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A Europa é o Cacém. Mobilidades, género e sexualidade nos deslocamentos de jovens brasileiros para Portugal

Por:   •  25/9/2018  •  Resenha  •  6.464 Palavras (26 Páginas)  •  388 Visualizações

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 A Europa é o Cacém. Mobilidades, género e sexualidade nos deslocamentos de jovens brasileiros para Portugal

-Tese de doutorado de Paula Christofoletti Togni

FICHAMENTO

  •              A princípio, a pesquisadora, Paula Togni, descreve sua chegada em Mantena (MG), isto é, a cidade de origem dos sujeitos de sua pesquisa, iniciada há 6 meses no Cacém. A autora expõe que a imagem que ela produziu em torno da cidade não condizia com o que via, pois, à primeira vista a cidade era menor e mais rural. Relata as dificuldades para chegar à “morada do Senhor Calixto” e Dona Rosa, familiares de Sheila, Maicon, Jonas, Wellington e Beto, o contato com um rapaz que a cobrava pela utilização do banheiro na rodoviária (“que mais tarde descobriria ser o namorado de Camila”), com Seu José, taxista que a levou para Cachoeirinha e no, trajeto, falou sobre os dois filhos que vivem nos Estados Unidos e a Thayná,  que ajudou o Seu José e a autora  a encontrar a casa do Senhor Calixto, após 25 kilometros em uma estrada de terra, em uma situação em que eles estavam perdidos. A autora ressalta que a “menina Tayná’’, cuja mãe vivia em Portugal, disse que, após deixá-la na casa dos pais de Sheila, retornaria de moto “principal forma de locomoção na região”. Paula Togni foi recebida na porta pelos pais de Sheila que estavam tímidos. A autora diz ter abraçado a Dona Rosa dizendo que “havia prometido à sua filha dar-lhe um forte abraço”. Segundo a autora, a casa era simples, “passava na TV um programa evangélico, da Igreja Mundial do poder de Deus” e na parede havia “alguns escritos” em “(...) referência a igreja e ao apóstolo Waldomiro”. Questionada, Dona Rosa diz que não sabia ao certo qual era o motivo da presença da pesquisadora e que sua filha lhe disse que “uma amiga dela viria pra cá”. Logo, Togni justifica sua presença apresentando sua pesquisa, seu livro e o porquê da “participação da Sheila e de toda a família”. Para a autora, a partir deste momento ela, assim como para os sujeitos em Cacém, ela se tornava “a escritora”. Após algum tempo, Sheila telefona para saber da pesquisadora e diz “num é que você foi mesmo” (pag. 128)

        

A Europa é o Cacém

  • Paula Togni destaca que parte de uma proposta teórica ancorada na etnografia multisituada, de Marcus (1995), que visa uma etnografia móvel que siga as pessoas, suas conexões e relações através do espaço (Olwing e Hastrup, 1997). A autora explana que tal perspectiva é apropriada para “imaginar” as complexidades do seu campo que é dinâmico e permeado por “forças culturais, econômicas e políticas transnacionais” (1995:94-95). No entanto, não pretende realizar um “mero estudo comparativo entre localidades”, pois incorpora “para além da pesquisa de um espaço físico”. A partir disso, a autora situa a importância do “uso de novos tipos de materiais, tais como eletrônicos”, na medida em que desde o início de sua pesquisa notou “de forma não explicita” a centralidade metodológica do uso das tecnologias de informação e comunicação (celular- sms; e internet-MSN e orkut) para a etnografia, assim como para os sujeitos, seja no estabelecimento, constituição e ampliação de contatos, mas também, para um continuum de comunicação entre os trabalhos de campo no Brasil e em Portugal”. Desta forma, “a internet como campo e/ou ferramenta de pesquisa na etnografia multisituada(...) permite, segundo a autora, “(...)ultrapassar a oposição real/virtual que era presente nos primeiros estudos sobre relações mediadas digitalmente”. Dado isto, a autora compreende “que  a inovação metodológica e teórica para a análise dos deslocamentos entre fronteiras internacionais não era a divisão entre os campos no ‘Brasil’ e em ‘Portugal”.  (pag. 129)

