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As Últimas décadas do século XX

Por:   •  6/5/2015  •  Trabalho acadêmico  •  9.318 Palavras (38 Páginas)  •  194 Visualizações

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A discussão acerca do ensino e da aprendizagem da leitura e da escrita antes dos sete anos tem merecido a atenção de educadores e estudiosos da área, em diferentes contextos da história da educação brasileira.

Sobre  tudo nas últimas décadas do século XX, com a divulgação da psicogênese da língua escrita (FERREIRO E TEBEROSKY, 1985), muito se discutiu sobre esse tema. Nos últimos anos, um novo impulso foi dado ao debate, estimulado pela antecipação da escolarização obrigatória, concretizada com a entrada das crianças de seis anos no Ensino Fundamental. Ao se discutirem os conteúdos e as intervenções pedagógicas adequados tanto às crianças que passaram a integrar o Ensino Fundamental, quanto àquelas que continuaram na Educação Infantil, tem-se problematizado a adequação ou inadequação de se trabalhar a aquisição da língua escrita nesse período da educação da infância. Sob nova perspectiva e diante de novos desafios, o tratamento dado à questão vem revelando sua complexidade e a necessidade de se explicitarem os diferentes pontos de vista quanto aos pressupostos teóricos e práticos nela envolvidos. Mesmo correndo o risco de uma excessiva simplificação, pode-se afirmar que, em geral, este debate se circunscreve a duas posições hegemônicas e, ao mesmo tempo, antagônicas. De um lado, argumenta-se acerca da inadequação do trabalho com a língua escrita nessa faixa etária por considerá-lo uma antecipação indesejável de um modelo escolar típico do Ensino Fundamental. De acordo com essa concepção, ensinar a ler e a escrever equivaleria a “roubar” das crianças a possibilidade de viver mais plenamente o tempo da infância. De outro lado, o trabalho com a língua escrita desde a educação infantil é avaliado positivamente e incentivado como uma medida “compensatória” ou propedêutica com vistas à obtenção de melhores resultados nas etapas posteriores da educação básica. Qualquer que seja a posição assumida, ambas, ao enfatizarem o objeto, concedem ao sujeito da aprendizagem um papel secundário e submetido às concepções e avaliações do adulto. As perguntas a serem formuladas e respondidas no sentido de se construir uma prática educativa de qualidade, sobretudo considerando-se a complexidade que envolve essa temática, deveriam incidir sobre a criança e suas formas de expressão e relação com o mundo: Que significado possui a linguagem escrita para a criança menor de sete anos? Como ela se relaciona com os bens culturais e em específico com esse objeto do conhecimento? Quais são suas condições psíquicas, sociais, emocionais e cognitivas para se apropriar dessa forma de linguagem? Seria desejável e possível ensinar a linguagem escrita a essa criança e, ao mesmo tempo, respeitar seus desejos, aspirações, possibilidades, competências e condições de aprendizagem? Caso seja possível, que características teriam as práticas educativas capazes de respeitar esses pressupostos? Nesta publicação, pretendemos demonstrar que o aprendizado da linguagem escrita, desde a mais tenra idade, se constitui numa ferramenta fundamental para assegurar às crianças, como atores sociais que são, sua inclusão na sociedade contemporânea. Antes, porém, de apresentarmos e discutirmos conceitos, práticas educativas e aspectos metodológicos que auxiliem as professoras a construírem autonomamente sua própria prática, estabeleceremos, neste primeiro texto, algumas relações possíveis entre os termos desta equação: crianças menores de sete anos, aprendizado da linguagem escrita e Ensino Fundamental, agora com nove anos de duração. Num primeiro momento, ressaltaremos uma característica distintiva das sociedades contemporâneas: o fato de se constituírem em agrupamentos sociais marcados e definidos pela cultura escrita. E, em seguida, coerentes com a noção de infância como uma construção social, discutiremos como a criança se relaciona com essa “sociedade mediatizada pela escrita” e como, ao fazê-lo, ressignifica essa sociedade e esse objeto do conhecimento, ao mesmo tempo em que é por eles ressignificada. Em