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Democracia: Apontamentos do debate liberal e marxista

Por:   •  16/9/2017  •  Artigo  •  5.657 Palavras (23 Páginas)  •  191 Visualizações

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A crise experimentada pelo capital e pelos modelos conhecidos de Welfare State, bem como suas respostas restauradoras, nos termos de Braga (1995), das quais o desenvolvimento de um novo padrão de acumulação (a chamada reestruturação produtiva da era da acumulação flexível) e de um novo regime de regulação (as políticas de ajustes neoliberais) são expressão, têm acarretado profundas mudanças na organização da produção material e nas modalidades de gestão e consumo da força de trabalho, conformando sociabilidades, formas de organização e representação de interesses na direção da fragmentação e da despolitização. Uma das dimensões desse rearranjo global do capitalismo é uma ofensiva ideológica direcionada para subsumir a política e a democracia à lógica do mercado, para o qual são transferidas as tarefas de ordenamento de todas as esferas da vida social. Frente a isso, a reflexão que desenvolvo intenciona contribuir para o debate da democracia na direção de resgatar seu entendimento como um processo organicamente vinculado a conte- údos críticos, classistas e contra-hegemônicos. Ou seja, explicitar a relação instrumental da democracia com o capitalismo – quando tomada apenas na sua processualística institucional – e tornar claro seu entendimento como processo de democratização entendido como um processo de organização das classes subalternas na direção da construção de sua contra-hegemonia, tal como formulara o marxista italiano Antônio Gramsci. 2 Lutas de classe e democracia O pensamento liberal, na sua origem teórica e política, esteve voltado para colocar limites ao Estado absolutista e para expandir e consolidar o poder econômico da burguesia. O liberalismo clássico tem, assim, seu conteúdo limitado ao Estado de direito (a partir da determinação de direitos considerados individuais e naturais). O liberalismo sempre defendeu um regime político que garantisse a limitação do poder político pela liberdade e pelos direitos individuais (considerados como naturais). Dentre esses, o direito de propriedade sempre foi o central. Em outras palavras, foi o direito de propriedade e a posse da propriedade que condicionaram o conteúdo dos regimes políticos liberais até inícios do século XX (MACPHERSON, 1978). Prova dessa centralidade é a limitação do direito à escolha dos representantes pela via eleitoral. O direito ao sufrágio era restrito aos que dispunham de propriedades ou pagavam impostos1 . Outro limite do liberalismo clássico consistiu no impedimento da formação de organizações dos trabalhadores para fazer valer seus direitos2 . O que queremos aqui destacar é que a democracia moderna não pode ser compreendida sem as ideias e as lutas da tradição democrático- -socialista (LOSURDO, 1992, p. 3). A segunda metade do século XIX e o século XX se caracterizam pela contínua expansão de direitos políticos e sociais. As classes trabalhadoras e subalternas sempre estiveram na vanguarda da luta pela conquista e ampliação desses direitos. Foram as lutas dos trabalhadores pela extensão do sufrágio universal, pela fixação legal da jornada de trabalho, pela criação de sindicatos e pela formação de partidos políticos de massa (uma invenção das classes trabalhadoras, pois os partidos eram, no início do liberalismo, simples “correntes de opinião” de grupos parlamentares) que criaram as formas políticas democráticas que hoje coexistem (numa tensão entre integração e contradição) com as formas institucionais liberais oriundas das revoluções burguesas. No plano político, conquistada a legalidade da organização sindical na Inglaterra (1824), multiplicam-se as organizações que serão catalizadas, entre 1838 e meados da década seguinte, pelo primeiro movimento operário de massa, o movimento cartista, e pela formação de partidos políticos de massa. No plano especificamente econômico e social, basta lembrar que ao ser decretada a primeira medida sobre limitação da jornada de trabalho na Inglaterra em 1864, Marx afirmou que essa tinha sido a primeira vitória da economia política da classe operária sobre a economia política do capital3 . Portanto, os direitos políticos e sociais foram sendo progressivamente impostos aos regimes liberais e à classe burguesa pela luta dos trabalhadores. A incorporação desses direitos − que resultam de demandas de natureza democrática – é que dá forma ao universo dos regimes liberal-democráticos hoje existentes. Para Boron (2007, p. 29), a maneira mais precisa de denominar as democracias hoje “realmente existentes” é como “capitalismos democráticos”. Conforme aponta Netto (1990, p. 72), o sistema capitalista tem produzido e pode conviver com distintos regimes políticos, desde que sejam compatíveis com a estrutura econômica e os interesses capitalistas. Assim, a democracia é aceita e promovida pelos grupos hegemônicos, desde que permita a manutenção dos interesses do capital, legitimando as estruturas dominantes. Dessa forma, a ordem capitalista tem produzido regimes políticos diversos, compatíveis com sua dinâmica e com a estratégia da classe hegemônica a partir das necessidades econômicas e das lutas de classes dos diferentes períodos. O regime político, claramente condicionado por determinações econômicas, “nunca foi uma simples função das variáveis econômicas: resultou sempre da mediação política [...] engendrada pela concorrência de múltiplas contradições, conflitos e lutas daquelas variáveis” (NETTO, 1990, p. 74). Isso exige ao sistema capitalista, e à (fra- ção de) classe hegemônica, controlar e limitar o desenvolvimento ilimitado da democracia e do protagonismo popular nas decisões sistêmicas. Ou seja, conforme Netto, “a estrutura econômica que lhes é própria [aos regimes políticos democráticos] põe à democracia um limite absoluto” (ibidem), que impeça transformar a igualdade formal em igualdade real, que impeça que os trabalhadores passem a controlar os meios de produção e das decisões sistêmicas. Assim, continua Netto, “isto significa que quando a democracia política se torna obstáculo para a manutenção (ou reconversão) do sistema, os seus beneficiários [a fração de classe hegemô- nica] articulam respostas restauradoras e/ou reacionárias” (idem, p. 78). Esse fato, com inúmeros exemplos históricos, mostra uma relação claramente instrumental da democracia em relação ao capital. Como vimos, ora ela é aceita e promovida (formal e limitadamente) – desde que permita a reprodução das relações sociais, a acumulação ampliada de capital, a manutenção da hegemonia e da propriedade privada –, ora é combatida e substituída pela autocracia (ditadura) ou bonapartismo (o chamado “populismo”), quando seu desenvolvimento ameaça a ordem. A ofensiva neoliberal contra a ampliação dos direitos sociais instituídos nos Estados de Bem-Estar é também uma resposta política restritiva à ampliação da democracia4 . É essa ofensiva “que permitiu ao neoliberalismo converter-se em concepção ideal do pensamento anti-democrático contemporâ- neo” (NETTO, 1995, p. 194-5). Podemos assim concluir, a partir dessas repostas restritivas, restauradoras ou reacioná- rias, que para o capital a democracia não tem um valor em-si, mas um valor instrumental. A seguir explicitaremos algumas concep- ções de democracia produzidas pelo pensamento liberal, voltadas para garantir esse valor instrumental. Em sequência, explicitaremos o entendimento da democracia na tradição marxista e sua relação com a construção de um projeto societário anticapitalista. 3 A democracia na tradição liberal 3.1 O modelo elitista da democracia A concepção elitista ou “minimalista” da democracia teve o pensador liberal austro-americano Joseph A. Schumpeter (1961) como um dos seus formuladores centrais. A análise schumpeteriana acerca da democracia é influenciada pela teoria de Max Weber e por uma corrente de opinião, chamada elitismo. Schumpeter defende que a prática democrática deveria ser reduzida a um método de escolha, pelo povo, daquele grupo no interior das elites que lhe pareça o mais capacitado para governar (elites bem preparadas moral e intelectualmente, com experiências e com uma vocação predestinada para a política). Isso porque para o autor, o “povo” não tem opiniões definidas e racionais sobre as questões políticas, o que resulta em ações marcadas por um reduzido senso de responsabilidade, ignorância e impulsos irracionais. É com base nesse argumento que a democracia é então entendida como um método de revezamento das elites no poder (SCHUMPETER, 1961, p. 328). A democracia refere-se, por conseguinte, à instauração e à progressiva institucionalização dos princípios e procedimentos que regulam a competição periódica entre forças políticas pelo voto popular, com vistas à conquista de cargos públicos. A democracia é assim definida como um mecanismo estritamente procedimental, ou seja, limita-se à disputa entre diferentes elites renováveis periodicamente por meio