  • Neste ítem, a autora discorre sobre a etnografia multisituada, para isso ela evidencia o estudo de “ deslocamento e fluxos entre o Bangladesh e Lisboa”, cujo autor, José Mapril coloca como “um ponto fundamental para interpretação” o estudo na perspectiva de “contextos de origem e destino’’. Paula também utiliza estudos  sobre “deslocamentos entre fronteiras internacionais de ‘brasileiras’’’, presente nos trabalhos de Piscitelli e investigações de Assis como “exemplos importantes de etnografias multisituadas”. Há que se pontuar que, segundo a autora, que se defini uma etnografia como sendo “multisituada” quando há um “continuum entre os espaços de análise”, logo a escolha de tal método é “uma orientação de conhecimento e epistemologia diante da necessidade de construir, etnograficamente, visões de mundo de sujeitos situados em uma justaposição de lugares”. (pag. 30)
  • As reflexões da etnografia estão permeadas, segundo Togni, “pela sua própria trajetória e mobilidade que se interrelaciona com a dos sujeitos (...)” que acompanhou “em seus trajetos e experiências transnacionais”. Os 8 anos em Lisboa permitiu o “acompanhamento de  diversas temporalidades e discursos sobre uma ‘comunidade brasileira’ em Portugal,  o surgimento do ‘problema da imigração’, nas reinvidicações e alterações nas políticas migratórias”, assim como na associação dos “deslocamentos com o mercado do sexo, tráfico de pessoas e casamentos de conveniência” e a crise econômica européia e o crescimento econômico brasileiro, que resultou no regresso em massa de brasileiros. (pags. 30 e 31)
  • Ao falar dos sujeitos da pesquisa, a autora entende que também comunica sua própria trajetória, na forma com que compreende e explica as experiências de campo e percurso. Porém, a autora destaca que sua localização social e as geografias de poder permeadas por gênero “norteiam os imaginários e experiências de mobilidade” que ora se diferenciam ou se aproximam dos sujeitos de Mantena. Deste modo, a autora dá continuidade à discussão anterior apresentando a construção da metodologia da etnografia ‘’através de episódios de interação’’ que evidenciam os tencionamentos do campo. As dois primeiros episódios denotam  a ‘‘primeira experiência de deslocamento entre fronteiras internacionais” que antecede o cronograma forma da pesquisa, as outras “problematizam” e “apresentam’’ a etnografia “oficial” entre os bairros do Cacém e Mantena. Paula Togni finaliza o primeiro tópico do capítulo dizendo que os contextos de negociação demonstram a ambiguidade das localizações sociais e hierarquias de poder vão alem das noções estanques de “sociedade de origem” e “sociedade de destino” e mostra como “as marcas de diferenciação social” são articuladas de diversas formas pelos sujeitos pesquisados. (pag. 31)

1.1 Fazer etnografia em movimento

  • Neste tópico a autora inicia uma série de reflexões acerca do “fazer antropológico”, para isso ela parte de algumas citações para evidenciar que a antropologia “é realizada em primeira pessoa’’, e os antropólogos as realiza com suas “experiências, habilidades, emoções e com o corpo” (Bonetti, 2006). Seria um “investigar a si mesmo” uma “criação” e “interpretação” que o inclui (Wagner 2010:28). Também trás a tona críticos à etnografia clássica que entendem a exigência de um envolvimento pessoal, como um reconhecimento que advém de uma noção de que o pesquisador é “(...) em parte, produto da situação social dos etnógrafos” e que isso deve ser abordado nas análises. Ela expõe o exemplo de um dos autores utilizados na pesquisa, que teve sua interpretação modificada a partir da perda de sua mulher, de uma tragédia pessoal.  

  • Togni marca que não pretende fazer, apenas, uma discussão epistemológica acerca do trabalho de campo na antropologia, mas aprofundar questões com as noções de distância, lugar, alteridade e delimitações de campo. Neste sentido, a autora, apresenta a delimitação do campo com um problema central, seja na comparação de dinâmicas específicas que dizem respeito ao “morar” e “viajar” e se perguntar sobre a “idealização do ‘campo’ como um lugar ‘fora de casa”, na medida em que o próprio campo é um produto, não só da prática de pesquisa, mas também, das próprias “experiências de mobilidades”. A autora se questiona “quando é que a etnografia, o ‘ campo’ A Europa é o cacem começou?”. A autora retoma a discussão de que alguns “encontros intersubjetivos” e “experiências de mobilidade” anteriores à pesquisa tiveram conseqüência na forma que analisa e interpreta sua etnografia. Togni, cita Fabian (1883) para dissertar sobre o “processo de alterização” tem como centro o encontro intercultural, e que por “estar em movimento” e “fora de casa” baralhavam alguns pares de oposição, tais como estranho/familiar ou nativo/estrangeiro. A cada encontro havia um impulso para negociar e ressignificar “as dinâmicas de alteridade e distância”, bem como as categorias opostas, citadas anteriormente. (pags. 32 e 33)