um segundo momento, partindo da noção de que a cultura infantil se constitui na inter-relação entre sujeitos de diferentes grupos sociais e entre os bens culturais produzidos por esses sujeitos, discutiremos não apenas o fato de que a apropriação da escrita se constitui em um instrumento de inserção cultural e social, mas também de que maneira, durante esse processo de apropriação, a criança vai introduzindo modificações, experimentando e transformando este objeto, imprimindo-lhe sua forma própria de se relacionar com o mundo. Finalmente, após essa discussão acerca dos significados que a aquisição do sistema de escrita adquire tanto para o indivíduo quanto para o grupo social que dele se apropria, esperamos contribuir com a consolidação de um trabalho pedagógico com a linguagem escrita, capaz de respeitar as crianças como sujeitos com direitos e membros ativos de uma sociedade grafocêntrica. Desenvolvimento infantil e aprendizagem da linguagem escrita Tendo como marco conceitual a obra “História social da criança e da família” (ARIÈS, 1981), as pesquisas no campo da História, da Sociologia e da Antropologia têm demonstrado que a infância, tal como a conhecemos hoje, não é um fenômeno natural e universal, mas, sim, o resultado de uma construção paulatina das sociedades moderna e contemporânea. A infância deixou de ser compreendida como uma “pré” etapa da fase adulta e passou a ser identificada como um estado diferenciado. Assim, ao mesmo tempo em que se reconhece que a definição de infância é tributária do contexto histórico, social e cultural no qual se desenvolve, admite-se a especificidade que a constitui como uma das fases da vida humana.

A Psicologia, ao longo das primeiras décadas do século XX, cumpriu um papel de destaque nesse reconhecimento da infância como um tempo específico da vida humana. Entretanto, a escassa produção científica sobre a infância, desde a perspectiva de outras áreas do conhecimento, tais como da Sociologia, da História ou da Antropologia, dificultou a construção de um saber capaz de percebê-la como um fenômeno sócio-histórico. Sob a forte influência da Psicologia e sem o necessário intercâmbio entre os olhares conceituais e metodológicos de outras áreas do saber científico, a infância foi compreendida como um fenômeno relacionado à vivência cronológica, cuja lógica e estrutura se pautavam pelos aspectos ligados à natureza. Assim fundamentados, alguns estudos no campo da Psicologia concederam pouca relevância à cultura na constituição da infância. (GOUVEIA, 2000). Inseridas nesse contexto de investigações psicológicas, as chamadas perspectivas psicogenéticas, baseadas na noção de que a psique infantil é qualitativamente diferente da adulta, enfatizaram o estudo da gênese das funções psíquicas. Piaget, como um dos eminentes teóricos da psicogênese, afirmava que suas investigações, ao analisarem os comportamentos infantis, tinham como objetivo principal investigar não a compreensão do conhecimento no seu estado final, mas, sim, na sua gênese e no seu processo de construção. De fato, desde a perspectiva piagetiana, a tentativa de compreender a gênese do pensamento e da inteligência humana, por meio do estudo de como a criança se desenvolve, enfatiza o papel do indivíduo. Ainda que Piaget tenha assinalado que os avanços cognitivos pressupunham adaptações ao meio, seu esforço fundamental se orientou em direção à análise de como o indivíduo dá sentido ao mundo compreendido genericamente (ROGOFF 1993). Com isso, queremos destacar que a centralidade de sua investigação foi o indivíduo e não os aspectos presentes no mundo social nem tão pouco a forma como esse mundo exerce influência no desenvolvimento mental da criança. O processo de desenvolvimento é, a partir dessas construções teóricas, uma espécie de monólogo. A criança enfrenta solitariamente a tarefa de construir uma representação do mundo e o faz graças a algumas propriedades lógicas que subjazem o pensamento e que caracterizam seu estágio de desenvolvimento. Resumidamente, pode-se afirmar que as investigações piagetianas, baseadas no método clínico, jogavam luz sobre o que as crianças eram capazes de realizar autonomamente e, a partir daí, identificavam o seu estágio de desenvolvimento psíquico. Ainda