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A Invenção Da Cultura

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Por:   •  27/1/2014  •  7.089 Palavras (29 Páginas)  •  193 Visualizações

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A INVENÇÃO DA CULTURA

de Roy Wagner. Trad. Marcela Coelho de Souza e Alexandre Morales. São Paulo: Cosac Naify, 2010. 253 pp.

Há três modos de abordar A invenção da cultura: enfatizar a originalidade quase absoluta do livro, seu caráter intempestivo; inventariar suas dívidas para com os autores a ele contemporâneos ou para com aqueles de um passado recente ou remoto; tentar, enfim, um equilíbrio judicioso entre a primeira e a segunda opções. Por diversas razões escolhi deliberadamente a primeira alternativa.

Deste ponto de vista, poderíamos observar inicialmente que a primeira edição de A invenção da cultura, em 1975, é quase simultânea a de dois outros livros de antropólogos norte-americanos que marcaram a antropologia contemporânea: A interpretação das culturas, de Clifford Geertz, e Cultura e razão prática, de Marshall Sahlins - publicados, respectivamente, em 1973 e 1976. O destino desses três livros, contudo, continua sendo muito diferente. Afinal, os dois últimos conheceram uma difusão e um sucesso que o primeiro mal começa a experimentar e que dificilmente terá em grau comparável. No Brasil, por exemplo, o livro de Geertz foi traduzido, ainda que parcialmente, em 1978, e o de Sahlins em 19791. E até hoje é raro encontrar um programa de curso de teoria antropológica que não os inclua na bibliografia.

A invenção da cultura, por outro lado, teve que esperar 35 anos para receber sua tradução, em ótima iniciativa da editora Cosac Naify e belo trabalho de tradução de Marcela Coelho de Souza e Alexandre Morales. Com efeito, é quase inevitável especular sobre qual teria sido o destino da antropologia brasileira se o livro de Wagner tivesse sido traduzido ainda na década de 1970 e os outros dois não. Talvez não estivéssemos ensinando uma antropologia tão afastada do que efetivamente se faz na disciplina hoje em dia; talvez tivéssemos resistido melhor ao imperialismo das análises construcionistas ou desconstrucionistas que apelam para o eterno poder e as inevitáveis manipulações ocultas atrás de qualquer situação; talvez nada tivesse acontecido... De toda forma, o que não é fácil imaginar é a tradução dos livros de Geertz e Sahlins 35 anos depois de terem sido originalmente publicados.

A "mensagem" desses livros parece tão adaptada ao momento em que foram escritos que é difícil concebê-los em outro contexto qualquer. Afinal, nos dois casos se tratava, em breves palavras, de salvar o culturalismo daquilo que sempre foi o que poderíamos chamar seu melhor inimigo, a saber, o reducionismo naturalista. Ou seja, aquilo sem o que a antropologia cultural simplesmente não pode funcionar, na medida em que lhe faltaria esse seu "outro", aquele que define, equivocadamente sem dúvida, o que a cultura elabora, interpreta, simboliza ou transcende - a natureza.

Observemos também, ainda que de passagem, que esse naturalismo se apresentava, tanto a Geertz como a Sahlins, sob uma dupla forma. De um lado, as antropologias ditas ecológicas ou materialistas, que ambos simplesmente recusam; de outro, uma versão muito mais complicada, sofisticada e, talvez, inesperada, o estruturalismo levistraussiano. Afinal, apenas dois anos antes da publicação do livro de Geertz, Lévi-Strauss havia concluído sua mitológica tetralogia - em que a demonstração da incrível sofisticação de que era capaz o pensamento indígena parecia anular qualquer possibilidade de redução - com um livro significativamente intitulado O homem nu, que conclui com a peremptória afirmativa de que, no final das contas, tudo não passa do produto da atividade do cérebro humano, ele mesmo produto de um complexo processo de evolução natural: higher naturalism2, como definiu Sahlins; hypermodern intellectualism, nas palavras de Geertz3. Mas, se Geertz parece simplesmente recusar a alternativa levistraussiana buscando refúgio numa hermenêutica que invariavelmente funciona como saída sofisticada para os que não gostam da noção de estrutura, a reação de Sahlins é diferente. Oriundo, ele próprio, de uma tradição antropológica materialista e neoevolucionista, um estágio em Paris o fez imaginar a possibilidade de, por assim dizer, embutir o estruturalismo no culturalismo, fazendo das "estruturas da mente" os "instrumentos da cultura", não sua "condição"4, e da própria estrutura apenas uma parte da cultura e da história.

O livro de Wagner segue um caminho bem diferente, seja em relação ao interpretativismo geertziano, seja em face do culturalismo estruturalizado de Sahlins. Tão diferente que podemos ter hoje a sensação de que não são apenas um ou dois anos para mais ou para menos que separam A invenção da cultura desses dois outros livros, mas algo como meio século! De fato, se A interpretação das culturas e Cultura e razão prática soam hoje como anúncio do fim (no duplo sentido de acabamento e de término) de uma antropologia fin de siècle (século XX), A Invenção da cultura parece anunciar o início de outra coisa, que poderíamos imaginar como uma das possibilidades abertas para a antropologia do século XXI.

A esse respeito, talvez valha a pena observar que os leitmotifs centrais das obras de Geertz e Sahlins - a interpretação e a simbolização, respectivamente - não deixam de ser evocados por Wagner, ainda que para preparar outras reflexões. Assim, desde o início do livro, a "interpretação" aparece na forma da "moderna cultura interpretativa americana" (p. 10), tema que será desenvolvido no item "A magia da propaganda" (pp. 107-19) do capítulo 3 de modo evidentemente bem distinto daquele de Geertz. Pois aquilo que este trata como um dispositivo metodológico que apenas prolonga e torna mais sofisticado um procedimento inerente a qualquer cultura humana (a "interpretação", justamente) será analisado por Wagner como uma singularidade de uma cultura particular, a "norte-americana". Em termos mais precisos, pode bem ser que a interpretação seja um modo universal de lidar com o mundo e com a sociedade, mas o problema é que essa generalidade não nos diz nada sobre seu funcionamento em situações concretas e específicas. Isso significa, claro, que ela pode perfeitamente operar de acordo com a mecânica básica dos dispositivos chamados etnocêntricos: implementar como universal aquilo que é uma característica particular da cultura do próprio antropólogo. Neste caso, como insiste Wagner, tentando tornar cada vez mais transparente o caráter convencional da cultura em que vivemos. Ou, o que dá no mesmo, fomentando o desejo de nos tornarmos autoconscientes daquilo que, não obstante, sustentamos que nos determina.

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