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ÉTICA A NICÔMACO

Por:   •  29/9/2016  •  Artigo  •  14.213 Palavras (57 Páginas)  •  760 Visualizações

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ÉTICA A NICOMACO Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da versão inglesa de W. D. Ross LIVRO I 1 Admite-se geralmente que toda arte e toda investigação, assim como toda ação e toda escolha, têm em mira um bem qualquer; e por isso foi dito, com muito acerto, que o bem é aquilo a que todas as coisas tendem. Mas observa-se entre os fins uma certa diferença: alguns são atividades, outros são produtos distintos das atividades que os produzem. Onde existem fins distintos das ações, são eles por natureza mais excelentes do que estas. Ora, como são muitas as ações, artes e ciências, muitos são também os seus fins: o fim da arte médica é a saúde, o da construção naval é um navio, o da estratégia é a vitória e o da economia é a riqueza. Mas quando tais artes se subordinam a uma única faculdade — assim como a selaria e as outras artes que se ocupam com os aprestos dos cavalos se incluem na arte da equitação, e esta, juntamente com todas as ações militares, na estratégia, há outras artes que também se incluem em terceiras —, em todas elas os fins das artes fundamentais devem ser preferidos a todos os fins subordinados, porque estes últimos são procurados a bem dos primeiros. Não faz diferença que os fins das ações sejam as próprias atividades ou algo distinto destas, como ocorre com as ciências que acabamos de mencionar. 2 Se, pois, para as coisas que fazemos existe um fim que desejamos por ele mesmo e tudo o mais é desejado no interesse desse fim; e se é verdade que nem toda coisa desejamos com vistas em outra (porque, então, o processo se repetiria ao infinito, e inútil e vão seria o nosso desejar), evidentemente tal fim será o bem, ou antes, o sumo bem. Mas não terá o seu conhecimento, porventura, grande influência sobre a essa vida? Semelhantes a arqueiros que têm um alvo certo para a sua pontaria, não alcançaremos mais facilmente aquilo que nos cumpre alcançar? Se assim é, esforcemo-nos por determinar, ainda que em linhas gerais apenas, o que seja ele e de qual das ciências ou faculdades constitui o objeto. Ninguém duvidará de que o seu estudo pertença à arte mais prestigiosa e que mais verdadeiramente se pode chamar a arte mestra. Ora, a política mostra ser dessa natureza, pois é ela que determina quais as ciências que devem ser estudadas num Estado, quais são as que cada cidadão deve aprender, e até que ponto; e vemos que até as faculdades tidas em maior apreço, como a estratégia, a economia e a retórica, estão sujeitas a ela. Ora, como a política utiliza as demais ciências e, por outro lado, legisla sobre o que devemos e o que não devemos fazer, a finalidade dessa ciência deve abranger as das outras, de modo que essa finalidade será o bem humano. Com efeito, ainda que tal fim seja o mesmo tanto para o indivíduo como para o Estado, o deste último parece ser algo maior e mais completo, quer a atingir, quer a preservar. Embora valha bem a pena atingir esse fim para um indivíduo só, é mais belo e mais divino alcançá-lo para uma nação ou para as cidades-Estados. Tais são, por conseguinte, os fins visados pela nossa investigação, pois que isso pertence à ciência política numa das acepções do termo. 3 Nossa discussão será adequada se tiver tanta clareza quanto comporta o assunto, pois não se deve exigir a precisão em todos os raciocínios por igual, assim como não se deve buscá-la nos produtos de todas as artes mecânicas. Ora, as ações belas e justas, que a ciência política investiga, admitem grande variedade e flutuações de opinião, de forma que se pode considerá-las como existindo por convenção apenas, e não por natureza. E em torno dos bens há uma flutuação semelhante, pelo fato de serem prejudiciais a muitos: houve, por exemplo, quem perecesse devido à sua riqueza, e outros por causa da sua coragem. Ao tratar, pois, de tais assuntos, e partindo de tais premissas, devemos contentar-nos em indicar a verdade aproximadamente e em linhas gerais; e ao falar de coisas que são verdadeiras apenas em sua maior parte e com base em premissas da mesma espécie, só poderemos tirar conclusões da mesma natureza. E é dentro do mesmo espírito que cada proposição deverá ser recebida, pois é próprio do homem culto buscar a precisão, em cada gênero de coisas, apenas na medida em que a admite a natureza do assunto. Evidentemente, não seria menos insensato aceitar um raciocínio provável da parte de um matemático do que exigir provas científicas de um retórico. Ora, cada qual julga bem as coisas que conhece, e dessas coisas é ele bom juiz. Assim, o homem que foi instruído a respeito de um assunto é bom juiz nesse assunto, e o homem que recebeu instrução sobre todas as coisas é bom juiz em geral. Por isso, um jovem não é bom ouvinte de preleções sobre a ciência política. Com efeito, ele não tem experiência dos fatos da vida, e é em torno destes que giram as nossas discussões; além disso, como tende a seguir as suas paixões, tal estudo lhe será vão e improfícuo, pois o fim que se tem em vista não é o conhecimento, mas a ação. E não faz diferença que seja jovem em anos ou no caráter; o defeito não depende da idade, mas do modo de viver e de seguir um após outro cada objetivo que lhe depara a paixão. A tais pessoas, como aos incontinentes, a ciência não traz proveito algum; mas aos que desejam e agem de acordo com um princípio racional o conhecimento desses assuntos fará grande vantagem. Sirvam, pois, de prefácio estas observações sobre o estudante, a espécie de tratamento a ser esperado e o propósito da investigação. 4 Retomemos a nossa investigação e procuremos determinar, à luz deste fato de que todo conhecimento e todo trabalho visa a algum bem, quais afirmamos ser os objetivos da ciência política e qual é o mais alto de todos os bens que se podem alcançar pela ação. Verbalmente, quase todos estão de acordo, pois tanto o vulgo como os homens de cultura superior dizem ser esse fim a felicidade e identificam o bem viver e o bem agir como o ser feliz. Diferem, porém, quanto ao que seja a felicidade, e o vulgo não o concebe do mesmo modo que os sábios. Os primeiros pensam que seja alguma coisa simples e óbvia, como o prazer, a riqueza ou as honras, muito embora discordem entre si; e não raro o mesmo homem a identifica com diferentes coisas, com a saúde quando está doente, e com a riqueza quando é pobre. Cônscios da sua própria ignorância, não obstante, admiram aqueles que proclamam algum grande ideal inacessível à sua compreensão. Ora, alguns têm pensado que, à parte esses numerosos bens, existe um outro que ê auto-subsistente e também é causa da bondade de todos os demais. Seria talvez infrutífero examinar todas as opiniões que têm sido sustentadas a esse respeito; basta considerar as mais difundidas ou aquelas que parecem ser defensáveis. Não percamos de vista, porém, que há uma diferença entre os argumentos que procedem dos primeiros princípios e os que se voltam para eles. O próprio Platão havia levantado esta questão, perguntando, como costumava fazer: "Nosso caminho parte dos primeiros princípios ou se dirige para eles?" Há aí uma diferença, como há, num estádio, entre a reta que vai dos juízes ao ponto de retorno e o caminho de volta. Com efeito, embora devamos começar pelo que é conhecido, os objetos de conhecimento o são em dois sentidos diferentes: alguns para nós, outros na acepção absoluta da palavra. É de presumir, pois, que devamos começar pelas coisas que nos são conhecidas, a nós. Eis aí por que, a fim de ouvir inteligentemente as preleções sobre o que é nobre e justo, e em geral sobre temas de ciência política, é preciso ter sido educado nos bons hábitos. Porquanto o fato é o ponto de partida, e se for suficientemente claro para o ouvinte, não haverá necessidade de explicar por que é assim; e o homem que foi bem educado já possui esses pontos de partida ou pode adquiri-los com facilidade. Quanto àquele que nem os possui, nem é capaz de adquiri-los, que ouça as palavras de Hesíodo: Ótimo é aquele que de si mesmo [conhece todas as coisas; Bom, o que escuta os conselhos [dos homens judiciosos. Mas o que por si não pensa, nem [acolhe a sabedoria alheia, Esse é, em verdade, uma criatura [inútil1 . 5 Voltemos, porém, ao ponto em que havia começado esta digressão. A julgar pela vida que os homens levam em geral, a maioria deles, e os homens de tipo mais vulgar, parecem (não sem um certo fundamento) identificar o bem ou a felicidade com o prazer, e por isso amam a vida dos gozos. Pode-se dizer, com efeito, que existem três tipos principais de vida: a que acabamos de mencionar, a vida política e a contemplativa. A grande maioria dos homens se mostram em tudo iguais a escravos, preferindo uma vida bestial, mas encontram certa justificação para pensar assim no fato de muitas pessoas altamente colocadas partilharem os gostos de Sardanapalo2 . A consideração dos tipos principais de vida mostra que as pessoas de grande refinamento e índole ativa identificam a felicidade com a honra; pois a honra é, em suma, a finalidade da vida política. No entanto, afigura-se demasiado superficial para ser aquela que buscamos, visto que depende mais de quem a confere que de quem a recebe, enquanto o bem nos parece ser algo próprio de um homem e que dificilmente lhe poderia ser arrebatado. Dir-se-ia, além disso, que os homens buscam a honra para convencerem-se a si mesmos de que são bons. Como quer que seja, é pelos indivíduos de grande sabedoria prática que procuram ser honrados, e entre os que os conhecem e, ainda mais, em razão da sua virtude. Está claro, pois, que para eles, ao menos, a virtude é 1 Trabalhos e Dias, 293 ss. (N. do E.) 2 Era um rei mítico da Assíria. (N. do E.) mais excelente. Poder-se-ia mesmo supor que a virtude, e não a honra, é a finalidade da vida política. Mas também ela parece ser de certo modo incompleta, porque pode acontecer que seja virtuoso quem está dormindo, quem leva uma vida inteira de inatividade, e, mais ainda, é ela compatível com os maiores sofrimentos e infortúnios. Ora, salvo quem queira sustentar a tese a todo custo, ninguém jamais considerará feliz um homem que vive de tal maneira. Quanto a isto, basta, pois o assunto tem sido suficientemente tratado mesmo nas discussões correntes. A terceira vida é a contemplativa, que examinaremos mais tarde3 . Quanto à vida consagrada ao ganho, é uma vida forçada, e a riqueza não é evidentemente o bem que procuramos: é algo de útil, nada mais, e ambicionado no interesse de outra coisa. E assim, antes deveriam ser incluídos entre os fins os que mencionamos acima, porquanto são amados por si mesmos. Mas é evidente que nem mesmo esses são fins; e contudo, muitos argumentos têm sido desperdiçados em favor deles. Deixamos, pois, este assunto. 