que pesem as indiscutíveis contribuições de Piaget, a centralidade atribuída à análise da interação da criança com o mundo físico impôs, em certa medida, a ideia de que o desenvolvimento humano era um desafio a ser alcançado individualmente, a partir de progressos naturais. De outra parte, implicou uma compreensão da infância como um universo isolado, como se adultos e crianças não compartissem práticas culturais comuns. Gouveia (2000) lembra que essas contribuições teóricas estruturaram a escola moderna ocidental, cujas práticas, técnicas e modelos pedagógicos se erigiram a partir da distinção entre o universo adulto e o infantil. Ao tratar de estabelecer “o quê” - a que informação e práticas culturais as crianças poderiam ou deveriam ter acesso; “o quando” - a partir de que faixa de idade; e “o como” - que modelo pedagógico de transmissão deveria ser adotado, ocorreu uma “artificialização” da cultura e de seu acesso, em uma relação que, efetivamente, excluiu a criança da cultura mais ampla da qual fazia parte. Gouveia (2000) destaca, ainda, o fato de se haver tomado como referência certa dimensão lúdica para caracterizar a infância, o que acabou por conformar uma representação infantilizada da criança. Alguns produtos culturais, tais como: jogos, canções e brincadeiras, transmitidos através de gerações, foram transformados em um conjunto descontextualizado de práticas culturais. A cultura infantil se empobreceu e esse patrimônio cultural foi transformado em um conjunto de signos e símbolos organizado a partir da ideia que o adulto possui da infância e de seu universo simbólico. Assim como Piaget, Vygotsky também deu importância ao papel do sujeito na aprendizagem. Entretanto, se para o primeiro os suportes biológicos que fundamentam sua teoria dos estágios universais receberam maior destaque, para o segundo, a interação entre as condições sociais e a base do comportamento humano foram os elementos fundamentais para sua teoria sobre o desenvolvimento. Vejamos, a seguir, por que, para este teórico, as condições sociais são os fatores determinantes do comportamento considerado tipicamente humano. Para Vygotsky, o que distingue o desenvolvimento biológico e psicológico dos animais mais evoluídos do desenvolvimento humano é a diferença que se estabelece entre as funções psicológicas naturais, que caracterizam os primeiros, e as funções psicológicas superiores, que aparecem somente com o ser humano. A passagem dos processos naturais aos processos superiores, questão perseguida por Vygotsky e colaboradores, é o elemento estruturante da consciência e do intelecto humanos. E como ocorre essa passagem? Segundo os estudos de Vygotsky, ao nascer, os seres humanos dão respostas adaptativas por meio de estruturas mentais denominadas “elementares” tais como: os reflexos condicionados e incondicionados, as reações automatizadas, os processos de associação simples. Tais estruturas mentais são condicionadas principalmente por determinantes biológicos. O elemento central que faz com que às chamadas estruturas elementares de bases biológicas se sigam outras chamadas “superiores” é o uso de signos ou de outros instrumentos psicológicos5. Tais instrumentos psicológicos servem para ordenar e reposicionar externamente a informação. Um exemplo clássico que nos ajuda a entender essa proposição é o significado que adquire um barbante amarrado no dedo para memorizar algo que não se pode ou não se quer esquecer. Nesse caso, esse instrumento psicológico empregado permite ampliar uma função mental, a memória, e lhe confere uma abrangência muito mais ampla do que sua condição natural. Nesse exemplo, o barbante é um signo, ou seja, uma marca externa que fornece suporte concreto para a ação do homem no mundo (OLIVEIRA, 1997). A partir do exemplo acima, fica fácil compreender que o desenvolvimento das funções psicológicas superiores é fruto do desenvolvimento da cultura e não do desenvolvimento biológico. Atribuir sentido a um objeto é uma condição dada culturalmente, assim como também o é a capacidade de transmitir a outras gerações esses significados. Como veremos a seguir, essa capacidade de usar signos foi, ao longo da história da humanidade, sofrendo duas mudanças qualitativas fundamentais. Importante