  • A pesquisadora mostra que, curiosamente, partes dos pesquisadores se interessam sobre estudos de mobilidades motivados pelas próprias experiências de deslocamentos. A maior parte das pesquisas produzidas em Portugal com enfoque na “imigração brasileira” e a feminilização dos deslocamentos são produzidas por brasileiras. Mesmo com algo próximo a uma “autoetnografia”, as experiências de deslocamentos das pesquisadoras compõem a discussão para posicionar o “lugar” das pesquisadoras, mas mesmo que elas reivindiquem uma posição de “insider”, o “lugar de pesquisadora” não permite prerrogativas e nem o status de insider. (pag. 33)
  • No início da página 34, fica nítido, com as citações propostas pela autora, que distância geográfica não pressupõe olhar distanciado, assim como conhecimento não significa, necessariamente, proximidade, sendo assim não dá para falar em “níveis de familiaridade” com base do conceito “at home” em contextos em que o etnógrafo está e incessante movimento. A autora segue se filiando a proposta de Geertz(1989:7) de que o que os dados são as próprias construções da construção dos outros. A partir disso, Togni afirma que “a desigualdade de poder permeou a diferenciação social pelos sujeitos (que me inclui), a problematização teórica sobre os fluxos da “imigração brasileira” em Portugal; as percepções e negociações no campo enquanto etnógrafa, no Cacém (periferia) e em Mantena; como também as minhas experiências, a dos sujeitos migrantes e seus familiares.” A autora mobiliza a perspectiva focaultiana de poder, na medida em que ele fala sobre a “capilaridade do poder”, ao contrário do poder estudado como uma oposição entre quem possui e quem não possuem, um poder que circula e que os indivíduos podem exercê-lo ou sofrer sua ação. A autora trás essa discussão à tona para abordar relações de poder nas relações de pesquisa. Ela ainda pontua que as “interrelações são dinâmicas” e as “diferenças e desigualdades” podem ser “acionados, ou não” a depender do “cenário de interação”. O tópico é finalizado com a discussão de que há uma gama de possibilidades de se experienciar, pois as localizações sociais também podem ser muito diversas, neste sentido ela exemplifica comparando sua trajetória de mobilidade com a dos jovens de Mantena, não só constata diferenças de experiências, como nas expectativas, motivações e estratégias de acessar a Europa (a Europa é o Cacém) presentes nas narrativas dos sujeitos (pag. 34)

    1.2 Uma “estrangeira” “fora de casa”  

  • A pesquisadora considera que sua “primeira situação” de “encontro intercultural”, ocorreu  na sua  experiência de deslocamento entre fronteiras internacionais. Nos primeiros dois anos ela escrevia suas impressões e experiências, em solo português, em um diário que, segunda ela, “se relacionam e se misturam com a própria etnografia”. Jorge, seu “primeiro ‘amigo”, realizava intercâmbio em Portugal. Através dele, a autora conheceu uma Europa que coincidia com o que imaginava à priori, ao contrário de sua não coincidência em Mantena. A autora cita algumas narrativas sobre a própria chegada na Europa, as festas,  no quão tranquila foi a viagem e até mesmo na sensação de tristeza ao deixar pessoas, que segundo ela, eram “especiais”, prossegue relatando que Davies (1999) a encorajou à incluir “narrativas autobibliográficas”, pois para ele, elas  podem se tornar parte da  pesquisa, na medida em que faz parte do processo e que os próprios pesquisadores compõem as “coletividades pesquisadas”, porém elas não podem ir além de um “compartilhamento de ‘identidade coletiva” baseadas em gênero, raça ou nacionalidade, e estas identidades podem diminuir ou aumentar a depender do contexto. (pgs. 35 e 36)