6 Seria melhor, talvez, considerar o bem universal e discutir a fundo o que se entende por isso, embora tal investigação nos seja dificultada pela amizade que nos une àqueles que introduziram as Formas4 . No entanto, os mais ajuizados dirão que é preferível e que é mesmo nosso dever destruir o que mais de perto nos toca a fim de salvaguardar a verdade, especialmente por sermos filósofos ou amantes da sabedoria; porque, embora ambos nos sejam caros, a piedade exige que honremos a verdade acima de nossos amigos. Os defensores dessa doutrina não postularam Formas5 de classes dentro das quais reconhecessem prioridade e posterioridade (e por essa razão não sustentaram 3 1177 a 12 - 1178 a 8; 1178 a 22 - 1179 a 32. (N.do T.) 4 Outros traduzem por: Teoria das Idéias. (N. do E.) 5 ou Idéias. (N. do E.) a existência de uma Forma6 a abranger todos os números). Ora, o termo "bem" é usado tanto na categoria de substância como na de qualidade e na de relação, e o que existe por si mesmo, isto é, a substância, é anterior por natureza ao relativo (este, de fato, é como uma derivação e um acidente do ser); de modo que não pode haver uma Idéia comum por cima de todos esses bens. Além disso, como a palavra "bem" tem tantos sentidos quantos "ser" (visto que é predicada tanto na categoria de substância, como de Deus e da razão, quanto na de qualidade, isto é, das virtudes; na de quantidade, isto é, daquilo que é moderado; na de relação, isto é, do útil; na de tempo, isto é, da oportunidade apropriada; na de espaço, isto é, do lugar apropriado, etc.), está claro que o bem não pode ser algo único e universalmente presente, pois se assim fosse não poderia ser predicado em todas as categorias, mas somente numa. Ainda mais: como das coisas que correspondem a uma Idéia a ciência é uma só, haveria uma única ciência de todos os bens. Mas o fato é que as ciências são muitas, mesmo das coisas que se incluem numa só categoria: da oportunidade, por exemplo, pois que a oportunidade na guerra é estudada pela estratégia e na saúde pela medicina, enquanto a moderação nos alimentos é estudada por esta última, e nos exercícios pela ciência da ginástica. E alguém poderia fazer esta pergunta: que entendem eles, afinal, por esse "em de cada coisa, já que para o "homem em si" e para um homem particular a definição do homem é a mesma? Porque, na medida em que forem "homem", não diferirão em coisa alguma. E, assim sendo, tampouco diferirão o "bem em si" e os bens particulares na medida em que forem "bem". E, por outro lado, o "bem em si" não será mais "bem" pelo fato de ser eterno, assim como aquilo que dura muito tempo não é mais branco do que aquilo que perece no espaço de um dia. Os pitagóricos parecem fazer uma concepção mais plausível do bem quando colocam o "um" na coluna dos bens; e esta opinião, se não nos enganamos, foi adotada por Espeusipo. 6 Ou Idéia. (N. do E.) Mas deixemos esses assuntos para serem discutidos noutra ocasião7 . Poderse-á objetar ao que acabamos de dizer apontando que (os platônicos) não falam de todos os bens, e que os bens buscados e amados por si mesmos são chamados bons em referência a uma Forma única, enquanto os que de certo modo tendem a produzir ou a preservar estes, ou a afastar os seus opostos, são chamados bons em referência a estes e num sentido subsidiário. É evidente, pois, que falamos dos bens em dois sentidos: uns devem ser bens em si mesmos, e os outros, em relação aos primeiros. Separemos, pois, as coisas boas em si mesmas das coisas úteis, e vejamos se as primeiras são chamadas boas em referência a uma Idéia única. Que espécie de bens chamaríamos bens em si mesmos? Serão aqueles que buscamos mesmo quando isolados dos outros, como a inteligência, a visão e certos prazeres e honras? Estes, embora também possamos procurá-los tendo em vista outra coisa, seriam colocados entre os bens em si mesmos. Ou não haverá nada de bom em si mesmo senão a Idéia do bem? Nesse caso, a Forma se esvaziará de todo sentido. Mas, se as coisas que indicamos também são boas em si mesmas, o conceito do bem terá de ser idêntico em todas elas, assim como o da brancura é idêntico na neve e no alvaiade. Mas quanto à honra, à sabedoria e ao prazer, no que se refere à sua bondade, os conceitos são diversos e distintos. O bem, por conseguinte, não é uma espécie de elemento comum que corresponda a uma só Idéia. Mas que entendemos, então, pelo bem? Não será, por certo, como uma dessas coisas que só por casualidade têm o mesmo nome. Serão os bens uma só coisa por derivarem de um só bem, ou para ele contribuírem, ou antes serão um só por analogia? Inegavelmente, o que a visão é para o corpo a razão é para a alma, e da mesma forma em outros casos. Mas talvez seja preferível, por ora, deixarmos de lado esses assuntos, visto que a precisão perfeita no tocante a eles compete mais propriamente a um outro ramo da filosofia8 . 7 Cf. Metafísica, 986 a 22-26; 1028 b 21-24; 1072 b30— 1073a3; 1091 a 29 — 1091 b 3; 1091 b 13 1092 a 17. (N.doT.) 8 Cf. Metafísica, IV, 2. (N. do T.) O mesmo se poderia dizer no que se refere à Idéia: mesmo ainda que exista algum bem único que seja universalmente predicável dos bens ou capaz de existência separada e independente, é claro que ele não poderia ser realizado nem alcançado pelo homem; mas o que nós buscamos aqui é algo de atingível. Alguém, no entanto, poderá pensar que seja vantajoso reconhecê-lo com a mira nos bens que são atingíveis e realizáveis; porquanto, dispondo dele como de uma espécie de padrão, conheceremos melhor os bens que realmente nos aproveitam; e, conhecendo-os, estaremos em condições de alcançá-los. Este argumento tem um certo ar de plausibilidade, mas parece entrar em choque com o procedimento adotado nas ciências; porque todas elas, embora visem a algum bem e procurem suprir a sua falta, deixam de lado o conhecimento do bem. Entretanto, não é provável que todos os expoentes das artes ignorem e nem sequer desejem conhecer auxílio tão valioso. Não se compreende, por outro lado, a vantagem que possa trazer a um tecelão ou a um carpinteiro esse conhecimento do "bem em si" no que toca à sua arte, ou que o homem que tenha considerado a Idéia em si venha a ser, por isso mesmo, melhor médico ou general. Porque o médico nem sequer parece estudar a saúde desse ponto de vista, mas sim a saúde do homem, ou talvez seja mais exato dizer a saúde de um indivíduo particular, pois é aos indivíduos que ele cura. Mas quanto a isso, basta. 7 Voltemos novamente ao bem que estamos procurando e indaguemos o que é ele, pois não se afigura igual nas distintas ações e artes; é diferente na medicina, na estratégia, e em todas às demais artes do mesmo modo. Que é, pois, o bem de cada uma delas? Evidentemente, aquilo em cujo interesse se fazem todas as outras coisas. Na medicina é a saúde, na estratégia a vitória, na arquitetura uma casa, em qualquer outra esfera uma coisa diferente, e em todas as ações e propósitos é ele a finalidade; pois é tendo-o em vista que os homens realizam o resto. Por conseguinte, se existe uma finalidade para tudo que fazemos, essa será o bem realizável mediante a ação; e, se há mais de uma, serão os bens realizáveis através dela. Vemos agora que o argumento, tornando por um atalho diferente, chegou ao mesmo ponto. Mas procuremos expressar isto com mais clareza ainda. Já que, evidentemente, os fins são vários e nós escolhemos alguns dentre eles (como a riqueza, as flautas9 e os instrumentos em geral), segue-se que nem todos os fins são absolutos; mas o sumo bem é claramente algo de absoluto. Portanto, se só existe um fim absoluto, será o que estamos procurando; e, se existe mais de um, o mais absoluto de todos será o que buscamos. Ora, nós chamamos aquilo que merece ser buscado por si mesmo mais absoluto do que aquilo que merece ser buscado com vistas em outra coisa, e aquilo que nunca é desejável no interesse de outra coisa mais absoluto do que as coisas desejáveis tanto em si mesmas como no interesse de uma terceira; por isso chamamos de absoluto e incondicional aquilo que é sempre desejável em si mesmo e nunca no interesse de outra coisa. Ora, esse é o conceito que preeminentemente fazemos da felicidade. É ela procurada sempre por si mesma e nunca com vistas em outra coisa, ao passo que à honra, ao prazer, à razão e a todas as virtudes nós de fato escolhemos por si mesmos (pois, ainda que nada resultasse daí, continuaríamos a escolher cada um deles); mas também os escolhemos no interesse da felicidade, pensando que a posse deles nos tornará felizes. A felicidade, todavia, ninguém a escolhe tendo em vista algum destes, nem, em geral, qualquer coisa que não seja ela própria. Considerado sob o ângulo da auto-suficiência, o raciocínio parece chegar ao mesmo resultado, porque o bem absoluto é considerado como auto-suficiente. Ora, por auto-suficiente não entendemos aquilo que é suficiente para um homem só, para aquele que leva uma vida solitária, mas também para os pais, os filhos, a esposa, e em geral para os amigos e concidadãos, visto que o homem nasceu para a cidadania. Mas é necessário traçar aqui um limite, porque, se estendermos os 9 Cf. Platão, Eutidemo, 289. (N. do T.) nossos requisitos aos antepassados, aos descendentes e aos amigos dos amigos, teremos uma série infinita. Examinaremos esta questão, porém, em outro lugar10; por ora definimos a auto-suficiência como sendo aquilo que, em si mesmo, torna a vida desejável e carente de nada. E como tal entendemos a felicidade, considerando-a, além