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Anel de Giges

Por:   •  22/5/2017  •  Dissertação  •  4.469 Palavras (18 Páginas)  •  1.129 Visualizações

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O ANEL DE GIGES

One Ring to rule them all,
One Ring to find them,
One Ring to bring them all,
And in the darkness bind them.

Do conto “Of the rings of power and the Third Agede J. R. R. Tolkien. 

        Platão (428-348 AC) começa A República contando-nos de um encontro entre Sócrates (469-399 AC) e alguns de seus discípulos, dentre os quais os irmãos mais velhos de Platão, Gláucon e Adimanto. Eles se encontram na casa de Polemarco, filho de Céfalo, um comerciante grego nascido na cidade italiana de Siracusa. Na casa estavam, além de Céfalo, outros dois filhos, Lísias e Eutidemo, os quais se encontravam reunidos junto a outros convidados com Trasímaco da Calcedônia (459-400 AC), um dos mais famosos e importantes sofistas. Sócrates inicialmente conversa com o velho Céfalo, querendo saber dele sobre como sente o chegar da velhice. A conversa com Céfalo, inicialmente sobre o valor da moderação, acaba dando luz à afirmação de Sócrates de que aquele que tem consciência de não ter cometido injustiças tem a seu lado a “doce esperança”, a boa nutriz da velhice, uma expressão que Sócrates extrai do poeta Píndaro. Logo a conversa se transforma numa discussão sobre a virtude da justiça. O que acaba incomodando Trasímaco, que até então assistia inquieto, porém, calado.

        Sócrates e Trasímaco representam no diálogo duas visões contrárias não somente sobre o significado de ‘justiça’. Suas opiniões também representam duas visões rivais sobre um dos mais importantes temas da ética: a importância da realidade na vida do agente moral. Trata-se de dois tipos adversários de “realismo”. De um lado, o tipo de realismo filosófico que Sócrates encarna e que será seguido por boa parte da tradição filosófica; de outro, o tipo de realismo (que chamarei de “realismo pragmático”) defendido pelos sofistas e também pelo historiador Tucídides (460-395 AC), autor do clássico A guerra do Peloponeso.

A disputa entre esses dois tipos de “realismos” atravessa os vários troncos principais da Filosofia (a metafísica, a epistemologia e a ética); mas aqui interessa-nos apenas sua expressão na ética. Por que deveríamos nos importar com a verdade? Que diferença isso faz? A disputa torna-se radical quando se trata de pensar sobre o que consideramos importante, do ponto de vista moral. Afinal, o que é mais importante: ser ou apenas parecer ser bom?

        No diálogo, Trasímaco representa o apelo ao tipo de realismo (um realismo raso e pragmático), segundo o qual o que importa não é ser de fato bom ou justo, mas apenas e tão somente parecer sê-lo. Ele aparece depois que Sócrates expõe como insustentável a opinião de que é justo ajudar os amigos e prejudicar os inimigos. Sócrates argumenta que a justiça não poderia variar conforme nossas preferências ou idiossincrasias, a não ser que estejamos dando à justiça o mesmo tratamento que lhe deram tiranos famosos, como Periandro (o cruel tirano de Corinto), Pérdicas, rei da Macedônia (famoso por não respeitar tratados), Xerxes, rei da Pérsia (cuja ambição teria excedido limites), e Ismênias, o Tebano (a quem Xerxes corrompeu com dinheiro para que lutasse contra seus próprios compatriotas). Para Trasímaco, entretanto, essa opinião não passa de “conversa fiada”, de “bom-mocismo” hipócrita – e nisso consiste seu “realismo”. A realidade das coisas, segundo Trasímaco, é completamente outra: na vida real, é preciso não se deixar enganar por especulações quando o que realmente importa é o modo como percebemos e sentimos as coisas, já que é disso, em essência de que somos “feitos”, isto é, de percepções, sensações, paixões e motivações anímicas.

        Para mostrar mais claramente a divergência, vejamos a engenhosa versão apresentada por Gláucon, no início do livro II (isso depois de Trasímaco ter-se retirado da discussão), em favor da tese de que o que realmente somos não importa, e sim como parecemos ser:

O anel de Giges. Perceberíamos melhor que quem pratica a justiça só a pratica de má vontade, por incapacidade de cometer injustiça, se imaginássemos algo como isso. Deixaríamos que aos dois, ao justo e ao injusto, fosse permitido fazer o que quisessem; depois iríamos atrás deles observando para onde a paixão conduziria cada um. Em flagrante apanharíamos o homem justo a buscar o mesmo alvo que o injusto, por causa da ambição de possuir sempre mais, ambição que toda natureza busca como um bem e da qual, à força, a lei a desvia para levá-la ao respeito da equidade. A permissão de que falo seriam mais ou menos a que teriam, se tivessem o poder que, segundo dizem, teve um dia Giges, antepassado do Lídio. Ele era um pastor que servia o então governante da Lídia. Tendo havido grande chuva e terremoto, o solo rachou e formou-se uma grande fenda no local onde Giges pastoreava. Espantado com o espetáculo, desceu e viu, além de outras coisas espantosas que o mito menciona, um cavalo de bronze que era oco e tinha pequenas portas. Espiando através delas, viu lá dentro um cadáver cujo tamanho, ao que parecia, era maior que o de um ser humano e estava nu, mas tinha na mão um anel de ouro. Ele pegou o anel e foi embora. Quando houve a assembleia habitual dos pastores para que dessem ao rei as notícias relativas ao rebanho, para lá foi ele com seu anel. Então, quando estava sentado junto com os outros, aconteceu que ele fez o engaste do anel girar, passando-o do lado de fora para a palma de sua mão. Feito isso, Giges ficou invisível para os que estavam a seu lado e dele falavam como se não estivessem mais lá. Ficou espantado e, de novo, tocando o anel, girou o engaste para o lado de fora e, depois de girá-lo, tornou-se visível. Notando isso, tentou ver se era o anel que tinha esse poder, e o que lhe aconteceu foi que, se ele girava o engaste para a palma da mão, ficava invisível, se para o lado de fora, visível. Tendo percebido isso, imediatamente tratou de ser um dos mensageiros que iriam até o rei. Lá chegando, seduziu a mulher do rei e junto com ele atacou-o e, depois de matá-lo, assumiu o governo.

        Uma história certamente fantástica essa de Gláucon. Mas, como muitas histórias criadas por filósofos, seu objetivo é enriquecer certa linha de argumentação. O ponto a que Gláucon pretende chegar é o seguinte:

Se, portanto, houvesse dois anéis como esse e um deles o homem justo colocasse em seu dedo, e o outro o injusto, não haveria ninguém tão pertinaz que perseverasse na justiça e fosse tão resistente que se mantivesse longe dos bens alheios e neles não tocasse, estando livre para, sem nada temer, tomar o que quisesse no mercado, entrar nas casas e aí conviver com quem quisesse, matar e livrar dos grilhões quem quisesse e fazer tudo o mais, já que, entre os homens, seria igual a um deus. Agindo assim, nada faria de diferente do outro, mas, ao contrário, ambos percorreriam o mesmo caminho. Ora, diria alguém, isso é indício de que ninguém é justo de bom grado, mas sob coerção, já que para ele pessoalmente isso não é um bem, já que cada um, quando crê que será capaz de cometer injustiça, comete.

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