíveis da transição para um novo paradigma social.

O Estado e o sistema mundial

        A absorção do direito moderno pelo Estado moderno foi um processo histórico contingente que, como qualquer outro processo histórico, teve um início e há-de ter um fim. Enquanto os países centrais tenderam a ser externa e internamente fortes, externamente rígidos e internamente flexíveis, os países periféricos tenderam a ser fracos externa e internamente, externamente flexíveis e internamente rígidos.

        O Estado nunca deteve o monopólio do Direito. Por um lado, os mecanismos do sistema mundial, atuando num plano supra-estatal, desenvolveram as suas próprias leis sistêmicas, que se sobrepuseram às leis nacionais dos Estados particulares do sistema mundial. Por outro lado, paralelamente a este direito supra-estatal, subsistiram ou surgiram diferentes formas de direito infra-estatal: ordens jurídicas locais, com ou sem base territorial, regendo determinadas categorias de relações sociais e interagindo, de múltiplas formas, com o direito estatal.

...

Baixar como (para membros premium)  txt (13.6 Kb)   pdf (86.6 Kb)   docx (15.5 Kb)  
Continuar por mais 8 páginas »
Disponível apenas no TrabalhosGratuitos.com