destacar que essas mesmas transformações pelas quais a humanidade passou se verificam ao longo da história de cada ser humano. A primeira dessas mudanças é que os signos, as marcas externas, vão se transformando em processos internos de mediação. Vygotsky denomina esse mecanismo de processo de internalização. Como explica Oliveira (1997), ao longo do processo de desenvolvimento, o indivíduo substitui as marcas externas e passa a utilizar “signos internos” ou seja, representações mentais que substituem os objetos do mundo real. Por exemplo, a ideia que possuo acerca de um objeto, como a cadeira, me permite lidar mentalmente com ela, mesmo na sua ausência: “Essa capacidade de lidar com representações que substituem o real é que possibilita ao homem libertar-se do espaço e do tempo presentes, fazer relações mentais na ausência das próprias coisas, imaginar, fazer planos e ter intenções (...). Essas possibilidades de operação mental não constituem uma relação direta com o mundo real fisicamente presente; a relação é mediada pelos signos internalizados que representam os elementos do mundo, libertando o homem da necessidade de interação concreta com os objetos de seu pensamento. (OLIVEIRA, 1997: 35) ” A segunda transformação é a organização dos símbolos em estruturas complexas e articuladas, denominadas sistemas simbólicos. Como salientam Cole & Scribner (2000), os sistemas simbólicos (a linguagem, a escrita, o sistema de números, dentre outros) são criações das sociedades ao longo da história humana, que modificaram substancialmente a forma social e o nível de desenvolvimento cultural dessas sociedades. Como tentamos assinalar, a inteligência humana, diferentemente de outras formas de inteligência, é resultado de um processo contínuo de aquisição de controle ativo sobre funções inicialmente passivas. Tal controle se desenvolve e adquire status de função psíquica superior graças à capacidade humana de fazer uso de signos e de outros instrumentos psicológicos. Ao considerar essa relevância atribuída aos signos e símbolos e, consequentemente, aos sistemas simbólicos, Vygotsky ressalta que o acesso a esses instrumentos ou ferramentas psicológicas e a maneira como as crianças os manipulam são fatores determinantes no processo de estruturação da sua mente. Chegamos, assim, à discussão central que aqui nos interessa. A aquisição do sistema de escrita, assim como de outros sistemas simbólicos, adquire uma relevância estrutural em termos mentais e cognitivos para o indivíduo que passa a dominá-lo e não pode ser alcançada de maneira puramente mecânica e externa, ao contrário, pressupõe o culminar, na criança, de um processo de desenvolvimento de funções comportamentais complexas (VYGOTSKY, 2000). Essas conclusões a que chega Vygotsky, tornadas públicas nas primeiras décadas do início do século XX, chamavam a atenção para aspectos do aprendizado da leitura e da escrita, que demorariam mais de meio século para serem identificados e tomados adequadamente como objeto de estudo de pesquisas científicas. Além de evidenciar os aspectos cognitivos, constitutivos da aprendizagem da leitura e da escrita, os estudos sociointeracionistas de Vygotsky e colaboradores advertiam que uma visão geral da história do desenvolvimento da linguagem escrita nas crianças conduziria naturalmente a três conclusões fundamentais de caráter prático. A primeira delas é que o ensino da escrita deveria ser transferido para a pré- escola, sob o argumento de que as crianças menores são capazes de descobrir a função simbólica da escrita. Baseando-se em pesquisas de autores contemporâneos seus, Vygotsky (2000) menciona o fato de que oitenta por cento das crianças com três anos de idade seriam capazes de dominar uma combinação arbitrária de sinais e significados, enquanto que, aos seis anos, quase todas as crianças seriam capazes de realizar essa operação. Conclui, ainda, com base nas observações feitas por essas investigações, que o desenvolvimento entre três e seis anos envolve não só o domínio de signos arbitrários, como também o progresso na atenção e na memória. A segunda conclusão prática a que chega é resultado desse reconhecimento de que é mais do que possível, mas, sobretudo, adequado se ensinar leitura e escrita às crianças