das eleições. Assim, para Schumpeter, basta que diferentes elites se submetam a eleições periódicas e competitivas para estarmos em uma democracia. Dessa forma, a democracia é reduzida a meros mecanismos de seleção de elites. Essa concepção minimalista de democracia reaparece em vários pensadores liberais contemporâneos. Constata-se, nesse sentido, a existência de um certo consenso sobre o que se denomina de definição mínima da democracia: a democracia entendida como um conjunto de regras do jogo, no qual a democracia limita- -se ao cumprimento de alguns procedimentos formais, como liberdade de organização e de expressão, eleições e sufrágio. É nesse veio teórico, cujas formulações constituem o marco para a emergência de uma concepção minimalista, procedimental e restrita de democracia que o pensamento neoliberal - que surge como resposta de enfrentamento à crise do capital - irá se nutrir para pensar a “questão democrática”. 3.2 Modelo pluralista democrático Na teoria elitista, como exposto, a ação política dos indivíduos é retratada em conexão direta com a eleição de líderes, conferindo pouca atenção à organização coletiva de seus interesses via formação de grupos, entidades, sindicatos etc. É precisamente essa esfera dos “grupos de interesse” que os teóricos democráticos pluralistas vão explorar como sendo a expressão central da democracia. Para o liberal pluralista norte-americano Robert Dahl (1989), a democracia – que ele chama também de “poliarquia” – é determinada pela ação de múltiplos grupos ou múltiplas minorias. A definição de democracia dos pluralistas está muito ligada à noção de Estado que eles defendem. As teorias pluralistas rechaçam a ideia do Estado como uma instituição classista e coercitiva. Designações tais como “comunidade política” ou “sistema político” são utilizadas para se referir ao aparato estatal, sugerindo uma conforma- ção aberta e acessível aos recursos de poder, um espaço supostamente neutro para agregar preferências e promover “bens coletivos”. Por conseguinte, a noção de Estado refere-se aqui a um conjunto de instituições que respondem, por intermédio de múltiplos programas e organismos, às demandas políticas de grupos de interesses diversificados. Seu papel é agir como juiz e árbitro dos diferentes interesses de grupos, para regular os conflitos e promover o bem estar coletivo. Para os chamados “pluralistas” existe democracia quando existe a garantia de que os grupos de pressão possam expressar suas demandas. O Estado é aberto e influenciado por formas múltiplas de participação no âmbito individual (opinião pública, voto e protesto) e coletivo (movimentos sociais, partidos, sindicatos etc.). Podemos, então, concluir que para os pluralistas a democracia é garantida pela existência de diversos grupos que defendem seus interesses específicos e privados e que adquirem influência sobre o sistema político por meio da articulação de suas demandas particulares, que são agregadas junto aos mecanismos institucionais de representação, influindo, assim, na tomada de decisões políticas (ALFORD; FRIEDLAND, 1991; SMITH, 1997). Segundo Bobbio (1987b, p. 16), aceitar a democracia significa aceitar e defender o pluralismo e os conflitos dos grupos de interesse, assim como considerar o Estado como um grupo a mais, cujo papel é o de mediar os conflitos, de constituir-se em árbitro deles. Nesse sentido, a democracia é a democracia das “regras do jogo”, do bom funcionamento das instituições e das garantias do “Estado de direito” (BOBBIO, 1988). Entretanto, Bobbio defende um processo de alargamento da democracia na sociedade contemporânea, que para ele ocorreria, por exemplo, através da integração da democracia representativa com formas de democracia direta e possibilidade de ampliar o espaço da democracia do Estado para a sociedade civil. Nessa perspectiva, destaca os processos sócio- -organizativos que possibilitaram a expansão da democracia através do alargamento da concep- ção dos direitos que abarcam a multiplicidade e especificidade das demandas dos grupos sociais (menor, mulher, minorias raciais, deficiente etc.) (BOBBIO, 1992, p. 216-7). 