disso, a mais desejável de todas as coisas, sem contá-la como um bem entre outros. Se assim fizéssemos, é evidente que ela se tornaria mais desejável pela adição do menor bem que fosse, pois o que é acrescentado se torna um excesso de bens, e dos bens é sempre o maior o mais desejável. A felicidade é, portanto, algo absoluto e auto-suficiente, sendo também a finalidade da ação. Mas dizer que a felicidade é o sumo bem talvez pareça uma banalidade, e falta ainda explicar mais claramente o que ela seja. Tal explicação não ofereceria grande dificuldade se pudéssemos determinar primeiro a função do homem. Pois, assim como para um flautista, um escultor ou um pintor, e em geral para todas as coisas que têm uma função ou atividade, considera-se que o bem e o "bem feito" residem na função, o mesmo ocorreria com o homem se ele tivesse uma função. Dar-se-á o caso, então, de que o carpinteiro e o curtidor tenham certas funções e atividades, e o homem não tenha nenhuma? Terá ele nascido sem função? Ou, assim como o olho, a mão, o pé e em geral cada parte do corpo têm evidentemente uma função própria, poderemos assentar que o homem, do mesmo modo, tem uma função à parte de todas essas? Qual poderá ser ela? A vida parece ser comum até às próprias plantas, mas agora estamos procurando o que é peculiar ao homem. Excluamos, portanto, a vida de nutrição e crescimento. A seguir há uma vida de percepção, mas essa também parece ser comum ao cavalo, ao boi e a todos os animais. Resta, pois, a vida ativa do elemento que tem um princípio racional; desta, uma parte tem tal princípio no sentido de serlhe obediente, e a outra no sentido de possuí-lo e de exercer o pensamento. E, como a ''vida do elemento racional" também tem dois significados, devemos 10 I, 10-11; IX. 10.(N.doT.) esclarecer aqui que nos referimos a vida no sentido de atividade; pois esta parece ser a acepção mais própria do termo. Ora, se a função do homem é uma atividade da alma que segue ou que implica um princípio racional, e se dizemos que "um tal-e-tal" e "um bom tal-e-tal" têm uma função que é a mesma em espécie (por exemplo, um tocador de lira e um bom tocador de lira, e assim em todos os casos, sem maiores discriminações, sendo acrescentada ao nome da função a eminência com respeito à bondade — pois a função de um tocador de lira é tocar lira, e a de um bom tocador de lira é fazê-lo bem); se realmente assim é [e afirmamos ser a função do homem uma certa espécie de vida, e esta vida uma atividade ou ações da alma que implicam um princípio racional; e acrescentamos que a função de um bom homem é uma boa e nobre realização das mesmas; e se qualquer ação é bem realizada quando está de acordo com a excelência que lhe é própria; se realmente assim é], o bem do homem nos aparece como uma atividade da alma em consonância com a virtude, e, se há mais de uma virtude, com a melhor e mais completa. Mas é preciso ajuntar "numa vida completo". Porquanto uma andorinha não faz verão, nem um dia tampouco; e da mesma forma um dia, ou um breve espaço de tempo, não faz um homem feliz e venturoso. Que isto sirva como um delineamento geral do bem, pois presumivelmente é necessário esboçá-lo primeiro de maneira tosca, para mais tarde precisar os detalhes. Mas, a bem dizer, qualquer um é capaz de preencher e articular o que em princípio foi bem delineado; e também o tempo parece ser um bom descobridor e colaborador nessa espécie de trabalho. A tal fato se devem os progressos das artes, pois qualquer um pode acrescentar o que falta. Devemos igualmente recordar o que se disse antes11 e não buscar a precisão em todas as coisas por igual, mas, em cada classe de coisas, apenas a precisão que o assunto comportar e que for apropriada à investigação. Porque um carpinteiro e um geômetra investigam de diferentes modos o ângulo reto. O primeiro o faz na 11 1094 b 11-27.(N. do T.) medida em que o ângulo reto é útil ao seu trabalho, enquanto o segundo indaga o que ou que espécie de coisa ele é; pois o geômetra é como que um espectador da verdade. Nós outros devemos proceder do mesmo modo em todos os outros assuntos, para que a nossa tarefa principal não fique subordinada a questões de menor monta. E tampouco devemos reclamar a causa em todos os assuntos por igual. Em alguns casos basta que o fato esteja bem estabelecido, como sucede com os primeiros princípios: o fato é a coisa primária ou primeiro princípio. Ora, dos primeiros princípios descobrimos alguns pela indução, outros pela percepção, outros como que por hábito, e outros ainda de diferentes maneiras. Mas a cada conjunto de princípios devemos investigar da maneira natural e esforçar-nos para expressá-los com precisão, pois que eles têm grande influência sobre o que se segue. Diz-se, com efeito, que o começo é mais que metade do todo, e muitas das questões que formulamos são aclaradas por ele. 8 Devemos considerá-lo, no entanto, não só à luz da nossa conclusão e das nossas premissas, mas também do que a seu respeito se costuma dizer; pois com uma opinião verdadeira todos os dados se harmonizam, mas com uma opinião falsa os fatos não tardam a entrar em conflito. Ora, os bens têm sido divididos em três classes12, e alguns foram descritos como exteriores, outros como relativos à alma ou ao corpo. Nós outros consideramos como mais propriamente e verdadeiramente bens os que se relacionam com a alma, e como tais classificamos as ações e atividades psíquicas. Logo, o nosso ponto de vista deve ser correto, pelo menos de acordo com esta antiga opinião, com a qual concordam muitos filósofos. É também correto pelo fato de identificarmos o fim com certas ações e atividades, pois desse modo ele vem incluir-se entre os bens da alma, e não entre os bens exteriores. Outra crença que se harmoniza com a nossa concepção é a de que o homem feliz vive bem e age bem; pois definimos praticamente a felicidade como uma 12 Platão, Eutidemo, 279; Filebo, 48; Leis, 743. N.doT.) espécie de boa vida e boa ação. As características que se costuma buscar na felicidade também parecem pertencer todas à definição que demos dela. Com efeito, alguns identificam a felicidade com a virtude, outros com a sabedoria prática, outros com uma espécie de sabedoria filosófica, outros com estas, ou uma destas, acompanhadas ou não de prazer; e outros ainda também incluem a prosperidade exterior. Ora, algumas destas opiniões têm tido muitos e antigos defensores, enquanto outras foram sustentadas por poucas, mas eminentes pessoas. E não é provável que qualquer delas esteja inteiramente equivocada, mas sim que tenham razão pelo menos a algum respeito, ou mesmo a quase todos os respeitos. Também se ajusta à nossa concepção a dos que identificam a felicidade com a virtude em geral ou com alguma virtude particular, pois que à virtude pertence a atividade virtuosa. Mas há, talvez, uma diferença não pequena em colocarmos o sumo bem na posse ou no uso, no estado de ânimo ou no ato. Porque pode existir o estado de ânimo sem produzir nenhum bom resultado, como no homem que dorme ou que permanece inativo; mas a atividade virtuosa, não: essa deve necessariamente agir, e agir bem. E, assim como nos Jogos Olímpicos não são os mais belos e os mais fortes que conquistam a coroa, mas os que competem (pois é dentre estes que hão de surgir os vencedores), também as coisas nobres e boas da vida só são alcançadas pelos que agem retamente. Sua própria vida é aprazível por si mesma. Com efeito, o prazer é um estado da alma, e para cada homem é agradável aquilo que ele ama: não só um cavalo ao amigo de cavalos e um espetáculo ao amador de espetáculos, mas também os atos justos ao amante da justiça e, em geral, os atos virtuosos aos amantes da virtude. Ora, na maioria dos homens os prazeres estão em conflito uns com os outros porque não são aprazíveis por natureza, mas os amantes do que é nobre se comprazem em coisas que têm aquela qualidade; tal é o caso dos atos virtuosos, que não apenas são aprazíveis a esses homens, mas em si mesmos e por sua própria natureza. Em conseqüência, a vida deles não necessita do prazer como uma espécie de encanto adventício, mas possui o prazer em si mesma. Pois que, além do que já dissemos, o homem que não se regozija com as ações nobres não é sequer bom; e ninguém chamaria de justo o que não se compraz em agir com justiça, nem liberal o que não experimenta prazer nas ações liberais; e do mesmo modo em todos os outros casos. Sendo assim, as ações virtuosas devem ser aprazíveis em si mesmas. Mas são, além disso, boas e nobres, e possuem no mais alto grau cada um destes atributos, porquanto o homem bom sabe aquilatá-los bem; sua capacidade de julgar é tal como a descrevemos. A felicidade é, pois, a melhor, a mais nobre e a mais aprazível coisa do mundo, e esses atributos não se acham separados como na inscrição de Delos: Das coisas a mais nobre é a mais justa, e a melhor é a saúde; Mas a mais doce é alcançar o que amamos. Com efeito, todos eles pertencem às mais excelentes atividades; e estas, ou então, uma delas — a melhor —, nós a identificamos com a felicidade. E no entanto, como dissemos13, ela necessita igualmente dos bens exteriores; pois é impossível, ou pelo menos não é fácil, realizar atos nobres sem os devidos meios. Em muitas ações utilizamos como instrumentos os amigos, a riqueza e o poder político; e há coisas cuja ausência empana a felicidade, como a nobreza de nascimento, uma boa descendência, a beleza. Com efeito, o homem de muito feia aparência, ou mal-nascido, ou solitário e sem filhos, não tem muitas probabilidades de ser feliz, e talvez tivesse menos ainda se seus filhos ou amigos fossem visceralmente maus e se a morte lhe houvesse roubado bons filhos ou bons amigos. 13 1098 b 26-29. (N. do T.) Como dissemos, pois, o homem feliz parece necessitar também dessa espécie de prosperidade; e por essa razão alguns identificam a felicidade com a boa fortuna, embora outros a identifiquem com a virtude. 