  • Paula Togni, relata sua experiência de deslocamento e seu imaginário de “Portugal- Europa” que também produzia uma certa noção de um “dado Brasil em Portugal” e a exigência de se definir qual o significado de ser “Brasileira/o, dentro de um universo simbólico repletos de representações hegemônicas”. A pesquisadora fala das dificuldades em alugar um apartamento e como se sentiu agredida pelas justificativas das imobiliárias que a marcava com um marcador de nacionalidade, ou melhor, com uma “brasilidade” imersa em noções de gênero, sexualidade e classe que eram associadas à “(...) classes baixas, à prática de prostituição e da criminalidade e à sensualidade e simpatia”. A autora finaliza o tópico dizendo que em Portugal, ela era tida como “brasileira” e que no Brasil ela estava “acostumada” com os privilégios ligados à uma lógica que a protegia pois estava ligada às discriminações por raça e classe. (pg.36)

1.3 A “comunidade” “fora de casa”: estranhamento com o “familiar”

  •  Após algum tempo a pesquisadora se depara com escassez de recursos financeiros, logo precisava trabalhar. Nesta circunstância, ela construiu contato com brasileiros de vários lugares e realidades diferentes da dela. Neste ínterim que, segundo Togni, “se efetuou o segundo (dês) encontro)”. A pesquisadora foi inserida no que chamou de “subemprego”, em uma pizzaria de um português, cujos colegas eram brasileiros, com exceção de um indiano. A pesquisa destaca a predominância da palavra “imigrante” e as noções de classe que se aplica à essas pessoas que são consideradas desprivilegiadas político-economicamente e que almejam “melhorias destas circunstâncias através da mobilidade”. (pg.37)
  • Passado algum tempo, os recursos financeiros começaram a ficar escassos. Precisava trabalhar. E foi através da inserção laboral no subemprego que me deparei com brasileiros/as de diversas regiões e realidades sociais bem distintas da minha: foi quando se efectuou o segundo (des) encontro. A primeira experiência profissional em Portugal foi em uma pizzaria no centro de Lisboa. O dono, português, havia vivido na Itália durante vários anos e ao regressar abriu seu próprio negócio. Todos os trabalhadores eram brasileiros, com exceção de Ali, ajudande de cozinha que viera da Índia. No diário de campo, um mês depois do meu deslocamento para Lisboa, a palavra imigrante surgia em minhas narrativas. A palavra imigrante, como sugere Bryceson e Vuorela (2002), tende a trazer consigo importantes conotações de classe e é aplicada mais facilmente para pessoas que são consideradas desprivilegiadas economica ou politicamente, e que esperam melhorias dessas circunstâncias através da mobilidade. Há um breve trecho do diário pessoal que conta um pouco das condições de trabalho da pesquisadora que trabalhou por cerca de três anos como garçonete e atendente de posto de gazolina. As narrativas dos sujeitos das pesquisas chamam atenção para  a pobreza  da vida no Brasil e para o desejo de “melhorar de vida”, “compra da casa própria” e “guardar dinheiro”, deste modo o trabalho, parar a autora, tem uma centralidade na vida dos sujeitos que os distinguia dela mesma. (pag. 37)

  

  • A suposição de que estar entre “brasileiros” a faria “sentir-se em casa” não aconteceu. Paula Togni se sentia “fora de casa”, mas não mais como estrangeira, mas como imigrante, devido substancialmente à condição de trabalhadora subalterna que adiara o imaginário de transitar pela Europa. A autora prossegue abordando que o seu gênero e os marcadores atrelados a ele como a sexualidade na sua experiência de deslocamento a condicionaram a desempenhar um papel como atendente que era oferecido comumente às brasileiras, por serem “muito simpáticas” na visão da senhora que fazia a seleção. Em um dos dias de seu trabalho a pesquisadora revela que foi abordada por um dos clientes que dizia “Brinde a gente não quer não, mas se você quiser entrar aqui para gente fazer um bacanal! (Gargalhadas)”, após este fato Togni teve medo e entrou no posto de conveniência chorando; mesmo com os conflitos, o fato de estar “regularizada”  proporcionava estabilidade. Em seu diário pessoal ela relata que houve uma tentativa de greve no seu trabalho e que o estopim para sua saída foi um tapa no rosto que levara de seu patrão ao socorrer um colega que passou mal depois de comer uma feijoada. Em contraste, em 2005 começou a freqüentar a Casa do Brasil de Lisboa e, logo depois, realizou trabalho voluntário por dois anos, até ser convidada à conduzir um projeto de “inserção laboral de imigrantes brasileiros”. Ainda assim, continuou trabalhando em cafés, no período noturno, pois a remuneração pelo projeto que conduzia era muito baixa. (pags. 38 e 39)