3.3 Modelo da democracia participativa As elaborações teóricas do chamado modelo da democracia participativa defendem a necessidade de uma participação mais efetiva dos sujeitos sociais nas diferentes instâncias políticas de discussão dos assuntos públicos. Ou seja, a dinâmica democrática estaria centrada na influência que os sujeitos coletivos pudessem exercer, em termos de demandas e controle, sobre o aparato estatal. Esse modelo opõe-se tanto à perspectiva pluralista, quanto, sobretudo, à concepção elitista de democracia. Como referência a esse modelo, tomaremos três autores considerados clássicos representantes da escola participacionista: Paul Bachrach, Carole Pateman e C. H. Macpherson (HELD, 1987, p. 293-318). As formulações teóricas desses autores foram impulsionadas pela emergência de diversas mobilizações e movimentos contestatórios, nas décadas de 1960 e 1970: estudantis, manifesta- ções pacifistas, movimento feminista, ecológico etc. Os autores “participacionistas” procuram contribuir para uma maior consistência teórica às propostas de uma sociedade mais democrática advindas desses movimentos, bem como conferir um maior grau de sistematicidade às suas demandas e construir um modelo de democracia que pudesse se opor ao modelo elitista proveniente dos setores conservadores (HELD, 1987, p. 229-40; VITULLO, 1999). Partindo de ideias inspiradas em Rousseau e de uma justaposição de alguns fundamentos da tradição marxista e da tradição democrático- -liberal, os teóricos desse modelo, guardadas suas diferenças adjetivas, defendem que, se a complexidade da vida social impossibilita o envolvimento de todos os cidadãos nas questões públicas, deve-se lutar pela extensão da esfera de participação nas instituições representativas nacionais e, sobretudo, locais. Pateman (1992, p. 46) argumenta sobre a importância do desenvolvimento de práticas participativas em nível local, como no cotidiano das indústrias, escolas e comunidades, posto que é nesse âmbito “que se cumpre o verdadeiro efeito educativo da participação”, pois as “questões tratadas afetam diretamente o indivíduo e sua vida cotidiana”, explicitando que “é por meio da participação a nível local que o indivíduo ‘aprende a democracia’”. O desinteresse dos indivíduos pelas grandes questões nacionais é apontado por Bachrach (1973, p. 138, 145 e 158), o que o faz deduzir que as principais decisões político-governamentais devem ser tomadas e adotadas por uma pequena minoria. Também Macpherson (1978, p. 101), referindo-se ao mecanismo de iniciativa popular, defende que, de tal mecanismo, só deveria advir opiniões sobre assuntos simples, que não poderia ser utilizado para formular questões sobre os grandes problemas de política social ou econômica em geral. 3.4 A democracia como a ampliação da esfera pública O alemão Jürgen Habermas, dedica suas elaborações ao entendimento da democracia enquanto procedimento jurídico-institucional e enquanto forma de convivência crítico-argumentativa, abrindo, assim, uma nova via para a análise da democracia. Em Habermas, o desenvolvimento do conceito de esfera pública demarca uma nova matriz no interior da teoria da democracia, uma vez que traz inovações em relação aos pressupostos teóricos e prático-políticos do elitismo e do pluralismo. Sua preocupação central é a de criar uma nova perspectiva para a ampliação de arenas sociais participativas e solidárias face à constatação da diminuição de espaços societais para a prática democrática ao longo do século XX. Tal diminuição, para Habermas, é decorrente da expansão da influência das estruturas econô- micas e burocrático-administrativas em relação às formas de livre interação comunicativa de indivíduos e grupos. Habermas denomina de esfera pública o campo da sociedade em que pode ser possível restaurar a sociabilidade, interação, comunicação e o debate. E é nessa esfera que se assenta a sua concepção de democracia: o processo democrático ou a democratização significariam a ampliação da esfera pública. Para o autor alemão, a democracia supõe uma dimensão comunicativa e interativa, na qual os atores sociais participam de um debate crítico- -racional acerca da organização da sociedade. Habermas define a democracia como o processo de institucionalização dos procedimentos e das condições de comunicação, ou seja, a democracia é entendida enquanto um sistema de regras práticas mais adequadas para a organização de um processo de livre comunicação, ou seja, para a criação de espaços públicos de realização dos procedimentos argumentativos de formação da opinião. Para Habermas, ao contrário do pensamento elitista, todos os “atores sociais” são igualmente capazes de dominar a linguagem, de argumentar publicamente e de submeter a autoridade pública à crítica (AVRITZER, 1999, p. 32). Em Habermas, os processos democráticos são orientados em torno da discussão do bem público, ao invés da competição pelo bem privado de cada um. A democracia requer voz igual para cada