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Filosofia

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Por:   •  11/11/2012  •  2.397 Palavras (10 Páginas)  •  1.212 Visualizações

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O SOCIAL E O POLÍTICO NA TRANSIÇÃO PÓS-MODERNA (Texto 06)

SANTOS, Boaventura Sousa de. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 2005. p.p. 75 a 114.

O século XX ficará na história (ou nas histórias) como um século infeliz. Alimentado e treinado pelo pai e pela mãe, o andrógino século XIX, para ser um século-prodígio, revelou-se um jovem frágil, dado às maleitas e aos azares. Aos catorze anos teve uma doença grave que, tal como a tuberculose e a sífilis de então, demorou a curar e deixou para sempre um relógio. E tanto que aos trinta e nove anos teve uma fortíssima recaída que o privou de gozar a pujança própria da meia idade. Apesar de dado por clinicamente curado seis anos depois, tem tido desde então uma saúde precária e muitos temem uma terceira recaída, certamente mortal. Uma tal história clínica tem-nos vindo a convencer — a nós cuja inocência está garantida por não termos escolhido nascer neste século, — que, em vez de um século-prodígio, nos coube um século idiota, dependente dos pais, incapaz de montar casa própria e ter uma vida autônoma.

Muito mais pacientemente que Saint-Simon — para quem em 1819 começava já a ser demasiado tarde para o século XIX se libertar da herança do século XVIII e assumir a sua especificidade (1977: 212) — temos vindo a esperar pelo sentido do século XX. Num livro, precisamente intitulado The Meaning of the Twentieth Century, Kenneth Boulding caracteriza muito vagamente o nosso século como um período intermédio da segunda grande transição na história da humanidade (1964: 1). E, mais recentemente, Ernest Gellner lamenta-se que a concepção de história própria do nosso século "não tenha sido ainda formulada filosoficamente de modo adequado" (1986: 93). Eu próprio escrevi que o século XX corria o risco de não começar nunca ou, em todo o caso, de não começar antes de terminar (Santos, 1987a: 6). Com outras palavras e metáforas a mesma convicção ou preocupação tem estado presente, consciente ou inconscientemente, nos muitos balanços do século que, um pouco por toda a parte, se tem vindo a fazer. Não admira, pois, que muitos desses balanços tenham sido em verdade balanços do século XIX e não balanços do século XX como proclamam.

Mas como, ao contrário do que queria Hegel, a história está para a razão como a astúcia está para a esperteza saloia, têm-se vindo a acumular em tempos recentes sinais de que esta biografia do século está provavelmente incompleta e de que, portanto, os balanços e os enterros foram quiçá prematuros.

Apropriando para si uma condição social que tornou possível para todos nós, o século XX parece estar disposto a gozar a terceira idade em plena atividade e, mais do que isso, a desfazer, entre o sonho e o pesadelo, as verdades que se tinham por feitas a seu respeito. Qual é, no entanto, o significado real dos sinais que nos tem vindo a dar ultimamente nesse sentido? Representarão uma adequada e atempada consciência da urgência das missões que lhe cabem no pouco tempo que lhe resta ou serão, pelo contrário, a expressão desesperada de “um sentimento de ter chegado demasiado tarde” que, segundo Harold Bloom (1973 e 1988), atormenta a cultura contemporânea e, sobretudo a poesia contemporânea? Admito que se trate da primeira hipótese e, neste caso, a questão que se põe é se o século XX terá ainda tempo para refazer, a partir dos estilhaços em que agora se compraz, o que, doutro modo, terá de ser feito pelo século XXI. Apesar de o nosso século mais um dos seus feitos ambíguos e surpreendentes — ter transformado o tempo em falta de tempo, a minha resposta é que admito que sim. É o que procurarei demonstrar a seguir, com uma certa dose de optimismo trágico que colho de Heidegger.

Este capítulo consta de três partes. Na primeira parte descreverei o perfil de um novo paradigma sócio-cultural e apresentarei as condições sociais da sua emergência nas sociedades capitalistas. Na segunda parte, tentarei definir os limites e as possibilidades de um tal paradigma emergente nas condições sociais de uma sociedade dependente, semi-periférica, como é a portuguesa. Na terceira parte, procurarei determinar algumas das conseqüências do novo paradigma no domínio das práticas políticas. Cada parte inicia-se pela apresentação de uma tese principal a que se segue o desenvolvimento analítico que a justifica.

O moderno e o pós-moderno nos países capitalistas centrais

A tese principal desta primeira parte é a seguinte: O paradigma cultural da modernidade constituiu-se antes de o modo de produção capitalista se ter tornado dominante e extinguir-se-á antes de este último deixar de ser dominante. A sua extinção é complexa porque é em parte um processo de superação e em pane um processo de obsolescência. É superação na medida em que a modernidade cumpriu algumas das suas promessas e, de resto, cumpriu-as em excesso. É obsolescência na medida em que a modernidade está irremediavel¬mente incapacitada de cumprir outras das suas promessas. Tanto o excesso no cumprimento de algumas das promessas como o déficit no cumprimento de outras são responsáveis pela situação presente, que se apresenta superficialmente como de vazio ou de crise, mas que é, a nível mais profundo, uma situação de transição. Como todas as transições são simultaneamente semi-cegas e semi-invisíveis, não é possível nomear adequadamente a presente situação. Por esta razão lhe tem sido dado o nome inadequado de pós-modernidade. Mas, à falta de melhor, é um nome autêntico na sua inadequação.

Passo agora a justificar os vários momentos desta tese. O projeto sócio-cultural da modernidade é um projeto muito rico, capaz de infinitas possibilidades e, como tal, muito complexo e sujeito a desenvolvimentos contraditórios. Assenta em dois pilares fundamentais, o pilar da regulação e o pilar da emancipação. São pilares, eles próprios, complexos, cada um constituído por três princípios. O pilar da regulação é constituído pelo princípio do Estado, cuja articulação se deve principalmente a Hobbes; pelo princípio do mercado, dominante, sobretudo na obra de Locke; e pelo princípio da comunidade, cuja formulação domina toda a filosofia política de Rousseau. Por sua vez, o pilar da emancipação é constituído por três lógicas de racionalidade: a racionalidade estético-expressiva da arte e da literatura; a racionalidade moral-prática da ética e do direito; e a racionalidade cognitivo-instrumental da ciência e da técnica. Como em qualquer outra construção, estes dois pilares e seus respectivos princípios ou lógicas estão ligados

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