9 Por este motivo, também se pergunta se a felicidade deve ser adquirida pela aprendizagem, pelo hábito ou por alguma outra espécie de adestramento, ou se ela nos é conferida por alguma providência divina, ou ainda pelo acaso. Ora, se alguma dádiva os homens recebem dos deuses, é razoável supor que a felicidade seja uma delas, e, dentre todas as coisas humanas, a que mais seguramente é uma dádiva divina, por ser a melhor. Esta questão talvez caiba melhor em outro estudo; no entanto, mesmo que a felicidade não seja dada pelos deuses, mas, ao contrário, venha como um resultado da virtude e de alguma espécie de aprendizagem ou adestramento, ela parece contar-se entre as coisas mais divinas; pois aquilo que constitui o prêmio e a finalidade da virtude se nos afigura o que de melhor existe no mundo, algo de divino e abençoado. Dentro desta concepção, também deve ela ser partilhada por grande número de pessoas, pois quem quer que não esteja mutilado em sua capacidade para a virtude pode conquistá-la mediante uma certa espécie de estudo e diligência. Mas, se é preferível ser feliz dessa maneira a sê-lo por acaso, é razoável que os fatos sejam assim, uma vez que tudo aquilo que depende da ação natural é, por natureza, tão bom quanto poderia ser, e do mesmo modo o que depende da arte ou de qualquer causa racional, especialmente se depende da melhor de todas as causas. Confiar ao acaso o que há de melhor e de mais nobre seria um arranjo muito imperfeito. A resposta à pergunta que estamos fazendo é também evidente pela definição da felicidade, porquando dissemos14 que ela é uma atividade virtuosa da alma, de certa espécie. Do demais bens, alguns devem necessariamente estar presentes como condições prévias da felicidade, e outros são naturalmente 14 1098 a 16. (N. do T.) cooperantes e úteis como instrumentos. E isto, como é de ver concorda com o que dissemos no princípio15, isto é, que o objetivo da vida política é o melhor dos fins, e essa ciência dedica o melhor de seus esforços a fazer com que os cidadãos sejam bons e capazes de nobres ações. Ê natural, portanto, que não chamemos feliz nem ao boi, nem ao cavalo. nem a qualquer outro animal, visto que nenhum deles pode participar de tal atividade. Pelo mesmo motivo, um menino tampouco é feliz, pois que, devido à sua idade, ainda não é capaz de tais atos; e os meninos a quem chamamos felizes estão simplesmente sendo congratulados por causa das esperanças que neles depositamos. Porque, como dissemos16, há mister não só de uma virtude completa mas também de uma vida completa, já que muitas mudanças ocorrem na vida, e eventualidades de toda sorte: o mais próspero pode ser vítima de grandes infortúnios na velhice, como se conta de Príamo no Ciclo Troiano; e a quem experimentou tais vicissitudes e terminou miseravelmente ninguém chama feliz. 10 Então ninguém deverá ser considerado feliz enquanto viver, e será preciso ver o fim, como diz Sólon17? Mesmo que esposemos essa doutrina, dar-se-á o caso de que um homem seja feliz depois de morto? Ou não será perfeitamente absurda tal idéia, sobretudo para nós, que dizemos ser a felicidade uma espécie de atividade? Mas, se não consideramos felizes os mortos e se Sólon não se refere a isso, mas quer apenas dizer que só então se pode com segurança chamar um homem de venturoso porque finalmente não mais o podem atingir males nem infortúnios, isso também fornece matéria para discussão. Efetivamente, acredita-se que para um morto existem males e bens, tanto quanto para os vivos que não têm consciência deles: por exemplo, as honras e desonras, as boas e más fortunas dos filhos e dos descendentes em geral. 15 1094 a 27. (N. do T.) 16 1098 a 16-18. (N.doT.) 17 Heródoto, I, 32. (N. do T.) E isto também levanta um problema. Com efeito, embora um homem tenha vivido feliz até avançada idade e tido uma morte digna de sua vida, muitos reveses podem suceder aos seus descendentes. Alguns serão bons e terão a vida que merecem, ao passo que com outros sucederá o contrário; e também é evidente que os graus de parentesco entre eles e os seus antepassados podem variar indefinidamente. Seria estranho, pois, se os mortos devessem participar dessas vicissitudes e ora ser felizes, ora desgraçados; mas, por outro lado, também seria estranho se a sorte dos descendentes jamais produzisse o menor efeito sobre a felicidade de seus ancestrais. Voltemos, porém, à nossa primeira dificuldade, cujo exame mais atento talvez nos dê a solução do presente problema. Ora, se é preciso ver o fim para só então declarar um homem feliz, temos aí um paradoxo flagrante: quando ele é feliz, os atributos que lhe pertencem não podem ser verdadeiramente predicados dele devido às mudanças a que estão sujeitos, porque admitimos que a felicidade é algo de permanente e que não muda com facilidade, ao passo que cada indivíduo pode sofrer muitas voltas da roda da fortuna. É claro que, para acompanhar o passo de suas vicissitudes, deveríamos chamar o mesmo homem ora de feliz, ora de desgraçado, o que faria do homem feliz um "camaleão, sem base segura". Ou será um erro esse acompanhar as vicissitudes da fortuna de um homem? O sucesso ou o fracasso na vida não depende delas, mas, como dissemos18, a existência humana delas necessita como meros acréscimos, enquanto o que constitui a felicidade ou o seu contrário são as atividades virtuosas ou viciosas. A questão que acabamos de discutir confirma a nossa definição, pois nenhuma função humana desfruta de tanta permanência como as atividades virtuosas, que são consideradas mais duráveis do que o próprio conhecimento das ciências. E as mais valiosas dentre elas são mais duráveis, porque os homens felizes de bom grado e com muita constância lhes dedicam os dias de sua vida; e esta parece ser a razão pela qual sempre nos lembramos deles. O atributo em apreço 18 1099 a 31 — 1099 b 7. (N. do T.) pertencerá, pois, ao homem feliz, que o será durante a vida inteira; porque sempre, ou de preferência a qualquer outra coisa, estará empenhado na ação ou na contemplação virtuosa, e suportará as vicissitudes da vida com a maior nobreza e decoro, se é "verdadeiramente bom" e "honesto acima de toda censura". Ora, muitas coisas acontecem por acaso, e coisas diferentes quanto à importância. É claro que os pequenos incidentes felizes ou infelizes não pesam muito na balança, mas uma multidão de grandes acontecimentos, se nos forem favoráveis, tornará nossa vida mais venturosa (pois não apenas são, em si mesmos, de feitio a aumentar a beleza da vida, mas a própria maneira como um homem os recebe pode ser nobre e boa); e, se se voltarem contra nós, poderão esmagar e mutilar a felicidade, pois que, além de serem acompanhados de dor, impedem muitas atividades. Todavia, mesmo nesses a nobreza de um homem se deixa ver, quando aceita com resignação muitos grandes infortúnios, não por insensibilidade à dor, mas por nobreza e grandeza de alma. Se as atividades são, como dissemos, o que dá caráter à vida, nenhum homem feliz pode tornar-se desgraçado, porquanto jamais praticará atos odiosos e vis. Com efeito, o homem verdadeiramente bom e sábio suporta com dignidade, pensamos nós, todas as contingências da vida, e sempre tira o maior proveito das circunstâncias, como um general que faz o melhor uso possível do exército sob o seu comando ou um bom sapateiro faz os melhores calçados com o couro que lhe dão; e do mesmo modo com todos os outros artífices. E, se assim é, o homem feliz nunca pode tornar-se desgraçado, muito embora não alcance a beatitude se tiver uma fortuna semelhante à de Príamo. E tampouco será ele versátil e mutável, pois nem se deixará desviar facilmente do seu venturoso estado por quaisquer desventuras comuns, mas somente por muitas e grandes; nem, se sofreu muitas e grandes desventuras, recuperará em breve tempo a sua felicidade. Se a recuperar, será num tempo longo e completo, em que houver alcançado muitos e esplêndidos sucessos. Quando diremos, então, que não é feliz aquele que age conforme à virtude perfeita e está suficientemente provido de bens exteriores, não durante um período qualquer, mas através de uma vida completa? Ou devemos acrescentar: "E que está destinado a viver assim e a morrer de modo consentâneo com a sua vida"? Em verdade, o futuro nos é impenetrável, enquanto a felicidade, afirmamos nós, é um fim e algo de final a todos os respeitos. Sendo assim, chamaremos felizes àqueles dentre os seres humanos vivos em que essas condições se realizem ou estejam destinadas a realizar-se — mas homens felizes. Sobre estas questões dissemos o suficiente. 11 Que a sorte dos descendentes e de todos os amigos de um homem não lhe afete de nenhum modo a felicidade parece ser uma doutrina cínica e contrária à opinião comum. Mas, visto serem numerosos os acontecimentos que ocorrem, e admitirem toda espécie de diferenças, e já que alguns nos tocam mais de perto e outros menos, anto-lha-se uma tarefa longa — mais do que longa, infinita — discutir cada um em detalhe. Talvez possamos contentar-nos com um esboço geral. Se, pois, alguns infortúnios pessoais de um homem têm certo peso e influência na vida, enquanto outros são, por assim dizer, mais leves, também existem diferenças entre os infortúnios de nossos amigos tomados em conjunto, e não dá no mesmo que os diversos sofrimentos sobrevenham aos vivos ou aos mortos (com efeito, a diferença aqui é muito maior, até, do que entre atos terríveis e iníquos pressupostos numa tragédia ou efetivamente representados na cena), essa diferença também deve ser levada em conta — ou antes, talvez, o fato de haver dúvida sobre se os mortos participam de qualquer bem ou mal. Pois parece, de acordo com tudo que acabamos de ponderar, que ainda que algo de bom ou mau chegue até eles, devem ser influências muito fracas e insignificantes, quer em si mesmas, quer para eles; ou, então, serão tais em grau e em espécie que não possam tornar feliz quem não o é, nem roubar a beatitude aos venturosos. Por conseguinte, a boa ou má fortuna dos amigos parece ter certos efeitos sobre os mortos, mas efeitos de tal espécie e grau que não tornam desgraçados os felizes nem produzem qualquer outra alteração semelhante. 