cidadão na pressão por suas reivindicações, independentemente de posição social ou poder. Cada um deve ter oportunidade igual para apresentar propostas e para criticar. O objetivo da deliberação é atingir o consenso; o resultado será um julgamento coletivo e não uma agregação de preferências privadas (YOUNG, 2001, p. 370). Na perspectiva de uma teoria da democracia, o autor não propõe que a saída para a excessiva ingerência estatal na vida social seja o retorno ou a valorização extrema dos valores individuais e da lógica mercantil, como sugere o receituário neoliberal. O que afirma é que as esferas de influência do dinheiro, poder e solidariedade teriam que ser repostas em um novo equilíbrio, através da formação de uma vontade política democrática no âmbito da esfera pública. Esta é descrita por Habermas (1997, p. 92 e 94) como uma rede adequada para a comunicação de conteúdos, tomadas de posição e opiniões, em que as informações e argumentos são elaborados na forma de opiniões focalizadas, a ponto de se condensarem em opiniões públicas enfeixadas em temas específicos. Focalização e temáticas específicas são assim tomadas como exemplos de manifestação de práticas democrá- ticas no âmbito da esfera pública, práticas que Habermas identifica como presentes nos discursos e ações dos chamados “novos movimentos sociais”5 (HABERMAS, 1997, p. 113). A orientação política da esfera pública tem que respeitar o modo característico de operação dos outros sistemas, ou seja, não deve visar à superação e à ruptura com o Estado (burocracia) e o mercado (lucro), mas buscar a sua moderação, ou seja, “compatibilizá-los”. Nessa direção, as inferências propositivas que apontam para uma vida sem dominação e democrática estariam na proliferação de fluxos comunicativos em arenas públicas. Em outras palavras, as condições para se levar uma vida com mais solidariedade e interação entre os indivíduos radicam na potenciação da ação comunicativa, visando à criação de consensos na esfera pública, deixando os poderes político estatal e econômico imutáveis. 3.5 Um balanço crítico dos modelos liberais de democracia. Expostas, em linhas gerais, as elaborações dos modelos elitista, pluralista, da democracia participativa e da democracia entendida como ampliação da esfera pública, cabe agora um pequeno balanço crítico dos fundamentos teórico- -políticos desses modelos. É próprio do pensamento liberal autonomizar e seccionar a sociedade entre as esferas do Estado e do mercado. Dessa forma, as atividades econômicas são vistas como “naturais”, frutos da ação de indivíduos livres no mercado. Este, assim, teria uma suposta dinâmica própria e autônoma, enquanto que os processos político- -institucionais ocorridos no interior do Estado são conceitualizados na ótica da “democracia formal”, das “regras do jogo”, como esfera exclusivamente pública, portanto, “deseconomizados”. Nessa direção, o Estado é ideologicamente convertido em guardião dos interesses sociais, sendo a noção de “público” a sua característica fundante e, em contraposição, tudo que a ele se exterioriza; ou seja, o não-estatal (mercado e sociedade civil) seria dominado pela lógica do “privado”. Público e privado são tidos, assim, como esferas autônomas. De acordo com as formulações dos pluralistas liberais, o processo democrático refere-se à existência de igualdade de oportunidades de acesso dos grupos de interesse aos canais de influência sobre os governantes e à possibilidade da formação, por meio das “regras do jogo”, de consensos plurais na esfera pública. Por conseguinte, a função da participação, segundo essa tradição, é de proteção dos indivíduos contra as decisões arbitrárias dos líderes eleitos, assim como de proteção de seus interesses privados ou de grupo. Essa tradição descreve o funcionamento da democracia e o que ela deveria ser, segundo os ideais e métodos dos sistemas democráticos existentes ao defini-la como um conjunto de prá- ticas e instituições perpassadas por mecanismos que garantem eleições periódicas e políticas de grupos de pressão. No liberalismo, “a democracia esvazia-se de conteúdos igualitários e emancipadores e se curva à abstração fetichizada do mero procedimento administrativo [...]