pré-escolares. Vygotsky ressalta, a partir dessa constatação, que esse ensino deve organizar-se de forma que a leitura e a escrita se tornem necessárias às crianças. O autor se contrapõe claramente a um trabalho pedagógico no qual a escrita seja concebida puramente como uma habilidade motora, mecânica, pois toma como pressuposto central o fato de que a escrita deve ser “relevante à vida” deve ter significado para a criança e conclui: “Só , então poderemos estar certos de que se desenvolverá (a escrita) não como uma habilidade que se executa com as mãos e os dedos, mas como uma forma de linguagem realmente nova e complexa. (VYGOTSKY, 2000, p.177). ” Finalmente, a terceira conclusão prática a que chegou Vygotsky, a partir da interpretação de estudos acerca do desenvolvimento da escrita nas crianças, foi quanto à necessidade de esta ser ensinada naturalmente. Ao referir-se a Montessori, salienta que essa educadora demonstrou que os aspectos motores podem ser acoplados ao brinquedo infantil e que o escrever pode ser “cultivado” ao invés de “imposto” Por esse método, segundo avalia Vygotsky, as crianças não aprendem . a ler e a escrever, mas, sim, descobrem essas habilidades durante as situações de brincadeiras nas quais sentem a necessidade de ler e escrever. Vygotsky sugere que o que Montessori fez com relação a aspectos motores deveria ser feito igualmente em relação ao que ele definiu como sendo os aspectos internos da linguagem escrita e de sua assimilação funcional: “[...] assim como o trabalho manual e o domínio do desenho são, para Montessori, exercícios preparatórios para o desenvolvimento da habilidade da escrita, também o jogo e o desenho deveriam ser estágios preparatórios para o desenvolvimento da linguagem escrita das crianças. Os educadores deveriam organizar todas essas ações e todo o complexo processo de transição de um tipo de linguagem escrita para outro. Deveriam seguir todo o processo através de seus momentos mais críticos até a descoberta de que não somente se podem desenhar objetos, mas que também se pode representar a linguagem. Se quiséssemos resumir todas essas exigências práticas e expressá-las em uma só, poderíamos dizer simplesmente que às crianças dever-se-ia ensinar-lhes a linguagem, não a escrita das letras” . (VYGOTSKY, 2000, p. 178) A infância e a aprendizagem da escrita como prática sociocultural Se, por um lado, como vimos anteriormente, a escrita introduz importantes modificações cognitivas para o indivíduo que a adquire, por outro, ela implica alterações nas práticas sociais que passam a caracterizar o grupo que dela se apropria. Conforme assinala Britto (2003), participar de uma cultura escrita significa atuar em uma sociedade constituída por um desenho urbano, por formas de interlocução específicas no espaço público, expressões de cultura particulares, princípios morais, leis, que se apoiam nesse modo de produção de cultura. Por tudo isso, o autor conclui que pertencer a essa sociedade significa mais do que estar inserido em uma cultura cuja constituição seja a soma dos conhecimentos e capacidades individuais no uso da leitura e da escrita. Significa estar submetido à ordem da cultura escrita. Ao considerarmos as crianças como membros efetivos dessa sociedade, devemos ter em conta não apenas que a linguagem escrita está presente no cotidiano desses sujeitos, mas também e, sobretudo, que ela confere um significado distinto a suas práticas sociais. Assim, ao reconhecermos a infância como uma construção social inserida em um contexto do qual as crianças participam efetivamente como atores sociais de pleno direito, devemos, igualmente, considerá-las sujeitos capazes de interagir com os signos e símbolos construídos socialmente, bem como de construir novos signos e símbolos a partir dessa interação. Para Sarmento e Pinto: As culturas infantis não nascem no universo simbólico exclusivo da infância, este universo não está fechado – muito pelo contrário, é mais que qualquer outro, extremamente permeável - tão pouco está distante do reflexo social global. A interpretação das culturas infantis, em síntese, não pode realizar-se no vazio social, e necessita sustentar-se na análise das condições sociais nas quais as crianças vivem, interagem e dão sentido