12 Tendo dado uma resposta definida a essas questões, vejamos agora se a felicidade pertence ao número das coisas que são louvadas, ou, antes, das que são estimadas; pois é evidente que não podemos colocá-la entre as potencialidades. Tudo que é louvado parece merecer louvores por ser de certa espécie e relacionado de um modo qualquer com alguma outra coisa; porque louvamos o justo ou o valoroso, e, em geral, tanto o homem bom como a própria virtude, devido às ações e funções em jogo, e louvamos o homem forte, o bom corredor, etc., porque são de uma determinada espécie e se relacionam de certo modo com algo de bom ou importante. Isso também é evidente quando consideramos os louvores dirigidos aos deuses, pois parece absurdo que os deuses sejam aferidos pelos nossos padrões; no entanto assim se faz, porque o louvor envolve uma referência, como dissemos, a alguma outra coisa. Entretanto, se o louvor se aplica a coisas do gênero das que descrevemos, evidentemente o que se aplica às melhores coisas não é louvor, mas algo de melhor e de maior; porquanto aos deuses e aos mais divinos dentre os homens, o que fazemos é chamá-los felizes e bem-aventurados. E o mesmo vale para as coisas: ninguém louva a felicidade como louva a justiça, mas antes a chama de bem-aventurada, como algo mais divino e melhor. Também parece que Eudoxo estava acertado em seu método de sustentar a supremacia do prazer. Pensava ele que o fato de não ser louvado o prazer, embora seja um bem, está a indicar que ele é melhor do que as coisas a que prodigalizamos louvores — e tais são Deus e o bem; pois é em relação a eles que todas as outras coisas são julgadas. O louvor é apropriado à virtude, pois graças a ela os homens tendem a praticar ações nobres, mas os encômios se dirigem aos atos, quer do corpo, quer da alma. No entanto, talvez a sutileza nestes assuntos seja mais própria dos que fizeram um estudo dos encômios; para nós, o que se disse acima deixa bastante claro que a felicidade pertence ao número das coisas estimadas e perfeitas. E também parece ser assim pelo fato de ser ela um primeiro princípio; pois é tendo-a em vista que fazemos tudo que fazemos, e o primeiro princípio e causa dos bens é, afirmamos nós, algo de estimado e de divino. 13 Já que a felicidade é uma atividade da alma conforme à virtude perfeita, devemos considerar a natureza da virtude: pois talvez possamos compreender melhor, por esse meio, a natureza da felicidade. O homem verdadeiramente político também goza a reputação de haver estudado a virtude acima de todas as coisas, pois que ele deseja fazer com que os seus concidadãos sejam bons e obedientes às leis. Temos um exemplo disso nos legisladores dos cretenses e dos espartanos, e em quaisquer outros dessa espécie que possa ter havido alhures. E, se esta investigação pertence à ciência política, é evidente que ela estará de acordo com o nosso plano inicial. Mas a virtude que devemos estudar é. fora de qualquer dúvida, a virtude humana; porque humano era o bem e humana a felicidade que buscávamos. Por virtude humana entendemos não a do corpo, mas a da alma; e também à felicidade chamamos uma atividade de alma. Mas, assim sendo, é óbvio que o político deve saber de algum modo o que diz respeito à alma, exatamente como deve conhecer os olhos ou a totalidade do corpo aquele que se propõe a curá-los; e com maior razão ainda por ser a política mais estimada e melhor do que a medicina. Mesmo entre os médicos, os mais competentes dão-se grande trabalho para adquirir o conhecimento do corpo. O político, pois, deve estudar a alma tendo em vista os objetivos que mencionamos e quanto baste para o entendimento das questões que estamos discutindo, já que os nossos propósitos não parecem exigir uma investigação mais precisa, que seria, aliás, muito trabalhosa. A seu respeito são feitas algumas afirmações bastante exatas, mesmo nas discussões estranhas à nossa escola; e delas devemos utilizar-nos agora. Por exemplo: que a alma tem uma parte racional e outra parte privada de razão. Que elas sejam distintas como as partes do corpo ou de qualquer coisa divisível, ou distintas por definição mas inseparáveis por natureza, como o côncavo e o convexo na circunferência de um círculo, não interessa à questão com que nos ocupamos de momento. Do elemento irracional, uma subdivisão parece estar largamente difundida e ser de natureza vegetativa. Refiro-me à que é causa da nutrição e do crescimento; pois é essa espécie de faculdade da alma que devemos atribuir a todos os lactantes e aos próprios embriões, e que também está presente nos seres adultos: com efeito, é mais razoável pensar assim do que atribuir-lhes uma faculdade diferente. Ora, a excelência desta faculdade parece ser comum a todas as espécies, e não especificamente humana. Além disso, tudo está a indicar que ela funciona principalmente durante o sono, ao passo que é nesse estado que menos se manifestam a bondade e a maldade. Daí vem o aforismo de que os felizes não diferem dos infortunados durante metade de sua vida; o que é muito natural, em vista de ser o sono uma inatividade da alma em relação àquilo que nos leva a chamá-la de boa ou má; a menos, talvez, que uma pequena parte do movimento dos sentidos penetre de algum modo na alma. tornando os sonhos do homem bom melhores que os da gente comum. Mas basta quanto a esse assunto. Deixemos de lado a faculdade nutritiva, uma vez que, por natureza, ela não participa da excelência humana. Parece haver na alma ainda outro elemento irracional, mas que, em certo sentido, participa da razão. Com efeito, louvamos o princípio racional do homem continente e do incontinente, assim como a parte de sua alma que possui tal princípio, porquanto ela os impele na direção certa e para os melhores objetivos; mas, ao mesmo tempo, encontra-se neles um outro elemento naturalmente oposto ao princípio racional, lutando contra este a resistindo-lhe. Porque, exatamente como os membros paralisados se voltam para a esquerda quando procuramos movê-los para a direita, a mesma coisa sucede na alma: os impulsos dos incontinentes movem-se em direções contrárias. Com uma diferença, porém: enquanto, no corpo, vemos aquilo que se desvia da direção certa, na alma não podemos vê-lo. Apesar disso, devemos admitir que também na alma existe qualquer coisa contrária ao princípio racional, qualquer coisa que lhe resiste e se opõe a ele. Em que sentido esse elemento se distingue dos outros, é uma questão que não nos interessa. Nem sequer parece ele participar de um princípio racional, como dissemos. Seja como for, no homem continente ele obedece ao referido princípio; e é de presumir que no temperante e no bravo seja mais obediente ainda, pois em tais homens ele fala, a respeito de todas as coisas, com a mesma voz que o princípio racional. Por conseguinte, o elemento irracional também parece ser duplo. Com efeito, o elemento vegetativo não tem nenhuma participação num princípio racional, mas o apetitivo e, em geral, o elemento desiderativo participa dele em certo sentido, na medida em que o escuta e lhe obedece. É nesse sentido que falamos em "atender às razões" do pai e dos amigos, o que é bem diverso de ponderar a razão de uma propriedade matemática. Que, de certo modo, o elemento irracional é persuadido pela razão, também estão a indicá-lo os conselhos que se costuma dar, assim como todas as censuras e exortações. E, se convém afirmar que também esse elemento possui um princípio racional, o que possui tal princípio (como também o que carece dele) será de dupla natureza: uma parte possuindo-o em si mesma e no sentido rigoroso do termo, e a outra com a tendência de obedecer-lhe como um filho obedece ao pai. A virtude também se divide em espécies de acordo com esta diferença, porquanto dizemos que algumas virtudes são intelectuais e outras morais; entre as primeiras temos a sabedoria filosófica, a compreensão, a sabedoria prática; e entre as segundas, por exemplo, a liberalidade e a temperança. Com efeito, ao falar do caráter de um homem não dizemos que ele é sábio ou que possui entendimento, mas que é calmo ou temperante. No entanto, louvamos também o sábio, referindonos ao hábito; e aos hábitos dignos de louvor chamamos virtudes. LIVRO II 1 Sendo, pois, de duas espécies a virtude, intelectual e moral, a primeira, por via de regra, gera-se. e cresce graças ao ensino — por isso requer experiência e tempo; enquanto a virtude moral é adquirida em resultado do hábito, donde ter-se formado o seu nome por uma pequena modificação da palavra (hábito). Por tudo isso, evidencia-se também que nenhuma das virtudes morais surge em nós por natureza; com efeito, nada do que existe naturalmente pode formar um hábito contrário à sua natureza. Por exemplo, à pedra que por natureza se move para baixo não se pode imprimir o hábito de ir para cima, ainda que tentemos adestrá-la jogando-a dez mil vezes no ar; nem se pode habituar o fogo a dirigir-se para baixo, nem qualquer coisa que por natureza se comporte de certa maneira a comportar-se de outra. Não é, pois, por natureza, nem contrariando a natureza que as virtudes se geram em nós. Diga-se, antes, que somos adaptados por natureza a recebê-las e nos tornamos perfeitos pelo hábito. Por outro lado, de todas as coisas que nos vêm por natureza, primeiro adquirimos a potência e mais tarde exteriorizamos os atos. Isso é evidente no caso dos sentidos, pois não foi por ver ou ouvir freqüentemente que adquirimos a visão e a audição, mas, pelo contrário, nós as possuíamos antes de usá-las, e não entramos na posse delas pelo uso. Com as virtudes dá-se exatamente o oposto: adquirimo-las pelo exercício, como também sucede com as artes. Com efeito, as coisas que temos de aprender antes de poder fazê-las, aprendemo-las fazendo; por exemplo, os homens tornam-se arquitetos construindo e tocadores de lira tangendo esse instrumento. Da mesma forma, tornamo-nos justos praticando atos justos, e assim com a temperança, a bravura, etc. Isto é confirmado pelo que acontece nos Estados: os legisladores tornam bons os cidadãos por meio de hábitos que lhes incutem. Esse é o propósito de todo legislador, e quem não logra tal desiderato falha no desempenho da sua missão. Nisso, precisamente, reside a diferença entre as boas e as más constituições. Ainda mais: é das mesmas causas e pelos mesmos meios que se gera e se destrói toda virtude, assim como toda arte: de tocar a lira surgem os bons e os maus músicos. Isso também vale para os arquitetos e todos os demais; construindo bem, tornam-se bons arquitetos; construindo mal, maus. Se não fosse assim não haveria necessidade de mestres, e todos os homens teriam nascido bons ou maus em seu ofício. Isso, pois, é o que também ocorre com as virtudes: pelos atos que praticamos em nossas relações com os homens nos tornamos justos ou injustos; pelo que fazemos em presença do perigo e pelo hábito do medo ou da ousadia, nos tornamos valentes ou covardes. O mesmo se pode dizer dos apetites e da emoção da ira: uns se tornam temperantes e calmos, outros intemperantes e irascíveis, portando-se de um modo ou de outro em igualdade de circunstâncias. Numa palavra: as diferenças de caráter nascem de atividades semelhantes. É preciso, pois, atentar para a qualidade dos atos que praticamos, porquanto da sua diferença se pode aquilatar a diferença de caracteres. E não é coisa de somenos que desde a nossa juventude nos habituemos desta ou daquela maneira. Tem, pelo contrário, imensa importância, ou melhor: tudo depende disso. 