  • Em 2006, ingressa no mestrado pesquisando “os fluxos matrimoniais transnacionais entre brasileiras e portugueses: gênero e imigração” que fora financiado,  durante 6 meses, pelo Observatório da Imigração do ACIDI - Alto Comissariado para Imigração e Diálogo Intercultural – e, posteriormente, publicado em livro. A autora ainda diz que iniciou sua etnografia no doutorado em “uma posição bastante privilegiada”, pois dispunha de uma bolsa de doutoramento e vivia na região central de Lisboa. Deste modo fica evidente que nítidas diferenças nas “experiências proporcionadas por localizações sociais distintas”, mesmo tendo que lidar com o status de brasileira em Portugal, “o fato de ser branca, oriunda de classe média, vir de uma experiência metropolitana e ter alta escolaridade, alimentava um capital cultural e simbólico que abrira espaço para circulações, negociações e agências(...)”  para a  autora. No final da página 40 a autora apresenta um conceito para além da noção “localização espacial” que é o de campos de possibilidades e de motilidade. Sendo que o primeiro foi retomado por Gilberto Velho (1994:43) com o objetivo de “evitar na discussão sobre trajetórias um voluntarismo individualista ou um determinismo sócio-cultural rígido” e o segundo proposto por Kaufman (2004) com a finalidade de “pensar a intersecção entre mobilidade espacial e social, deslocando motilidade “como o potencial de mobilidade de um ator” operalizado por Flamm e Kaufmam (2006) “a partir de três dimensões: 1) os acessos, 2) as habilidades (skills) e por fim 3) apropriação cognitiva. “Os acessos são definidos como as condições materiais disponíveis para os sujeitos”. No contexto dos sujeitos em Mantena, diz a autora, “identifiquei a existência de agências de viagens na cidade que oferecem pacotes que disponibilizam mobilidades com fluxos determinados, somado ao fato de suas famílias terem terra ou crédito (garantias) para contrair a dívida do deslocamento”. Paula Togni ressalta que os autores por ela utilizados definem “apropriação cognitiva” como uma noção de que a mobilidade é mais do que “deslocar-se de um ponto ao outro”, mas como o envolvimento de “desigualdades, status e a classificação das pessoas que transitam como também projetos de ascensão social” isto é, os sujeitos consideram desiguais os acessos às formas de mobilidade. (pags. 40 e 41)

1.4 A “Europa” e “os Portugal”

  • Diferente da maioria das etnografias multisituadas, Togni usa como estratégia metodológica a reconstrução das trajetórias dos sujeitos primeiramente na “sociedade de destino”. A partir disso, é possível relações de confiança que permitem acesso, no Brasil, às suas famílias e seus círculos de amizades, possibilitando a análise da “sociedade de origem” e a percepção dos familiares e amigos sobre as narrativas dos próprios sujeitos, por meio de contrastes. Primeiramente, a pesquisadora iniciou contato com jovens de Minas Gerais que vivem na Grande Lisboa, “através de redes previamente consolidadas por mim durante a realização da minha pesquisa de mestrado” e por “contatos virtuais’’ como já havia dito no início do capítulo. Desta forma, Togni localizou Sheila em uma comunidade do Orkut , ainda assim a autora diz que “apesar de não ter problemas em ser adicionada à sua lista de ‘amigos’ do Orkut, durante quase um mês fiz inúmeras tentativas para um encontro face a face com Sheila, sem nenhum resultado”. O pressuposto  “de que comunidades virtuais são um exemplo de redes ampliadas em função de subjetividades comum” e que o compartilhamento da mesma língua e de “ser brasileira” garantiria uma proximidade não foi verificada pela autora.  Ela ainda evidencia que só obteve respostas de Sheila, somente quando notou que compartilhavam de uma amigo em comum, MC Dinho, cantor de funk, cujo status é elvado por se destacar dentro do circuito das festas de brasileiros em Portugal. Foi necessário que está “nova celebridade” dentro da comunidade brasileira em Portugal, desse referências de Paula para Sheila que aceitou encontrar com a pesquisadora no Cacém. Segundo a jovem “resolvi te conhecer pela sua insistência… e veja se troca a sua foto de perfil porque você parece bem mais velha lá”. Com o tempo, Togni percebeu que havia diferenças entre ela e o grupo, na forma em que utiliza o hipertexto, nas fotos e  por sua atuação nas redes sociais. Desta forma, a autora altera a foto de perfil, pois julgou ser mais adequado parecer menos velha, ou mais nova para o grupo”, mas no decorrer da etnografia as diferenças entre ela e o grupo, “para além do estilo e estética, foi marcada pela insterseção de categorias de diferenciação social como geração, classe, escolaridade e cor da pele, que naquele contexto simbólico significa ser ‘portuguesa’’.  A autora fala sobre o porquê criar um perfil  no Orkut, a justificativa dos sujeitos de que ele era popular e a popularização do facebook no final de 2011. Diz que recebeu as primeiras solicitações de amizades no facebook em 2012, mas ainda assim continuou com o perfil no Orkut como uma forma de “acompanhar perfis dos jovens’’ e para observar os acessos dos jovens ao perfil dela. (pags. 41, 42, 43 44 e 45)
  • A autora diz que foi necessária “negociar diversas marcas de diferença, como classe - que marcava posicionamentos subjetivos e imaginários de uma “Europa” específica -, cor da pele - ser “branquinha”, idade, local de residência (centro de Lisboa e não a “periferia”) - e determinadas corporalidades”. Que a era uma portuguesa no Cacém e isso permitia certas perspectivas e condições, que sua  empatia com Sheila  foi possível pelas experiências “de brasileiras no Cacém” que era em postos de empregos precários e baixo salário, mas que sua trajetória calcada em um estilo de vida de classe média no Brasil a separava da trajetória em Portugal, da de Sheila. Enquanto ela ia para Portugal para “fazer um mestrado e conhecer a Europa”, Sheila objetiva “melhorar de vida’’ assim como os outros 26 sujeitos que pesquisados. (pag. 45)

