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O Rosto da Página

Por:   •  2/6/2018  •  Seminário  •  2.538 Palavras (11 Páginas)  •  191 Visualizações

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O rosto da página

        Por favor, faça de mim só seu personagem... Que eu quero pausar a vírgula, finalizar o ponto, invadir esse enredo, vagando oblíquo as reticências do seu criar... Quero caber no estreito das linhas para abrir os espaços, aqueles tantos a que a sua mão imaginária me levar. Que essa servidão voluntária é minha quimera, você suserano, eu vassalo nos feudos longínquos de seu cavalgar. Que se eu não for seu personagem corro o risco de me perder de vista, já que andarei meus passos vendados, cegos de vida, amorfo, indiferente e apático por aí...

        Então, derrama esse vinho tinto na minha água insípida, inodora, incolor. Faz tremer a terra nas pedras regularmente exatas de meu chão. Que eu pise além de banalidades, uma grama de nuvens, um vácuo de estrelas, uns cacos de flores, onde quer que eu vá... Dá-me um destino incerto, que lhe escapem das mãos, as rédeas, na loucura sã dos labirintos de seu pensar. Que eu não seja pena, mas pluma; que eu seja um pranto risonho; que eu seja o sexo de todos os anjos e demônios, habitando as profundas reentrâncias, dos corpos dos sonhos... Dá-me a chave de suas portas, a senha de seus segredos, faz comigo o íntimo pacto de seiva, da estranha e singular simbiose que só as plantas epífitas conhecem, quando se enroscam ardentes, intrometendo-se verdes na virgem rigidez dos troncos.

        Por favor, vem me vestir de sol e de lua, que eu já não suporto mais a nudez da minha própria pele... Que como seu personagem, posso ter todas as peles do mundo, sabendo na carne a dor dos preconceitos de raça, credo e cor. Que eu preciso ser dilacerado, com as guerras dos mapas, virar bombas e átomos das rosas do terror, fugir dos holocaustos, subterrâneos hediondos e escravos-navios acorrentados nas galés, pra me investir da condição de gente, carne osso desespero e morte, na alienante insensatez do “e daí ???”

        Me faça com seu suor, mas com a labuta de seu prazer, que como  personagem estou a favor, ora do contra, ora a seu mister...

Ata-me, por fim, às rodas emotivas do engenho-açúcar de seu coração. Que por mais que eu pene, na transfiguração do barro que você moldar, na fusão do ferro que você forjar, na sua página, eu quero ter o rosto de todos os rostos que só a sua humanidade frágil será capaz de capturar.          

Página sem rosto

        Por favor, não me faça só seu personagem... Eu não quero fazer parte de nenhuma trama. Não me prenda em sua sombria urdidura...

        Por favor me ponha ao sol, que eu só quero ser... Não me transfigure, nem me mortifique, não me idealize, não me submeta à gaveta-masmorra arbitrária e tirânica de seus absolutos papéis.

        Eu vim à sua luz apenas para ser visto... Minha vida esbarrou na sua apenas para ser vida, pássaro, pedra, bicho, vegetal. Não me peça vôos mirabolantes que eu não sei dar cambalhotas no ar, nem passear em estrelas, não sei amar à distância... Minha persona é urgência, um fogo-ternuras na combustão da carne.

        Por favor, restitua-me às ruas de asfalto errante, aos trilhos solitários e esquecidos de trens que já não passam mais. Que se eu for só seu personagem, terei que ir a tantos lugares, tantas outras ruas de países tão distantes que corro o risco de não voltar... Me deixa então ir caminhando a seu lado, distraído. Faz de conta que eu nem existo, para que você não sucumba à tentação de me inventar. Que se eu for só seu personagem, terei que morrer minha frágil asa borboleta na ponta do alfinete de uma página qualquer... E ao pensar que me faz nascer, orgulhoso da onipotente criação, está em verdade aprisionando no casulo o que precisa voar...

        Por favor não me imagine tanto, não me faça sempre dissimular o que vejo, sinto ou falo, para me tornar complexo, contraditório porque há pessoas simples e descomplicadas que são bonitas assim como são.

        Não tinja o meu cabelo, nem troque minha roupa, não me faça gordo ou magro, bom ou mal, apenas para deleitar esse seu prazer egoísta de me ter em suas mãos. Que eu não quero ser marionete atada às cordas presunçosas dos s rompantes de sua ficção.

        Não me faça seu personagem, só porque me achou parecido com um pressentimento ou alguma impressão. Que eu não posso ser nada disso e esse aí que você desenha com tantos traços diferentes é muito mais ou muito menos,do que em essência sou...

        Por favor, não me revele no cárcere de seu retrato, que a minha página prefere não ter rosto a ter sempre que usar os rostos e as máscaras que você determinar.  

(Maria Célia Martirani)

Contos extraídos do livro Para que as Árvores não Tombem de Pé. Travessa dos Editores, Curitiba, 2008.

IDÉIAS DO CANÁRIO

Machado de Assis

Um homem dado a estudos de ornitologia, por nome Macedo, referiu a alguns amigos um caso tão extraordinário que ninguém lhe deu crédito. Alguns chegam a supor que Macedo virou o juízo. Eis aqui o resumo da narração.

No princípio do mês passado, — disse ele, — indo por uma rua, sucedeu que um tílburi à disparada, quase me atirou ao chão. Escapei saltando para dentro de uma loja de belchior. Nem o estrépito do cavalo e do veículo, nem a minha entrada fez levantar o dono do negócio, que cochilava ao fundo, sentado numa cadeira de abrir. Era um frangalho de homem, barba cor de palha suja, a cabeça enfiada em um gorro esfarrapado, que provavelmente não achara comprador. Não se adivinhava nele nenhuma história, como podiam ter alguns dos objetos que vendia, nem se lhe sentia a tristeza austera e desenganada das vidas que foram vidas.

A loja era escura, atulhada das coisas velhas, tortas, rotas, enxovalhadas, enferrujadas que de ordinário se acham em tais casas, tudo naquela meia desordem própria do negócio. Essa mistura, posto que banal, era interessante. Panelas sem tampa, tampas sem panela, botões, sapatos, fechaduras, uma saia preta, chapéus de palha e de pêlo, caixilhos, binóculos, meias casacas, um florete, um cão empalhado, um par de chinelas, luvas, vasos sem nome, dragonas, uma bolsa de veludo, dois cabides, um bodoque, um termômetro, cadeiras, um retrato litografado pelo finado Sisson, um gamão, duas máscaras de arame para o carnaval que há de vir, tudo isso e o mais que não vi ou não me ficou de memória, enchia a loja nas imediações da porta, encostado, pendurado ou exposto em caixas de vidro, igualmente velhas. Lá para dentro, havia outras coisas mais e muitas, e do mesmo aspecto, dominando os objetos grandes, cômodas, cadeiras, camas, uns por cima dos outros, perdidos na escuridão.

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