2 Uma vez que a presente investigação não visa ao conhecimento teórico como as outras — porque não investigamos para saber o que é a virtude, mas a fim de nos tornarmos bons, do contrário o nosso estudo seria inútil —, devemos examinar agora a natureza dos atos, isto é, como devemos praticá-los; pois que, como dissemos, eles determinam a natureza dos estados de caráter que daí surgem. Ora, que devemos agir de acordo com a regra justa é um princípio comumente aceito, que nós encamparemos. Mais tarde19 havemos de nos ocupar dele, examinando o que seja a regra justa e como se relaciona com as outras virtudes. Uma coisa, porém, deve ser assentada de antemão, e é que todo esse tratamento de assuntos de conduta se fará em linhas gerais e não de maneira precisa. Desde o princípio20 fizemos ver que as explicações que buscamos devem estar de acordo com os respectivos assuntos. Tal como se passa no que se refere à saúde, as questões de conduta e do que é bom para nós não têm nenhuma fixidez. Sendo essa a natureza da explicação geral, a dos casos particulares será ainda mais carente de exatidão, pois não há arte ou preceito que os abranja a todos, mas as próprias pessoas atuantes devem considerar, em cada caso, o que é mais apropriado à ocasião, como também sucede na arte da navegação e na medicina. Mas, embora o nosso tratado seja desta natureza, devemos prestar tanto serviço quanto for possível. Comecemos, pois, por frisar que está na natureza dessas coisas o serem destruídas pela falta e pelo excesso, como se observa no referente à força e à saúde (pois, a fim de obter alguma luz sobre coisas imperceptíveis, devemos recorrer à evidência das coisas sensíveis). Tanto a deficiência como o excesso de exercício destroem a força; e, da mesma forma, o alimento ou a bebida que ultrapassem determinados limites, tanto para mais como para menos, destroem a saúde ao passo que, sendo tomados nas devidas proporções, a produzem, aumentam e preservam. O mesmo acontece com a temperança, a coragem e as outras virtudes, pois o homem que a tudo teme e de tudo foge, não fazendo frente a nada, torna-se um covarde, e o homem que não teme absolutamente nada, mas vai ao encontro de todos os perigos, torna-se temerário; e, analogamente, o que se entrega a todos os prazeres e não se abstém de nenhum torna-se intemperante, enquanto o que evita todos os prazeres, como fazem os rústicos, se torna de certo modo insensível. 19 Livro VI, cap. 13. (N. do T.) 20 1094 b 11-27. (N. do T.) A temperança e a coragem, pois, são destruídas pelo excesso e pela falta, e preservadas pela mediania. Mas não só as causas e fontes de sua geração e crescimento são as mesmas que as de seu perecimento, como também é a mesma esfera de sua atualização. Isto também é verdadeiro das coisas mais evidentes aos sentidos, como a força, por exemplo: ela é produzida pela ingestão de grande quantidade de alimento e por um exercício intenso, e quem mais está em condições de fazer isso é o homem forte. O mesmo ocorre com as virtudes: tornamo-nos temperantes abstendo-nos de prazeres, e é depois de nos tornarmos tais que somos mais capazes dessa abstenção. E igualmente no que toca à coragem, pois é habituando-nos a desprezar e arrostar coisas terríveis que nos tornamos bravos, e depois de nos tornarmos tais, somos mais capazes de lhes fazer frente. 3 Devemos tomar como sinais indicativos do caráter o prazer ou a dor que acompanham os atos; porque o homem que se abstém de prazeres corporais e se deleita nessa própria abstenção é temperante, enquanto o que se aborrece com ela é intemperante; e quem arrosta coisas terríveis e sente prazer em fazê-lo, ou, pelo menos, não sofre com isso, é bravo, enquanto o homem que sofre é covarde. Com efeito, a excelência moral, relaciona-se com prazeres e dores; é por causa do prazer que praticamos más ações, e por causa da dor que nos abstemos de ações nobres. Por isso deveríamos ser educados de uma determinada maneira desde a nossa juventude, como diz Platão21, a fim de nos deleitarmos e de sofrermos com as coisas que nos devem causar deleite ou sofrimento, pois essa é a educação certa. Por outro lado, se as virtudes dizem respeito a ações e paixões, e cada ação e cada paixão é acompanhada de prazer ou de dor, também por este motivo a virtude se relacionará com prazeres e dores. Outra coisa que está a indicá-lo é o fato de ser infligido o castigo por esses meios; ora, o castigo é uma espécie de cura, e é da natureza das curas o efetuarem-se pelos contrários. 21 Leis, 653 ss.; República, 401-402. (N. do T.) Ainda mais: como dissemos não faz muito22, todo estado da alma tem uma natureza relativa e concernente à espécie de coisas que tendem a torná-la melhor ou pior; mas é em razão dos prazeres e dores que os homens se tornam maus, isto é, buscando-os ou evitando-os — quer prazeres e dores que não devem, na ocasião em que não devem ou da maneira pela qual não devem buscar ou evitar, quer por errarem numa das outras alternativas semelhantes que se podem distinguir. Por isso, muitos chegam a definir as virtudes como certos estados de impassividade e repouso; não acertadamente, porém, porque se exprimem de modo absoluto, sem dizer "como se deve", "como não se deve", "quando se deve ou não se deve", e as outras condições que se podem acrescentar. Admitimos, pois, que essa espécie de excelência tende a fazer o que é melhor com respeito aos prazeres e às dores, e que o vício faz o contrário. Os fatos seguintes também nos podem mostrar que a virtude e o vício se relacionam com essas mesmas coisas. Como existem três objetos de escolha e três de rejeição — o nobre, o vantajoso, o agradável e seus contrários, o vil, o prejudicial e o doloroso —, a respeito de todos eles o homem bom tende a agir certo e o homem mau a agir errado, e especialmente no que toca ao prazer. Com efeito, além de ser comum aos animais, este também acompanha todos os objetos de escolha, pois até o nobre e o vantajoso se apresentam como agradáveis. Acresce que o agradável e o doloroso cresceram conosco desde a nossa infância, e por isso é difícil conter essas paixões, enraizadas como estão na nossa vida. E, alguns mais e outros menos, medimos nossas próprias ações pelo estalão do prazer e da dor. Por esse motivo, toda a nossa inquirição girará em torno deles, já que, pelo fato de serem legítimos ou ilegítimos, o prazer e a dor que sentimos têm efeito não pequeno sobre as nossas ações. Por outro lado, para usarmos a frase de Heráclito, é mais difícil lutar contra o prazer do que contra a dor, mas tanto a virtude como a arte se orientam para o mais difícil, que até torna melhores as coisas boas. Essa é também a razão por que 22 1104 a 27— 1104b3.(N.doT.) tanto a virtude como a ciência política giram sempre em torno de prazeres e dores, de vez que o homem que lhes der bom uso será bom e o que lhes der mau uso será mau. Demos por assentado, pois, que a virtude tem que ver com prazeres e dores; que, pelos mesmos atos de que ela se origina, tanto é acrescida como, se tais atos são praticados de modo diferente, destruída; e que os atos de onde surgiu a virtude são os mesmos em que ela se atualiza. 4 Alguém poderia perguntar que entendemos nós ao declarar que devemos tornar-nos justos praticando atos justos e temperantes praticando atos temperantes; porque, se um homem pratica tais atos, é que já possui essas virtudes, exatamente como, se faz coisas concordes com as leis da gramática e da música, é que já é gramático e músico. Ou não será isto verdadeiro nem sequer das artes? Pode-se fazer uma coisa que esteja concorde com as leis da gramática, quer por acaso, quer por sugestão de outrem. Um homem, portanto, só é gramático quando faz algo pertencente à gramática e o faz gramaticalmente; e isto significa fazê-lo de acordo com os conhecimentos gramaticais que ele próprio possui. Sucede, por outro lado, que neste ponto não há similaridade de caso entre as artes e as virtudes, porque os produtos das primeiras têm a sua bondade própria, bastando que possuam determinado caráter; mas porque os atos que estão de acordo com as virtudes tenham determinado caráter, não se segue que sejam praticados de maneira justa ou temperante. Também é mister que o agente se encontre em determinada condição ao praticá-los: em primeiro lugar deve ter conhecimento do que faz; em segundo, deve escolher os atos, e escolhê-los por eles mesmos; e em terceiro, sua ação deve proceder de um caráter firme e imutável. Estas não são consideradas como condições para a posse das artes, salvo o simples conhecimento; mas como condição para a posse das virtudes o conhecimento pouco ou nenhum peso tem, ao passo que as outras condições — isto é, aquelas mesmas que resultam da prática amiudada de atos justos e temperantes — são, numa palavra, tudo. Por conseguinte, as ações são chamadas justas e temperantes quando são tais como as que praticaria o homem justo ou temperante; mas não é temperante o homem que as pratica, e sim o que as pratica tal como o fazem os justos e temperantes. É acertado, pois, dizer que pela prática de atos justos se gera o homem justo, e pela prática de atos temperantes, o homem temperante; sem essa prática, ninguém teria sequer a possibilidade de tornar-se bom. Mas a maioria das pessoas não procede assim. Refugiam-se na teoria e pensam que estão sendo filósofos e se tornarão bons dessa maneira. Nisto se portam, de certo modo, como enfermos que escutassem atentamente os seus médicos, mas não fizessem nada do que estes lhes prescrevessem. Assim como a saúde destes últimos não pode restabelecer-se com tal tratamento, a alma dos segundos não se tornará melhor com semelhante curso de filosofia. 