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A Ideologia Franciscana na Trilogia das Barcas de Gil Vicente

Por:   •  17/2/2020  •  Artigo  •  17.549 Palavras (71 Páginas)  •  282 Visualizações

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A ideologia franciscana na Trilogia das Barcas de Gil Vicente

Francisco de Assis, o fundador da ordem dos irmãos menores, inspirou artistas de várias épocas e lugares distintos, as suas ideias são evidentes em obras de diversos autores. A propósito, Donald Spoto destaca que

Francisco deixou sua marca na arte, na literatura e na história da civilização ocidental, a começar por Dante, que nasceu 40 anos após sua morte e que dedicou a Francisco quase a totalidade de um dos cantos da Commedia. Não é exagero dizer que todas as expressões italianas subsequentes de cultura religiosa devem algo a Francisco, desde os afrescos de Cimabue e Giotto até os filmes de Vittorio de Sica e Federico Fellini, que estão impregnados de uma profunda sensibilidade franciscana (SPOTO, 2003, p. 20).

Essa mesma inspiração franciscana, como afirmou dentre outros António José Saraiva (2000, p. 110), transparece na poesia religiosa de Gil Vicente. Esse fato vem sendo, no correr dos séculos, observado por muitos pesquisadores da literatura. No entanto, pensamos contribuir, ainda que modestamente, para o enriquecimento dessa tradição. Sendo assim, nosso objetivo é provar que a Trilogia das Barcas, composta por três autos de devoção – Auto da Barca do Inferno (1517), Auto da Praia Purgatória[1](1518) e Auto da Embarcação da Glória[2] (1519) –, só reforçam ainda mais as evidências da inspiração franciscana no teatro de Gil Vicente. Para atingir tal fim, pretendemos analisar esses três autos vicentinos, buscando encontrar na análise de cada obra a ideologia presente nos escritos de Francisco de Assis.

Convém ressaltar que, na leitura da Trilogia das Barcas, podemos verificar não só uma explícita crítica das instituições sociais e religiosas e de tipos comuns da sociedade de seu tempo, mas também a reafirmação de algumas doutrinas cristãs, buscando a edificação espiritual. Segundo Maria do Amparo Maleval:

Nas moralidades das Barcas, a sátira social se liga de modo nítido ao objetivo de edificação espiritual, colocando-se a questão da salvação post mortem. A alegoria das Barcas – a que conduz ao Céu com seus Anjos no comando e a que leva ao Inferno com seus arraiais diabólicos, aportadas num “profundo braço de mar” – serve de ponto de referência para todo um desfile processional dos mais diversos representantes das várias profissões e categorias sociais, caricaturados pelo relevo posto em seus vícios mais típicos (MALEVAL, 1992, p. 178).

António José Saraiva lembra que, por meio dessas obras, Gil Vicente “reflete de maneira por vezes muito imediata as contradições de sua época” (SARAIVA, 1955, p. 231-232). Essas contradições são típicas daquele período da história que corresponde à transição da Idade Média para a Idade Moderna. Por isso, Gil Vicente está ligado tanto ao Medievalismo quanto ao Humanismo. Esse conflito faz com que o dramaturgo português pense em Deus e ao mesmo tempo exalte o homem livre.

Embora o pai do teatro português seja homem ligado ao Humanismo, a religiosidade é evidente em suas obras. Sem dúvida, o que transparece ao longo das numerosas obras vicentinas é uma ideologia cristã, e ele se mostra, dessa forma, como homem imbuído de pensamento e reflexões de tipo espiritual cuja essência se fundamenta nos valores católicos; provavelmente, por ter vivido em período de transição, herdando um pensamento medieval, seu ideário humanista se afasta do ideário de outros escritores portugueses. Ao tratar dessa questão, José Augusto Cardoso Bernardes afirma que

Assim sendo, não pode deixar de vir à tona um curioso problema de inserção periodológica: é que sendo G. V. (e convindo muito que seja) um artista do século XVI e querendo nós (precisando nós?) fazer desse século um tempo de renovação e de efervescência cultural, assinalado pelos ideais humanistas e pelo primado dos modelos greco-latinos (tornou-se inclusivamente necessário “encontrar”, para tanto, um humanismo especificamente português, de carácter cívico e livresco, cruzadístico e irenista) onde poderemos encontrar espaço para um autor que, embora pertencendo a essa mesma época, parece estar fora desta atmosfera?

Esta pergunta, todavia, radica numa visão estereotipada do século XVI, ou seja, pressupõe a homogeneidade estético-cultural de toda uma centúria que sabemos atravessada por tensões de toda a ordem. (BERNARDES, 2005, 194-195).

        Por tudo isso, fica evidente que Gil Vicente, antes de ser um artista humanista, era um pregador, obediente ao que o franciscanismo propunha: estar com Cristo e ser enviado a pregar (BÍBLIA, 2002, Marcos 3, 14-15)[3]. O binômio de São Marcos sintetiza a finalidade para a qual foram constituídos os Doze: vida em comum com Cristo e participação na sua missão. Essa ideologia presente em suas obras foi motivada por várias razões, sendo uma delas – e provavelmente a mais forte – o fato do franciscanismo estar presente na Corte portuguesa e ser admirado ou praticado por vários membros da família real portuguesa. Sem dúvidas, o fato de D. Leonor, sua principal mecenas, estar integrada na espiritualidade franciscana e atuando ativamente, por meio de suas obras de misericórdia e divulgação da cultura cristã, será a maior influência para o artista português.

No entanto, convém ressaltar que tal pensamento já estava presente entre a realeza não só na época de Gil Vicente, no século XV e XVI; antes desse período, por exemplo, a rainha Santa Isabel, esposa de D. Dinis, no século XIII, abraçou de forma total o franciscanismo, dedicando-se à prática da caridade e da humildade. A rainha inclusive fundou o convento das Clarissas e vestiu-lhe o hábito, quando ficou viúva. Sendo assim, torna-se evidente que Gil Vicente tinha vários motivos para apoiar e divulgar a ideologia franciscana no contexto em que vivia.

Esse posicionamento franciscano por parte de Gil Vicente fica mais evidente na análise do Sermão que, em 1506, o artista prega em Abrantes à rainha D. Leonor. Segundo o próprio texto, houve a tentativa por parte de alguns de censurá-lo, alegando-se que ele era homem leigo e, dessa forma, não poderia pregar sermão. Gil Vicente, porém, diante dessa censura, demonstra sua humildade, apelando à “sacra sciencia divina” (VICENTE, 1965, p. 1277) e surpreende com a sua habilidade retórica. A partir de então, várias de suas peças apresentarão um ideal moralista, o que também foi observada nos discursos de São Francisco de Assis.

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