ao que fazem. (PINTO, SARMENTO: 1997 p. 22). , O que importa destacar é que o reconhecimento da especificidade da infância, como esperamos ter assinalado, não pode significar seu isolamento diante dos demais grupos sociais. Se o estatuto de ator social é conferido aos seres humanos tendo em conta sua capacidade de interagir em sociedade e de atribuir sentido a suas ações, então, reconhecer a infância como uma construção social da qual participam as crianças como atores sociais de pleno direito implica considerar sua capacidade de produção simbólica, de representações e crenças em sistemas organizados. É na interrelação com as outras culturas que a cultura infantil se constitui como tal. Nesse sentido, pode-se afirmar que as crianças são sujeitos capazes de interagir com os signos e os símbolos construídos socialmente, e de atribuir distintos significados a esses signos e símbolos a partir dessa interação. O esforço que a criança faz de interagir com o mundo e com as ferramentas próprias deste mundo pode ser mais bem compreendido a partir das contribuições de Leontiev (2001). Para esse teórico, o mundo objetivo do qual a criança é consciente está continuamente se expandindo. Tal expansão não se refere simplesmente aos objetos que constituem o universo infantil próximo, ou seja, aqueles objetos com os quais a criança opera. Ao contrário, tal expansão se relaciona aos objetos com os quais os adultos operam, mas que a criança, desejosa de fazê-lo, ainda não é capaz de operar por si só. Conforme salienta Leontiev (2001), durante o desenvolvimento da consciência do mundo objetivo, a criança tenta compreender e apreender não apenas coisas diretamente acessíveis a ela, mas também aquilo que tem relação com o mundo mais amplo. Isto é, a criança se esforça para atuar como um adulto. O sistema de escrita, a priori percebido como parte constitutiva do universo do mundo adulto, é um objeto do conhecimento humano que exerce forte influência na cultura infantil e, ao mesmo tempo, é por ela influenciado. Desde muito precocemente, a língua escrita invade o território das crianças e lhes desperta a atenção. Entretanto, a maneira como a criança se apropria desse objeto do conhecimento, assim como de outros sistemas simbólicos, revela sua forma de se relacionar com o mundo mais amplo. Sua tomada de consciência desse mundo ocorre não por meio da atividade teórica abstrata, mas, sim, por meio da ação. “Uma criança que domina o mundo que a rodeia é uma criança que se esforça por atuar nesse mundo. (LEONTIEV, 2001, p.120). ” A contradição entre o desejo da criança de agir sobre as coisas e a impossibilidade de fazê-lo exatamente por ainda não dominar as operações exigidas pelas condições objetivas reais da ação dada só pode ser solucionada pela atividade lúdica. De acordo com Leontiev (2001), essa atividade lúdica não é uma atividade produtiva; seu objetivo não é um determinado resultado, mas a ação em si mesma. Trata-se de uma atividade objetivamente determinada pela percepção que a criança possui do mundo e por seu desejo de apropriar-se dele. As contribuições de Vygotsky (2000) reforçam a importância da atividade lúdica para a aprendizagem e o desenvolvimento infantil. Para este autor, essa atividade não é importante por ser uma atividade prazerosa, mas, sim, por preencher necessidades fundamentais da criança, tais como: permitir que resolva o impasse entre o seu desejo e a impossibilidade de satisfazê-lo imediatamente, exigir o cumprimento de regras, permitir certo distanciamento entre a percepção imediata dos objetos e a ação6. Além dessas necessidades fundamentais, interessa-nos destacar que, segundo Vygotsky (2000), o jogo cria o que ele denomina de “zona de desenvolvimento próximo”7. Ao brincar, a criança cria uma situação imaginária, experimenta um nível acima da sua idade cronológica, da sua conduta diária, extrapolando suas capacidades imediatas: O jogo cria uma zona de desenvolvimento próximo na criança. Durante o mesmo, a criança está sempre além da sua conduta diária; no jogo, é como se fosse maior do que é na realidade. Como no foco de uma lente de aumento, o jogo contém todas as tendências evolutivas de forma condensada, sendo em si mesmo uma considerável fonte de desenvolvimento. (VYGOTSKY, 