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Terra Papagalii

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Por:   •  29/8/2014  •  2.057 Palavras (9 Páginas)  •  483 Visualizações

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Houve um tempo em que as naus desbravavam mares, delas avistavam-se terras desconhecidas e nelas lavravam-se autos de posse de tais terras. A obra ficcional objeto deste artigo passa-se nesse tempo, mas não ignora um outro tempo, em que naus são reconstruídas, mas não cumprem sequer seu papel festivo: navegar em mares bem menos inóspitos, com rumo e riscos previamente calculados.

Terra Papagalli, escrito em co-autoria por José Roberto Torero e Marcus Aurélius Pimenta e publicado em 1997 é uma obra ficcional que se movimenta e se constrói em meio às lacunas deixadas pela História oficial a respeito de um dos períodos menos documentados e mais controversos da História do Brasil: o descobrimento e as três primeiras décadas que o sucederam. É necessário ressaltar, contudo, que o fato a que se remete a ficção não é apenas aquele que foi documentado pelos cronistas e relatado pelos historiadores do século passado: é também o fato visto a partir do ponto de vista do presente, é o descobrimento do Brasil colocado em pauta hoje, próximo às comemorações dos 500 anos.

Dessa forma, a leitura de Terra Papagalli (TORERO & PIMENTA: 1997) coloca-nos diante do passado e do presente, das portentosas esquadras lusitanas e da malfadada réplica da nau capitânea, construída para os festejos dos 500 anos de descobrimento do Brasil. O jogo temporal que perpassa toda a obra é apreendido pelo leitor graças aos expedientes da dissimulação irônica, que sugerem que o passado, aquele da diegese, se parece em muito com o presente, este da leitura.

A apreensão do enunciado irônico requer do leitor, em primeiro lugar, disposição para ler dois ou mais significados, simultaneamente, sem desprezar nenhum, ao mesmo tempo que apreende um terceiro, resultante do atrito desses dois, o qual chamamos, efetivamente, de significado irônico. Para observar de que maneira o atrito entre diferentes significados resulta na construção da ironia, podemos analisar o título da obra, Terra Papagalli. Nele, essa convergência de significados relaciona-se tanto com a sua expressão em língua latina quanto com a sua transposição para o português.

Sabe-se que o conhecimento do latim foi, durante muito tempo, sinal conotador de cultura, já que os poucos letrados - religiosos e alguns representantes da nobreza - tinham a educação humanística pautada nos textos latinos. Com o passar do tempo e com a popularização da educação, o latim acabou tornando-se ornamento discursivo, ou seja, passou a ser instrumento para representar uma certa erudição, mesmo que forjada.

O título em latim da obra é o título dado pelo personagem principal, Cosme Fernandes, à carta biográfica que ele escreve ao seu filho, Conde de Ourique. O título contrasta com o teor da própria carta e, mesmo, com o feitio do escritor, cujo conhecimento da língua resumia-se às colas ocultadas no capuz, à época em que estava no seminário. Esse contraste evidencia o desejo de Cosme de atribuir importância aos seus escritos.

No entanto, a utilização dessa língua coloca em funcionamento um outro significado, além daquele ligado à ostentação de um certo lastro cultural. Podemos, de acordo com o que afirma Beth Brait, encarar a expressão do título em latim como uma “forma de recuperação do já-dito” com objetivo irônico. De acordo com a autora, tais formas

É necessário observar, sob risco de não colocar a ironia em funcionamento, que ao utilizar esse expediente - o de promover uma valorização forçada do discurso pelo emprego do latim - promove-se uma avaliação crítica desse tipo de expediente e dos discursos que dele se utilizaram.

Todos esses significados irônicos, que são colocados em funcionamento pelo uso da língua latina no título, aliam-se ao tom satírico da obra quando se percebe que o enunciado em questão (Terra Papagalli) é escrito, na verdade, numa espécie de “falso latim”. “Terra dos Papagaios” equivaleria à expressão latina “terra pappagallorum”, já que o caso genitivo plural é construído por meio da desinência “-orum” (a desinência “-i” acusa a construção do genitivo singular: terra do papagaio).

O personagem-narrador propagandeia seus falsos dotes intelectuais por meio de um expediente que, por sua vez, também é forjado. A utilização das conhecidas terminações latinas, que caracterizam as declinações típicas da língua cumprem o papel de enganar os incautos.

A transposição do título para o português coloca em pauta um outro tipo de reflexão por parte do leitor. A primeira pergunta a fazer é: por que Terra dos Papagaios1? Se a abundância, verificada pelo narrador, dessas aves na terra recém-aportada pode legitimar o título, a abundância de outros animais, insetos, plantas, também poderia. O Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa traz, no verbete “papagaio”, além das esperadas definições zoológicas, o seguinte: “pessoa que repete o que ouviu ou leu sem entender o sentido” (FERREIRA: 1986, p. 1259). Esse sinônimo admitido pelo dicionário colocará em funcionamento uma ironia que, mais uma vez, exigirá do leitor a disposição de apreender diversos significados, estendidos, também, para além da obra.

O vocábulo papagaio passará a evocar, então, sentidos relacionados à nossa história de colonização, dependentes e submissos economicamente e legalmente da Coroa Portuguesa durante três séculos. No entanto, esse sentido não fica restrito ao período colonial. A reiterada estratégia da obra de oscilar entre o dito sobre o passado e o dissimulado sobre o presente, autoriza que o leitor estenda o significado pessoas que repetem tudo sem pensar ou entender à nossa situação atual, em que importamos dos países desenvolvidos, sobretudo dos Estados Unidos, o que vemos na TV e no cinema, o que ouvimos no rádio, as roupas que vestimos e, até mesmo, muitas das palavras que falamos.

Observe-se que o funcionamento do significado irônico proposto acima depende não somente da transposição do título latino para o português, mas da apreensão, por parte do leitor, dos contextos2 que envolvem esse título e o seu equivalente em português.

Um outro excerto da obra também evidencia o que acima discutimos a respeito da dissimulação irônica que, em Terra Papagalli, constrói um movimento temporal pendular caracterizado pela alternância entre o dito sobre o passado e o subentendido sobre o presente:

É necessário ressaltar que esse “mandamento” é o primeiro de uma série de dez - o que nos remete, imediatamente, ao decálogo de Moisés - que o personagem Cosme Fernandes entremeia à narrativa de suas aventuras, para orientar

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