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Da literatura ao cotidiano: as relações com os mortos no semiárido cearense

Por:   •  11/4/2018  •  Artigo  •  4.539 Palavras (19 Páginas)  •  217 Visualizações

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DA LITERATURA AO COTIDIANO: AS RELAÇÕES COM OS MORTOS NO SEMIÁRIDO CEARENSE

Antonio Renaldo Gomes Pereira

renaldogomes@live.com

Universidade Federal do Ceará - UFC

Brasil

Antonio Renaldo Gomes Pereira

renaldogomes@live.com

Universidade Federal do Ceará - UFC

Brasil

RESUMO

Este trabalho tem como objetivo analisar aspectos da vida do sertanejo refletidos no sagrado e amparados, de certa forma, na religiosidade popular que possui características híbridas e traços plurais. Partimos de uma visão histórica e cultural do culto aos mortos e das suas características, iniciando em culturas mais antigas, como as mesopotâmicas, egípcia, greco-romana, ameríndias, e por fim, o culto aos mortos em comunidades do semiárido cearense. Para tanto, realizamos entrevistas semiestruturadas com habitantes de trinta e seis povoados situados nos municípios de Cariré, Meruoca e Ibiapina, região norte do Ceará, onde este tipo de atividade votiva ocorre com frequência. Ponderamos sobre as adversidades enfrentadas pelo camponês, sobretudo a escassez de água que é ressignificada e passa a refletir de forma direta no trato com os mortos, em especial, os que têm uma morte por ‘causa desconhecida’ onde é apontada como causa real do falecimento a sede enquanto se deslocava de uma comunidade à outra, tendo em vista a distância, resultando em uma morte agonizante e solitária. A água assume caráter de maior valor votivo ao ser ofertada ao morto, tendo em vista sua importância entre os vivos da localidade que enfrentam cotidianamente a escassez da mesma. O falecimento à beira da estrada dá origem a covas comuns com cruzes ou pequenos túmulos em homenagem aos mortos. Nessas sepulturas, as pessoas do povoado colocam garrafinhas de água na tentativa de saciar uma sede que, segundo eles, seria “uma sede eterna”. Essa tradição é o resultado do hibridismo entre culturas indígenas, europeias e africanas que ao longo do tempo se solidificaram no imaginário reconstruindo a memória coletiva local e, hoje, se apresenta como um evento original, posto que se desenvolve em um ambiente geograficamente diferenciado habitado por um povo singular imbuído numa religiosidade expressivamente plural, do qual surgiram ramificações dentro do próprio culto sendo possível verificar óticas distintas sobre o papel da água dentro do ritual. As significações simbólicas da água podem reduzir-se a três temas dominantes: fonte de vida, meio de purificação e centro de regeneração. Estes três temas estão presentes nas tradições mais antigas e formam as combinações imaginárias mais variadas e, ao mesmo tempo, as mais coerentes (Chevalier, 1986, p. 52). Constatamos, assim, a importância dada ao elemento água nos rituais fúnebres e até mesmo como manutenção de vínculo com os mortos na tentativa de satisfazer ou reparar algum sofrimento vivenciado pelo indivíduo nos seus últimos momentos.

Palavras-clave

Morte; Culto aos mortos; Água; Semiárido.

ABSTRACT

This work aims to analyze aspects of the sertanejo life reflected in the sacred and reinforced, in a way, in popular religiosity that has hybrid characteristics and pluralistic features. We start from a historical and cultural view of the cult of the dead and its characteristics, starting with older cultures, such as the Mesopotamian, Egyptian, Greco-Roman, Amerindian, and, finally, the cult of the dead in communities in the semi-arid region of Ceará. We conducted semi-structured interviews with residents of thirty-six settlements located in the municipalities of Cariré, Meruoca and Ibiapina, in the northern region of Ceará, where this type of votive activity occurs frequently. We ponder the adversities faced by rural citizens, especially the scarcity of water that is re-signified and begins to reflect directly in the treatment of the dead, especially those who died from an 'unknown cause' where thirst is pointed to as the real cause of death, whereby moving from one community to another over long distances resulted in an agonizing and solitary death. The water assumes a higher votive value when offered to the dead, considering its importance among the living in the locality, who face water scarcity every day. The death at the side of the road gives rise to common graves with crosses or small tombs in honor of the dead. In these graves, the people of the village put water bottles in an attempt to quench a thirst that, according to them, is "an eternal thirst." This tradition is the result of the hybridism between indigenous, European and African cultures that over time have solidified in the imaginary by reconstructing the local collective memory. Today this tradition presents itself as an original event, since it developed in a geographically distinct environment inhabited by a singular people imbued with an expressively plural religiosity, from which ramifications arose within the cult itself, making it possible to identify different views on the role of water within the ritual. The symbolic meanings of water can be reduced to three dominant themes: the source of life, means of purification, and center of regeneration. These three themes are present in the older traditions and form combinations in the imaginary that are the most varied and at the same time the most coherent (Chevalier 1986: 52). We thus see the importance given to the element of water in funeral rituals, even as way to maintain the bond with the dead in an attempt to satisfy or repair some suffering experienced by the individual in his or her last moments.

Keywords

Death; Cult of the dead; Water; Semi-arid.

I. Introdução

A morte não se define apenas pelo fim da existência corporal, pois ela não é determinada unicamente por sua natureza fisiológica. A morte física não é suficiente para realizar a morte nas consciências (Rodrigues, 2007), pois o processo de lembrar e de cultuar os mortos são formas de presença no mundo que evidenciam laços entre memória e tradição, entre o indivíduo e seu mundo social.

O culto aos mortos é uma herança de culturas outras, sobretudo as indígenas e europeias, trazendo um elemento que não é novo em si, mas a forma com que se apresenta dá esse caráter de singularidade. Nos sertões do semiárido cearense, na tentativa de suprir uma necessidade do morto que em seus últimos momentos viveu a agonia causada pela sede, os populares oferecem água aos mortos em suas sepulturas à beira da estrada ou mesmo no cemitério.

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