. Quando o método é um simples procedimento, a democracia é indiferente diante dos conteúdos das decisões ou dos valores que as orientam” (BORON, 2003, p. 213). Ou seja, seu significado e seus aspectos constitutivos encontram-se esvaziados de conteúdos que a projetem para além de seus procedimentos normativos. Podemos verificar que, no modelo da democracia participativa, existe explícita ausência de uma análise da sociedade civil como permeada pelo conflito de classes e da propriedade privada dos meios de produção, o que faz com que os crescentes processos de participação nos canais institucionais convertam-se na renúncia da superação do sistema capitalista. Se as formulações desse modelo argumentam sobre o fato de que devia haver espaços institucionais para uma considerável participação dos cidadãos nas decisões governamentais, também se fizeram acompanhar de um conteúdo e significado que sobrevalorizam as funções e finalidades desses espaços. Trata-se da defesa de espaços institucionais participativos plurais, não da formação de uma contra-hegemonia (nos termos de Gramsci) por parte das classes subalternas. Já na acepção habermasiana de democracia, a relação contraditória dos interesses entre capital e trabalho é substituída pelas relações consensuais criadas pelas argumentações discursivas desenvolvidas na esfera pública. Essas, em lugar da luta de classes, da contradição, é que passam a ser defendidas como desencadeadoras das mudanças na sociedade. A dinâmica presente na esfera pública − em que operam os processos das relações sociais, das práticas culturais, intersubjetivas e dialógicas − é tida como autonomizada e independente da esfera produtiva, das relações de classe e da contradição capital/trabalho delas decorrente. Nesse esquema, a contradição central entre capital e trabalho desaparece, uma vez que retira das relações sociais suas dimensões econômicas e políticas. Assim, o que essas reflexões perdem é “a noção da centralidade da dominação do capital e suas conexões com as várias esferas da sociedade, da política e da cultura” (GUIMARÃES, 1998, p. 243). Esses diferentes modelos de democracia, guardadas suas diferenças processuais, despojam a democracia de qualquer dimensão econômica, ou seja, desconsideram que não há democracia substantiva onde existe desigualdade material. A democracia no capitalismo só é compatível com ordenamentos políticos democráticos formais e restritos, compatíveis com a manutenção da propriedade privada e da desigualdade social. 4 A democracia na tradição marxista: a necessária distinção entre democracia- mé- todo e democracia substantiva Na tradição marxista opera-se uma clara diferenciação de dois níveis da democracia: a democracia formal-institucional (ou democracia método) e a democracia substantiva (ou democracia condição social). A democracia formal-institucional remete ao conjunto de mecanismos institucionais que permitem a liberdade e os direitos civis, políticos e sociais: direitos de ir-e-vir; de organização e greve; de desobediência civil; de livre expressão; o sufrágio universal e o direito a ser eleito em representação dos seus pares; os direitos trabalhistas, que regulam/limitam a exploração e a desigual relação entre capital e trabalho; os serviços e as políticas sociais (universais, constitutivas de direito de cidadania). É nos processos da “democracia-método” que se torna possível a organização político-social das classes e grupos sociais interessados na liquidação da estrutura política capitalista. A democracia substantiva amplia, para além de instituições formais, a democracia, visando a um ordenamento societário que consolida a socialização do poder político e da riqueza socialmente produzida. Aqui, o fim é o de uma sociedade sem exploração nem opressão, sem alienação, uma sociedade de livres produtores associados, na qual o trabalho não se submeta ao controle do capital. A democracia formal-institucional é um instrumento, um momento (necessário, porém insuficiente) na construção da democracia substantiva. Se a democracia formal é o limite da ordem burguesa, ela é um caminho para a democracia substantiva numa sociedade socialista. A democracia formal surge, assim, como um pressuposto que viabiliza a organização da classe trabalhadora para a tomada do poder, a partir do qual pode transformar a estrutura econômica de forma a criar as condições da democracia substantiva. Assim, temos uma chave para entendermos os objetivos e formas de luta dos trabalhadores a curto e longo prazo. A primeira, sendo o conjunto de mecanismos institucionais que permitem a liberdade cidadã. A segunda, ampliando, para além de instituições formais, a democracia como um ordenamento societário que consolida a igualdade na intervenção efetiva nas decisões. Para tanto, a democracia formal-institucional é um instrumento, um momento (necessário, porém insuficiente) nessa luta. Podemos fazer