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Análise do Filme Alphaville

Por:   •  3/7/2017  •  Ensaio  •  1.477 Palavras (6 Páginas)  •  477 Visualizações

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ALPHAVILLE (1965): UMA DISTOPIA DO PRESENTE

“o presente é a forma de toda a vida (…) antes de nós nada existiu aqui”

Minha maior dúvida ao escrever o texto inaugural dessa coluna foi: qual filme irei analisar? Muitos nomes me passaram pela cabeça, mas a grande questão era: falar de um lançamento, de um filme recente ou de um clássico. Após alguns dias pensando, já tinha começado a escrever sobre um lançamento, quando me lembrei de um detalhe importante: ao analisar o filme devemos ter em mente o contexto social que vivemos e as lembranças que o filme nos trouxe. Quando esses dois elementos se encaixam, está quase pronta sua análise. Enfim, comecemos nossa jornada pelo mundo do cinema e da vida.

É comum ao cinema o tema das distopias. Mas o que são distopias? São projeções de uma sociedade técnicamente “perfeita”, porém as custas da completa anulação da humanidade. Em resumo: um pesadelo social. As distopias captam alguns elementos cotidianos de nossa vida social e, numa outra linha temporal, elevam ao máximo, evidenciando pontos do presente que são destrutivos para os homens e mulheres. O exemplo de maior sucesso hoje é a série Black Mirror ao tratar do tema sociedade x tecnologia.

Os filmes sobre distopias são um dos meus gêneros favoritos, justamento por conseguir entreter, mas também expor as feridas que reconhecemos no mundo. Foi assim que lembrei de um dos maiores mestres do cinema no século XX, Jean-Luc Godard, que no seu filme, Alphaville (1965), aborda tal temática. Estrelado por uma das maiores musas da história do cinema, Anna Karina, que interpreta Natasha, Alphaville é uma cidade onde tudo é perfeitamente controlado por um computador chamado Alpha 60. O sistema que controla a cidade limita, como uma espécie de eterna experiência científica de aperfeiçoamento, a linguagem humana. O resultado é uma sociedade onde os afetos, a capacidade crítica e o olhar para a realidade são extremamente limitados, até sua anulação definitiva. É nesse cenário que o agente secreto Lenny Caution (Eddie Constantine em brilhante atuação) chega em Alphaville para acabar com os planos do Dr. Von Braun, criador do Alpha 60, a fim de evitar uma guerra.

Um filme como esse poderia ser abordado por diversas formas, contudo o mais peculiar de Alphaville é que: apesar de ser retratado num futuro próximo, o filme traz a tona tantos elementos de nossa sociedade que vale a questão: estamos então vivendo numa espécie de distopia? Apesar da resposta a essa pergunta sempre ser o motivo de intensos debates de mesa de bar, o psicanalista Christian Dunker, professor da USP, aponta que há inúmeras proximidades entre Alphaville e a lógica que rege nossa sociedade como um todo, em especial o Brasil.

Dunker, em seu livro “Mal estar, sofrimento e sintoma: Uma psicopatologia do Brasil entre muros” (2015) lançado pela Boitempo, usa a analogia do condomínio – que reflete uma lógica onde nos cercamos entre iguais para que possamos, num espaço restrito, criar uma vida, uma forma de se relacionar perfeita, que reflita aquele ideal que criamos dentro de nós do mundo e dos outros, projetando assim na realidade a ideia que fazemos de nós. Como no Brasil toda coincidência é também cômica, o exemplo mais famoso de condomínio é, justamente, o Alphaville.

Assim, Christian Dunker retrata que o brasileiro desenvolveu, a partir dos anos de 1970, uma nova forma de se relacionar socialmente, que não permite a heterogeneidade, a diferença. Para isso, recorre ao conceito proposto por Sigmund Freud de “narcisismo das pequenas diferenças”, onde qualquer condição de alteridade, de diferença, leva a uma repulsa ante ao outro e ao que lhe aparenta diverso. O reflexo político de tal forma de sociabilidade é evidente atualmente: no Brasil, cada vez mais aparecem grupos com discursos de negação, apagamento, de qualquer tipo de diversidade, seja ela sexual, étnica, de classe, religiosa, gênero, regionais e até nacionais. Como em Alphaville, toda diferença começa a ser apagada, em nome de uma sociedade, de uma projeção de perfeição de sociedade, que no final das contas.

Em Alphaville – a do filme, não o nosso luxuoso condomínio fechado – seus moradores, por terem a linguagem controlada pelo computador Alpha 60, possuem sua capacidade de se colocarem no mundo, de se relacionar, bastante limitada. Assim, a memória, a capacidade de contar nossas experiências passadas, nossa vivência no mundo, se perde. Então seus moradores vivem sempre numa espécie de presente contínuo, apenas reproduzem as relações já existentes mecanicamente, garantindo apenas a perfeita ordem social, a paz e os bons costumes. Os afetos se esvaem; e a diferenciação entre indivíduos acaba, já que a singularidade é limitada por um universo específica de possibilidades já previamente postos. O resultado é uma sociedade perfeita, onde todos são exatamente iguais e repetem as mesmas possibilidades de viver no mundo e com o outro.

Se olharmos para o Brasil, é exatamente esse projeto que tais setores já citados desejam: uma Alphaville à brasileira. Apenas tipos limitados de família, de religiosidade, de saber, de criar politicamente, de cultura, de amor e de afetos. A diferença começa a ser apagada lentamente, e se não temos o Alpha 60, temos diversas medidas que visam o mesmo objetivo: Escola sem partido (ou de um partido só), os processos de militarização das favelas (que faz inúmeras vítimas, geralmente negros, mulheres, crianças e pobres), o gradual fim do “Minha Casa, Minha Vida”, o congelamento dos gastos públicos com saúde, educação, moradia, saneamento por 20 anos, entre outros.

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