5 Devemos considerar agora o que é a virtude. Visto que na alma se encontram três espécies de coisas — paixões, faculdades e disposições de caráter —, a virtude deve pertencer a uma destas. Por paixões entendo os apetites, a cólera, o medo, a audácia, á inveja, a alegria, a amizade, o ódio, o desejo, a emulação, a compaixão, e em geral os sentimentos que são acompanhados de prazer ou dor; por faculdades, as coisas em virtude das quais se diz que somos capazes de sentir tudo isso, ou seja, de nos irarmos, de magoar-nos ou compadecer-nos; por disposições de caráter, as coisas em virtude das quais nossa posição com referência às paixões é boa ou má. Por exemplo, com referência à cólera, nossa posição é má se a sentimos de modo violento ou demasiado fraco, e boa se a sentimos moderadamente; e da mesma forma no que se relaciona com as outras paixões. Ora, nem as virtudes nem os vícios são paixões, porque ninguém nos chama bons ou maus devido às nossas paixões, e sim devido às nossas virtudes ou vícios, e porque não somos louvados nem censurados por causa de nossas paixões (o homem que sente medo ou cólera não é louvado, nem é censurado o que simplesmente se encoleriza, mas sim o que se encoleriza de certo modo); mas pelas nossas virtudes e vícios somos efetivamente louvados e censurados. Por outro lado, sentimos cólera e medo sem nenhuma escolha de nossa parte, mas as virtudes são modalidades de escolha, ou envolvem escolha. Além disso, com respeito às paixões se diz que somos movidos, mas com respeito às virtudes e aos vícios não se diz que somos movidos, e sim que temos tal ou tal disposição. Por estas mesmas razões, também não são faculdades, porquanto ninguém nos chama bons ou maus, nem nos louva ou censura pela simples capacidade de sentir as paixões. Acresce que possuímos as faculdades por natureza, mas não nos tornamos bons ou maus por natureza. Já falamos disto acima23. Por conseguinte, se as virtudes não são paixões nem faculdades, só resta uma alternativa: a de que sejam disposições de caráter. Mostramos, assim, o que é a virtude com respeito ao seu gênero. 6 Não basta, contudo, definir a virtude como uma disposição de caráter; cumpre dizer que espécie de disposição é ela. Observemos, pois, que toda virtude ou excelência não só coloca em boa condição a coisa de que é a excelência como também faz com que a função dessa coisa seja bem desempenhada. Por exemplo, a excelência do olho torna bons tanto o olho como a sua função, pois é graças à excelência do olho que vemos bem. Analogamente, a excelência de um cavalo tanto o torna bom em si mesmo como bom na corrida, em carregar o seu cavaleiro e em aguardar de pé firme o ataque do inimigo. Portanto, se isto vale para todos os casos, a virtude do homem também será a disposição de caráter que o torna bom e que o faz desempenhar bem a sua função. 23 1103 a 18—1103 b 2. (N. do T.) Como isso vem a suceder, já o explicamos atrás24, mas a seguinte consideração da natureza especifica da virtude lançará nova luz sobre o assunto. Em tudo que é contínuo e divisível pode-se tomar mais, menos ou uma quantidade igual, e isso quer em termos da própria coisa, quer relativamente a nós; e o igual é um meio-termo entre o excesso e a falta. Por meio-termo no objeto entendo aquilo que é eqüidistante de ambos os extremos, e que é um só e o mesmo para todos os homens; e por meio-termo relativamente a nós, o que não é nem demasiado nem demasiadamente pouco — e este não é um só e o mesmo para todos. Por exemplo, se dez é demais e dois é pouco, seis é o meio-termo, considerado em função do objeto, porque excede e é excedido por uma quantidade igual; esse número é intermediário de acordo com uma proporção aritmética. Mas o meio-termo relativamente a nós não deve ser considerado assim: se dez libras é demais para uma determinada pessoa comer e duas libras é demasiadamente pouco, não se segue daí que o treinador prescreverá seis libras; porque isso também é, talvez, demasiado para a pessoa que deve comê-lo, ou demasiadamente pouco — demasiadamente pouco para Milo e demasiado para o atleta principiante. O mesmo se aplica à corrida e à luta. Assim, um mestre em qualquer arte evita o excesso e a falta, buscando o meio-termo e escolhendo-o — o meio-termo não no objeto, mas relativamente a nós. Se é assim, pois, que cada arte realiza bem o seu trabalho — tendo diante dos olhos o meio-termo e julgando suas obras por esse padrão; e por isso dizemos muitas vezes que às boas obras de arte não é possível tirar nem acrescentar nada, subentendendo que o excesso e a falta destroem a excelência dessas obras, enquanto o meio-termo a preserva; e para este, como dissemos, se voltam os artistas no seu trabalho —, e se, ademais disso, a virtude é mais exata e melhor que qualquer arte, como também o é a natureza, segue-se que a virtude deve ter o atributo de visar ao meio-termo. Refiro-me à virtude moral, pois é ela que diz respeito às paixões e ações, nas quais existe excesso, carência e um meio-termo. 24 1104 a 11-27. (N. do T.) Por exemplo, tanto o medo como a confiança, o apetite, a ira, a compaixão, e em geral o prazer e a dor, podem ser sentidos em excesso ou em grau insuficiente; e, num caso como no outro, isso é um mal. Mas senti-los na ocasião apropriada, com referência aos objetos apropriados, para com as pessoas apropriadas, pelo motivo e da maneira conveniente, nisso consistem o meio-termo e a excelência característicos da virtude. Analogamente, no que tange às ações também existe excesso, carência e um meio-termo. Ora, a virtude diz respeito às paixões e ações em que o excesso é uma forma de erro, assim como a carência, ao passo que o meio-termo é uma forma de acerto digna de louvor; e acertar e ser louvada são características da virtude. Em conclusão, a virtude é uma espécie de mediania, já que, como vimos, ela põe a sua mira no meio-termo. Por outro lado, é possível errar de muitos modos (pois o mal pertence à classe do ilimitado e o bem à do limitado, como supuseram os pitagóricos), mas só há um modo de acertar. Por isso, o primeiro é fácil e o segundo difícil — fácil errar a mira, difícil atingir o alvo. Pelas mesmas razões, o excesso e a falta são característicos do vício, e a mediania da virtude: Pois os homens são bons de um modo só, e maus de muitos modos25. A virtude é, pois, uma disposição de caráter relacionada com a escolha e consistente numa mediania, isto é, a mediania relativa a nós, a qual é determinada por um princípio racional próprio do homem dotado de sabedoria prática. E é um meio-termo entre dois vícios, um por excesso e outro por falta; pois que, enquanto os vícios ou vão muito longe ou ficam aquém do que é conveniente no tocante às ações e paixões, a virtude encontra e escolhe o meio-termo. E assim, no que toca à sua substância e à definição que lhe estabelece a essência, a virtude é uma mediania; com referência ao sumo bem e ao mais justo, é, porém, um extremo. Mas nem toda ação e paixão admite um meio-termo, pois algumas têm nomes que já de si mesmos implicam maldade, como o despeito, o despudor, a inveja, e, no campo das ações,, o adultério, o furto, o assassínio. Todas essas coisas 25 Ver Diehl, Elégeia adéspota (Elegias Anônimas) 16. e outras semelhantes implicam, nos próprios nomes, que são más em si mesmas, e não o seu excesso ou deficiência. Nelas jamais pode haver retidão, mas unicamente o erro. E, no que se refere a essas coisas, tampouco a bondade ou maldade dependem de cometer adultério com a mulher apropriada, na ocasião e da maneira convenientes, mas fazer simplesmente qualquer delas é um mal. Igualmente absurdo seria buscar um meio-termo, um excesso e uma falta em atos injustos, covardes ou libidinosos; porque assim haveria um meio-termo do excesso e da carência, um excesso de excesso e uma carência de carência. Mas, do mesmo modo que não existe excesso nem carência de temperança e de coragem, pois o que é intermediário também é, noutro sentido, um extremo, também das ações que mencionamos não há meio-termo, nem excesso, nem falta, porque, de qualquer forma que sejam praticadas, são más. Em suma, do excesso ou da falta não há meio-termo, como também não há excesso ou falta de meio-termo. 