2000: 156)8. Por tudo que argumentamos até aqui, gostaríamos de salientar que o desenvolvimento da linguagem escrita em crianças menores de sete anos pode e deve ser trabalhado por meio de estratégias de aprendizagem capazes de respeitar as características das crianças e seu direito de viver plenamente esse momento da vida. Encontrar uma forma de ensinar capaz de respeitar o direito ao conhecimento e, ao mesmo tempo, a capacidade, o interesse e o desejo de cada um de aprender se constitui em um desafio da Pedagogia para qualquer nível de ensino ou área de conhecimento. No caso da aprendizagem da leitura e da escrita na infância, há que se ter em conta pelo menos três exigências. A primeira é a consolidação de uma prática educativa na qual o aprendiz vai se apropriando da tecnologia da escrita, ao mesmo tempo em que vai se tornando um usuário competente desse sistema. Uma prática que atenda igualmente a esses dois eixos que constituem o processo de aquisição da linguagem escrita, trabalhados de forma integrada, sem que o desenvolvimento de um deles ocorra anteriormente ao do outro. A segunda exigência é considerar a escola como espaço privilegiado para garantir esse aprendizado. A linguagem escrita possui pelo menos duas características que a aproximam da ação educativa formal. A primeira característica é que se trata de uma linguagem estruturante e, muitas vezes, pré-requisito para o acesso a outras linguagens. A segunda característica é que a linguagem escrita requer, diferentemente de outros bens culturais, a sua apropriação por parte dos sujeitos. Como adverte Ferreiro (2003), é conveniente falar de “apropriação” da linguagem escrita, de um lado, porque, no caso desse sistema simbólico, o aprendiz precisa participar efetivamente do seu modo de produção ou mesmo de seus processos de expansão. Como veremos a seguir, o aprendiz precisa reconstruir as bases do sistema de escrita. Por outro lado, é também adequado falar em apropriação do sistema de escrita já que o desafio das sociedades contemporâneas é garantir que todos os indivíduos se alfabetizem. E, por fim, e como consequência, espera-se que, ao se apropriarem desse conhecimento, os sujeitos se convertam em membros da cultura escrita, tornem-se usuários desse sistema. O emprego do temo “apropriação” quer, pois, designar o ato de tornar próprio um conhecimento disponível na cultura (FERREIRO, 2003). A terceira e última exigência a ser considerada na formação dos pequenos usuários da linguagem escrita é o fato de que, por se tratar de um direito, sua aprendizagem deve respeitar as crianças como cidadãos e atores do seu próprio desenvolvimento. Quer consideremos o ponto de vista da criança como um ser competente, cognitivamente capaz de formular hipóteses, de interagir com os signos e símbolos veiculados socialmente; quer consideremos as características da sociedade contemporânea como sendo um mundo grafocêntrico, a linguagem escrita deve ser compreendida como um bem cultural com o qual as crianças devem interagir, mas, sobretudo, do qual devem se apropriar como forma de inclusão na sociedade. 7 Segundo este teórico,   a distância entre a   capacidade que a criança   possui de solucionar de  maneira independente os problemas e aquilo que requer a orientação ou  apoio de um adulto ou de companheiros mais experientes se constitui na zona de desenvolvimento próximo ao proximal. 8 Assim, por exemplo, ao  assumir o papel materno em uma brincadeira de casinha, a criança executa ações que considera  próprias desse universo, e exclui outras que considera inadequadas àquele contexto. Ela própria se impõe regras que lhe permitirão agir em conformidade com um contexto cujos papéis sociais ela procura entender e que ainda não é capaz de  desempenhar. Como esperamos ter demonstrado, tanto a linguagem escrita quanto sua aprendizagem possuem elementos que as tornam coerentes com o universo infantil, com sua forma de construir significados para o que se faz, para o que se vê e para aquilo que se experimenta. O direito de ter acesso ao mundo da linguagem escrita e dele se apropriar não pode descuidar-se do direito de ser criança, e há muitas maneiras de se respeitarem ambos os direitos.

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