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O RUMO AO ESTADO MODERNO: AS RAÍZES MEDIEVAIS DE ALGUNS DE SEUS ELEMENTOS FORMADORES

Por:   •  18/9/2021  •  Artigo  •  6.197 Palavras (25 Páginas)  •  129 Visualizações

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RUMO AO ESTADO MODERNO: AS RAÍZES MEDIEVAIS DE ALGUNS DE SEUS ELEMENTOS FORMADORES

Raquel Kritsch

RESUMO

O artigo pretende apontar alguns elementos do processo de constituição do Estado moderno, entre os quais a noção de soberania, nos séculos finais do medievo. Essa nova realidade, que não se configurou ao mesmo tempo nem por um processo único em toda a Europa, apresentou algumas características comuns. Procura-se argumentar que os conflitos entre os vários atores envolvidos nesse processo foram, simultaneamente, de natureza política e jurídica, e que nessa discussão construíram-se os alicerces legais e ideológicos do poder do Estado, ao mesmo tempo em que se determinou sua extensão.

PALAVRAS-CHAVE: Estado; soberania; Direito; Teoria Política Medieval; história do pensamento político.

Friedrich Meinecke associa, em um de seus livros, a noção de maquiavelismo à de razão de Estado. A palavra stato pode até ter sido introduzida na literatura política por Maquiavel e talvez não haja, antes dele, quem tenha escrito de modo tão direto sobre a lógica do poder. Mas a história da noção de “razão de Estado” começa antes, bem antes, e um bom legista poderia incluí-la, se a conhecesse, no atestado de óbito de Thomas Becket. A defesa de uma comunidade universal cristã na obra de Salisbury, admirador de Becket, não é somente a expressão de uma doutrina. É também a resposta a uma nova realidade: um poder secular que afirma sua jurisdição sobre um território, em oposição tanto aos poderes locais quanto às pretensões de ingerência da Igreja.

Essa nova realidade não se configurou toda ao mesmo tempo nem por um processo único em toda a Europa. O novo poder desenvolveu-se antes na Inglaterra que no continente. No caso inglês, a Coroa afirmou-se contra os barões, internamente, e, no exterior, contra a Igreja. No continente, as forças em confronto são fundamentalmente quatro: a monarquia nascente, o Império, o Papado e os poderes locais.

O conflito foi simultaneamente jurídico e político. Político, porque envolveu não só uma redistribuição de poder, mas também a entrada de novos atores na cena política. Jurídico, porque os confrontos principais quase nunca, ou nunca, foram explicitados diretamente como problemas de poder, mas como questões de jurisdição e de legitimidade. Os novos atores foram, entre outros:

1) a trupe do Estado (rei, ministros, burocratas, juízes, coletores de impostos etc.);

2) os elementos urbanos emergentes (artesãos e suas corporações de ofício, comerciantes, prestadores de serviços etc.);

3) uma intelectualidade que, embora dividida partidariamente e, portanto, dependente quase sempre ou da Igreja ou da espada, passou a constituir um fator de poder e

4) os grupos, em geral das camadas inferiores e muitas vezes participantes de desordens e sublevações, envolvidos nos movimentos heréticos ou de oposição às doutrinas religiosas dominantes.

A luta desenvolveu-se não só no plano da ação direta como também no das ideias. Participaram da disputa juristas, teólogos e filósofos, muitas vezes pessoas com todas essas qualificações. A eles competia determinar os fundamentos do direito de cada parte e, portanto, a legitimidade das pretensões em conflito. Nessa discussão construíram-se os alicerces legais e ideológicos do poder do Estado, ao mesmo tempo em que se determinou sua extensão.

Os conflitos só apareceram, é óbvio, quando um novo poder teve peso suficiente para questionar a ordem dada em um certo momento. Esse é o fato político em sua versão mais crua. Mas esse novo poder tentou afirmar-se não apenas pela força: seu objetivo era ser reconhecido como portador de um direito ou, mais precisamente, como legítimo detentor de uma jurisdição. Esse é o fato jurídico em sua descrição mais simples. Todavia, não houve, historicamente, nesse caso, um fato apenas político ou apenas jurídico: o político manifesta-se frequentemente com a forma de uma reivindicação legal. Nesse período, o teórico político tinha de ser um jurista ou de enfrentar questões de jurisprudência. Quando Maquiavel escreveu, não precisou cuidar de questões legais (ele referia-se já à lei como um dado político e social). O trabalho de construção já tinha sido realizado: o Estado, como entidade juridicamente definida, era um fato plenamente desenvolvido, não uma novidade.

A partir de que momento, então, pode-se falar em Estado em sentido compatível com a noção moderna? A palavra “compatível”, nesse caso, é uma restrição importante. Trata-se de saber não a data de nascimento do Estado moderno, seja qual for a sua descrição tipológica, mas de identificar um movimento histórico bem determinado. Esse movimento ocorre segundo ritmos diferentes em diferentes locais (na Inglaterra e no continente, para tomar uma distinção bem visível) e os arranjos de poder não se dão da mesma forma em toda parte. No entanto, é possível mostrar, em todos os casos, características comuns de um processo de reordenação política. Essa reordenação é constitutiva do que hoje chamamos “Estado”. A ordem gestada por esse processo é o que aqui se designa como “compatível com a noção moderna”.

Quais seriam, então, os elementos principais desse processo de reordenação política? Para responder à questão, adotar-se-á aqui a perspectiva genética, compartilhada por autores como Strayer (s/d), Ullmann (1965) e Gierke (1938). Strayer, em seu livro já clássico, concentrou a atenção principalmente no desenvolvimento institucional do Estado moderno, a partir da Idade Média, enquanto Ullmann enfatizou as ideias que refletiram e nortearam as mudanças políticas. De modo geral, seus trabalhos tendem a ser complementares e serão explorados a partir dessa perspectiva.

Strayer indicou três condições essenciais à constituição do Estado a partir das formações medievais:

1) o aparecimento de unidades políticas persistentes no tempo e geograficamente estáveis;

2) o desenvolvimento de instituições duradouras e impessoais;

3) o surgimento de um consenso quanto à necessidade de uma autoridade suprema e a aceitação dessa autoridade como objeto da lealdade básica dos súditos (cf. STRAYER, s/d, p. 16ss.).

Segundo Strayer, os estados europeus surgidos depois de 1100 combinaram com êxito certas características dos impérios antigos, como a vastidão e o poder, e das cidades-estados, marcadas por um razoável grau de integração entre os súditos e por um sentimento de identidade comum. Por volta do ano 1000, depois de grandes migrações, guerras múltiplas e intensa fragmentação do poder, ainda seria difícil encontrar, na Europa, algo parecido com um “Estado”.

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