7 Não devemos, porém, contentar-nos com esta exposição geral; é mister aplicá-la também aos fatos individuais. Com efeito, das proposições relativas à conduta, as universais são mais vazias, mas as particulares são mais verdadeiras, porquanto a conduta versa sobre casos individuais e nossas proposições devem harmonizar-se com os fatos nesses casos. Podemos tomá-los no nosso quadro geral. Em relação aos sentimentos de medo e de confiança, a coragem é o meio-termo; dos que excedem, o que o faz no destemor não tem nome (muitas disposições não o têm), enquanto o que excede na audácia é temerário, e o que excede no medo e mostra falta de audácia é covarde. Com relação aos prazeres e dores — não todos, e menos no que tange às dores — o meio-termo é a temperança e o excesso é a intemperança. Pessoas deficientes no tocante aos prazeres não são muito encontradiças, e por este motivo não receberam nome; chamemo-las, porém, "insensíveis". No que se refere a dar e receber dinheiro o meio-termo é a liberalidade; o excesso e a deficiência, respectivamente, prodigalidade e avareza. Nesta espécie de ações as pessoas excedem e são deficientes de maneiras opostas: o pródigo excede no gastar e é deficiente no receber, enquanto o avaro excede no receber e é deficiente no gastar. (De momento, tudo que fazemos é dar um esboço ou sumário, e com isso nos contentamos; mais adiante essas disposições serão descritas com mais exatidão26). Ainda no que diz respeito ao dinheiro, existem outras disposições: um meiotermo, a magnificência (pois o homem magnificente difere do liberal; o primeiro lida com grandes quantias, o segundo com quantias pequenas); um excesso, a vulgaridade e o mau gosto; e uma deficiência, a mesquinhez; estas diferem das disposições contrárias à liberalidade, e mais tarde diremos em quê27. Com respeito à honra e à desonra, o meio-termo é o justo orgulho, o excesso é conhecido como uma espécie de "vaidade oca" e a deficiência como uma humildade indébita; e a mesma relação que apontamos entre a liberalidade e a magnificência, da qual a primeira difere por lidar com pequenas quantias, também se verifica aqui, pois há uma disposição que tem alguns pontos em comum com o justo orgulho, mas ocupa-se com pequenas honras, enquanto a este só interessam as grandes. Porque é possível desejar a honra como se deve, mais do que se deve e menos do que se deve, e o homem que excede em tais desejos é chamado ambicioso, o que fica aquém é desambicioso, enquanto a pessoa intermediária não tem nome. As disposições também não receberam nome, salvo a do ambicioso, que se chama ambição. Por isso, as pessoas que se encontram nos extremos arrogam-se a posição intermediária; e nós mesmos às vezes chamamos as pessoas intermediárias de ambiciosas e outras vezes de desambiciosas, e ora louvamos a primeira disposição, ora a segunda. A razão disso será dada mais adiante28; agora, porém, falemos sobre as demais disposições, de acordo com o método indicado. No tocante à cólera também há um excesso, uma falta e um meio-termo. Embora praticamente não tenham nomes, uma vez que chamamos calmo ao 26 Ver Livro IV, cap. 1. (N. do T.) 27 1122 a 20-29; 1122 b 10-18. (N. do T.) 28 118b 11-26; 1125 b 14-18. (N. do T.) homem intermediário, seja o meio-termo também a calma; e dos que se encontram nos extremos, chamemos irascível ao que excede e irascibilidade ao seu vício; e ao que fica aquém da justa medida chamemos pacato, e pacatez à sua deficiência. Há outros três meios-termos que diferem entre si, apesar de revelarem uma certa semelhança comum. Todos eles dizem respeito ao intercâmbio em atos e palavras, mas diferem no seguinte: um se relaciona com a verdade nessas esferas e os outros dois com o que é aprazível; e destes, um se manifesta em proporcionar divertimento e o outro em todas as circunstâncias da vida. É preciso, portanto, falar destes dois, a fim de melhor compreendermos que em todas as coisas o meiotermo é louvável e os extremos nem louváveis nem corretos, mas dignos de censura. Ora, a maioria dessas disposições também não receberam nomes, mas devemos esforçar-nos por inventá-los, para que a nossa exposição seja clara e fácil de acompanhar. No que toca à verdade, o intermediário é a pessoa verídica e ao meio-termo podemos chamar veracidade, enquanto a simulação que exagera é a jactância e a pessoa que se caracteriza por esse hábito é jactanciosa; e a que subestima é a falsa modéstia, a que corresponde a pessoa falsamente modesta. Quanto à aprazibilidade no proporcionar divertimento, a pessoa intermediária é espirituosa e ao meio-termo chamamos espírito; o excesso é a chocarrice, e a pessoa caracterizada por ele, um chocarreiro, enquanto a pessoa que mostra deficiência é uma espécie de rústico e a sua disposição é a rusticidade. Vejamos, finalmente, a terceira espécie de aprazibilidade, isto é, a que se manifesta na vida em geral. O homem que sabe agradar a todos da maneira devida é amável, e o meio-termo é a amabilidade, enquanto o que excede os limites é uma pessoa obsequiosa se não tem nenhum propósito determinado, um lisonjeiro se visa ao seu interesse próprio, e o homem que peca por deficiência e se mostra sempre desagradável é uma pessoa mal-humorada e rixenta. Também há meios-termos nas paixões e relativamente a elas, pois que a vergonha não é uma virtude, e não obstante louvamos os modestos. Mesmo nesses assuntos, diz-se que um homem é intermediário e um outro excede, como, por exemplo, o acanhado que se envergonha de tudo; enquanto o que mostra deficiência e não se envergonha de coisa alguma é um despudorado, e a pessoa intermediária é modesta. A justa indignação é um meio-termo entre a inveja e o despeito, e estas disposições se referem à dor e ao prazer que nos inspiram a boa ou má fortuna de nossos semelhantes. O homem que se caracteriza pela justa indignação confrangese com a má fortuna imerecida; o invejoso, que o ultrapassa, aflige-se com toda boa fortuna alheia; e o despeitado, longe de se afligir, chega ao ponto de rejubilar-se. Teremos oportunidade de descrever alhures estas disposições29. Quanto à justiça, como o significado deste termo não é simples, após descrever as outras disposições distinguiremos nele duas espécies e mostraremos em que sentido cada uma delas é um meio-termo; e trataremos do mesmo modo as virtudes racionais. 8 Existem, pois, três espécies de disposições, sendo duas delas vícios que envolvem excesso e carência respectivamente, e a terceira uma virtude, isto é, o meio-termo. E em certo sentido cada uma delas se opõe às outras duas, pois que cada disposição extrema é contrária tanto ao meio-termo como ao outro extremo, e o meio-termo é contrário a ambos os extremos: assim como o igual é maior relativamente ao menor e menor relativamente ao maior, também os estados medianos são excessivos em confronto com as deficiências e deficientes quando comparados com os excessos, tanto nas paixões como nas ações. Com efeito, o bravo parece temerário em relação ao covarde, e covarde em relação ao temerário; e, da mesma forma, o temperante parece um voluptuoso em relação ao insensível e insensível em relação ao voluptuoso, e o liberal parece pródigo em confronto com o avaro e avaro em confronto com o pródigo. Por isso as pessoas que se encontram nos extremos empurram uma para a outra a intermediária: o homem 29 O lugar é incerto; talvez Livro III, cap. 6 — Livro IV, cap. 9, onde se trata das virtudes morais em conjunto, ou talvez Livro IV, cap. 9, onde se discute a vergonha. (N. do T.) bravo é chamado de temerário pelo covarde e covarde pelo temerário, e analogamente nos outros casos. Opostas como são umas às outras essas disposições, a maior contrariedade é a que se observa entre os extremos, e não destes para com o meio-termo; porquanto os extremos estão mais longe um do outro que do meio-termo, assim como o grande está mais longe do pequeno e o pequeno do grande, do que ambos estão do igual. Por outro lado, alguns extremos mostram certa semelhança com o meiotermo, como a temeridade com a coragem e a prodigalidade com a liberalidade. Os extremos, porém, mostram a maior disparidade entre si; ora, os contrários são definidos como as coisas que mais se afastam uma da outra, de modo que as coisas mais afastadas entre si são mais contrárias. Ao meio-termo, o mais contrário às vezes é a deficiência, outras vezes o excesso. Por exemplo, não é a temeridade, que representa um excesso, mas a covardia, uma deficiência, que mais se opõe à coragem; mas no caso da temperança, o que mais se lhe opõe é a intemperança, um excesso. Isso se deve a dois motivos, um dos quais reside na própria coisa: pelo fato de um dos extremos estar mais próximo do meio-termo e assemelhar-se mais a ele, não opomos ao meio-termo esse extremo, e sim o seu contrário. Por exemplo, como a temeridade é considerada mais semelhante à coragem e mais próxima desta, e a covardia mais dessemelhante, é este último extremo que costumamos opor ao meio-termo; porquanto as coisas que mais se afastam do meio-termo são consideradas como mais contrárias a ele. Esta é, pois, a causa inerente à própria coisa. A outra reside em nós mesmos, pois aquilo para que mais tendemos por natureza nos parece mais contrário ao meio-termo. Por exemplo, nós próprios tendemos mais naturalmente para os prazeres, e por isso somos mais facilmente levados à intemperança do que à contenção. Daí dizermos mais contrários ao meio-termo aqueles extremos a que nos deixamos arrastar com mais freqüência; e por isso a intemperança, que é um excesso, é mais contrária à temperança. 9 Está, pois, suficientemente esclarecido que a virtude moral é um meio-termo, e em que sentido devemos entender esta expressão; e que é um meio-termo entre dois vícios, um dos quais envolve excesso e o outro deficiência, e isso porque a sua natureza é visar à mediania nas paixões e nos atos. Do que acabamos de dizer segue-se que não é fácil ser bom, pois em todas as coisas é difícil encontrar o meio-termo. Por exemplo, encontrar o meio de um círculo não é para qualquer um, mas só para aquele que sabe fazê-lo; e, do mesmo modo, qualquer um pode encolerizar-se, dar ou gastar dinheiro — isso é fácil; mas fazê-lo à pessoa que convém, na medida, na ocasião, pelo motivo e da maneira que convém, eis o que não é para qualquer um face do prazer é, portanto, a dos anciãos do povo para com Helena, e em todas as circunstâncias cumpre-nos dizer o mesmo que eles; porque, se não dermos ouvidos ao prazer, correremos menos perigo de errar. Em resumo, é procedendo dessa forma que teremos mais probabilidades de acertar com o meio-termo. Não há negar, porém, que isso seja difícil, especialmente nos casos particulares: pois quem poderá determinar com precisão de que modo, com quem, em resposta a que provocação e durante quanto tempo devemos encolerizarnos? E às vezes louvamos os que ficam aquém da medida, qualificando-os de calmos, e outras vezes louvamos os que se encolerizam, chamando-os de varonis. Não se censura, contudo, o homem que se desvia um pouco da bondade, quer no sentido do menos, quer do mais; só merece reproche o homem cujo desvio é maior, pois esse nunca passa despercebido. Mas até que ponto um homem pode desviar-se sem merecer censura? Isso não é fácil de determinar pelo raciocínio, como tudo que seja percebido pelos sentidos; tais coisas dependem de circunstâncias particulares, e quem decide é a percepção. Fica bem claro, pois, que em todas as coisas o meio-termo é digno de ser louvado, mas que às vezes devemos inclinar-nos para o excesso e outras vezes para a deficiência. Efetivamente, essa é a maneira mais fácil de atingir o meio-termo e o que é certo.

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