1.5 No K-10020 e Ericeira

  • Por quase um semestre, Paula Togni realizou trabalho de campo no Cacém acompanhando trajetórias de “jovens brasileiros, cujas relações foram estabelecidas através de “três jovens interlocutoras privilegiadas: Sheila, Camila e Dora. A casa deSheila, apartamento 502 foi um dos principais cenários de observação, pois era próxima da estação e era freqüentada por muitos brasileiros, seja amigos(as), namorados(as) ou peguetes, como moradores. Segundo a autora, Sheila morava no quinto andar de um prédio de 11. O apartamento em questão era conhecido pelo “entra e sai de gente” e músicas altas. Os jovens riam, mas Paula Togni ficava tensa, pois “a grande maioria deles estava em situação ‘irregular’ em Portugal”. (pag. 46)

  • Já no primeiro encontro, a pesquisadora esteve na casa de Sheila. A conversa foi regada a cerveja por sugestão de Sheila. Neste encontro, Togni conheceu Camila (também de Mantena) e visitou o apartamento 502 à convite de Sheila. Para a autora, “compartilhar sociabilidade” significava participar das festas, tomar cerveja e conhecer músicas que não faziam parte do seu repertório. A autora também salienta o caráter coletivo de preparar e partilhar as refeições em conjunto. A pesquisadora  passou pelo que Roy Wagner chama de “Choque cultural”, pois sentia-se estranha nos ambientes pesquisados. Expõe a experiência de sentir “deslocada” ao chegar ao apartamento de Sheila em um dia chovendo e se deparar com muita gente dançando funk, e com pessoas com vestimenta completamente diferente das que usava, como também pela ausência da Sheila, com quem tinha contato mais intenso. (pags. 46, 47 e 48)
  •  Por quatro anos a autora circulou pelo Cacém em um jogo que ela denominou de “ausências e presenças”. Transitou por “espaços de moradia, discotecas, centros comerciais, supermercados, bares e cafés”, com o tempo se tornaram mais familiares. A autora relata que pernoitava, na casa dos jovens,e na maioria das vezes na casa da Sheila, pois era perigoso e após duas horas não havia comboios. A volta de taxi seria muito custosa. Ela se deslocava para o Cacém em dias da semana, quando havia algum aniversário, algum jovem adoecia ou para auxiliar alguém com dúvidas sobre o processo de regularização em Portugal. Os conhecimentos burocráticos da autora criavam, segundo ela, “expectativas de reciprocidade”. No início ela auxiliou e acompanhou o processo de regularização de cinco sujeitos em situação irregular e a renovação do título de residência de outros. Diz dos problemas burocráticos na regularização de Sheila, que teve que pagar 550 euros por ter ficado irregular em Portugal. Todavia cenas de “jovens retidos em batidas policiais realizadas nas discotecas brasileiras” podiam até acarretar em expulsão; A autora expressa que o “envio de documentos por fax e mediações com a polícia” permearam sua etnografia. Conta ainda de um caso em que Sheila levou uma carta de expulsão em uma festa brasileira. Buscou ajuda via MSN de Paula Togni que naquele momento estava em Mantena. (pags 48 e 49)
  •  Para a autora, a transcrição da conversa virtual na etnografia serviu para explicitar “a relação contínua entre os campos (Brasil e Portugal), mas, sobretudo, revela que em vários momentos fui acionada para “ajudar” na resolução de problemas e encontrar soluções, mesmo estando fisicamente em outros espaços’’.  Paula auxilia Sheila no pedido de regularização extraordinária, graças aos contatos com a Casa Brasil de Lisboa. (pág. 50)
  • Os espaços de sociabilidade, como a moradia, cafés e discotecas se tornavam espaços extremamente importantes para a etnografia, pois lá a estética e performance podem ser vistas como uma “apresentação do eu”, na perspectiva de Goffman, ou na noção de estilo, que ganha relevância na medida em que “articula interesses e expectativas de auto-imagem e imagem coletiva a determinados objetos, corpos e práticas”, e estes definiam o que é “ser brasileiro no Cacém”. Por outro lado, a autora revela que a forma com que eles interagem com outros grupos dizem muito sobre as “hierarquias na intersecção de marcadores de diferenciação como etnicidade, nacionalidade e sexualidade, como por exemplo a necessidade de diferenciação entre brasileiros e africanos, os pretos, comunmente presente nas narrativas e performances da maioria dos jovens brasileiros, que se auto-identificam como negros e morenos”. Por fim, Paula Togni retorna à importância destes espaços como sendo “interessantes para examinar a importância concedida à sexualidade na vivência cotidiana deste grupo, a autonomização sexual e afetiva destes jovens, a reelaboração das categorias de diferenciação nas interações e a definição de marcas e padrões que os tornavam sujeitos mais ou desejáveis no mercado afetivo-sexual” (págs. 50 e 51)

1.6 Negociando corpo, gênero e sexualidade no campo

 

  • A autora afirma que há singularidades no acesso ao universo masculino dependendo dos contextos de pesquisas, dito isto, destacam-se as diferenças na aproximação com os rapazes do Cacém, em Mantena e em Cachoeirinha de Itaúna. Prossegue apresentando que estas especificidades possuem “profundas consequências nas análises” sobre as “experiências e trajetos dos diferentes sujeitos”. Diz que “ao explicitar as relações construídas com os rapazes nos diversos momentos de pesquisa”, também mostra “as diferenças nas relações estabelecidas com as meninas”. O estatuto de “mulher solteira”, de Paula, exigiu também negociações contínuas e diferentes. No Cacém, nos primeiros meses de realização da pesquisa, sua relação com os homens passavam pelas relações com as meninas. Primeiro “porque para as que estavam comprometidas” Paula representaria uma ameaça e para as solteiras uma concorrente. Sheila e Camila alertaram a Paula sobre o excesso de ciúmes de Juliana, que naquela época namorava Maicon. Togni relata a preocupação que teve em um jantar que fora convidada por Camila. A forma como seria recebida por Juliana a preocupava. (págs 51 e 52)

  • A autora se interpreta como uma “nova possibilidade de paquera”, e relata a confissão de um dos sujeitos, Yan, que disse quando os rapazes a conheceram apostaram “quem iria a comer primeiro”. A partir disso, ela sugere que, apesar do seu estatuto de mulher  solteira, outras categorias atrairiam os homens, para o que parece uma potencial mobilidade social, pois ela apresentaria “grupo de status, grau de escolaridade e idade” que a distinguia das outras meninas.

“As pessoas me diferenciavam, geralmente, pela minha ocupação laboral - pesquisadora, escritora -, pelo meu local de residência - região central de Lisboa -, e pelos bairros de origem em Belo Horizonte, já que vários sujeitos conheciam e/ou tiveram uma experiência de mobilidade na capital do Estado de Minas Gerais. A cor da minha pele, muito branquinha30, a forma como me vestia e cortava o cabelo era rotulada com o parecer portuguesa. Tudo isso me fazia parecer profundamente diferente deles.” (Togni, Paula, A Europa é o cacém... pg. 53)

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