uma relação entre esses dois momentos da democracia com a concep- ção de emancipação política e de emancipação humana. Conforme Marx descreve, a emancipação política foi desenvolvida na passagem do feudalismo ao capitalismo e no interior dessa ordem burguesa, a partir da conquista de direitos civis, políticos e sociais. Ela corresponde quase que linearmente ao conceito de cidadania, tal como apresentado por Marshall (1967). A emancipação política remete, portanto, ao conjunto de direitos políticos e sociais que garantem uma “liberdade” e uma “igualdade” formais dos cidadãos − a liberdade e a igualdade perante as leis. Dessa forma, ela, sem dúvida, representa conquistas importantes no progresso dos direitos e igualdades (formais) humanos. Contudo, realiza-se no interior da ordem social comandada pelo capital, portanto, submete-se à manutenção de um sistema estruturalmente desigual. Para Marx, o limite da emancipação política, portanto, está em que ela pode ser atingida sem alcançar a emancipação geral do ser social. Nas suas palavras, “o Estado pode ser um Estado livre sem que o homem seja um homem livre” (MARX, s.d.). A emancipação política é, pois, fundamental para atingir a emancipação humana, mas não corresponde a ela, nem é garantia para sua conquista. Já a emancipação humana, para Marx, exige a eliminação de toda forma de desigualdade, dominação e exploração. Ela ocorre, portanto, na necessária superação da ordem do capital. Emancipação humana é a culminação, assim, da democracia substantiva. Se a emancipação política (ou democracia formal-institucional) é compatível com a ordem burguesa, a emancipa- ção humana (ou democracia substantiva) supõe sua superação. Por outro lado, a construção da emancipação humana/democracia substantiva também pressupõe a confirmação da emancipa- ção política/democracia-formal. Por conseguinte, não há oposição entre emancipação política/ democracia formal e emancipação humana/ democracia substantiva, embora não exista identidade entre ambas. Como afirmamos, a primeira é pressuposto da segunda, mas não a garante. Portanto, a luta pela democratização substantiva exige, primeiramente, a curto e mé- dio prazo, a (luta pela) manutenção/ampliação das instituições democráticas formais. (MONTÃ- NO; DURIGUETTO, 2010). Como explicitado no início deste trabalho, não podemos compreender a democracia como uma forma de organização do poder inseparável da estrutura econômica sobre a qual esse poder se assenta. As concepções teóricas que relacionaram as dimensões econômicas com a democracia são inicialmente encontradas nas elaborações de Jean-Jacques Rousseau, em meados do século XVIII. Para Rousseau, a democracia é associada à ideia de soberania popular, que significa participação de todos na formação do poder. A igualdade não se limita ao direito formal, mas tem uma base material sem a qual o cidadão não poderá participar igualitariamente da construção do que Rousseau chama de “vontade geral”, motor da soberania popular. Para a tradição marxista, o sentido da luta dos trabalhadores consistiu, historicamente, em considerar a luta pela igualdade e liberdade como indivisíveis, como uma mesma luta. Enquanto para os liberais a igualdade é pensada apenas no plano jurídico e formal, como igualdade de direitos, os socialistas afirmam que a liberdade só se completa quando a humanidade for capaz de garantir a igualdade social. O caráter formal e abstrato da formulação da emancipação política liberal (“igualdade de todos na formulação das leis”) – evidenciada, como vimos, na própria prática política dos primeiros regimes liberais −, foi denunciado por Marx em “A questão judaica” (s.d.). O que Marx critica são os limites de uma “democracia política”, de uma “democracia- -método”. Para Marx, as conquistas democráticas formais não deviam se constituir na meta final das lutas dos trabalhadores, mas deveriam ser impulsionadas até que se atingisse a tomada do poder político (ou seja, a sua verdadeira “socialização”) e, com ele, a erradicação das relações capitalistas de produção (ou seja, a socialização dos meios de produção) e, portanto, a emancipação humana/democracia substantiva. A divisão da sociedade em classes sociais e a representação dos interesses de uma classe particular pelo Estado são articuladas organicamente com uma teoria da revolução por Marx e Engels, na redação do Manifesto do Partido Comunista em 1848. Os autores do Manifesto reafirmam que a revolução do proletariado seria a verdadeira afirmação do ideário democrático levantado pelas revoluções burguesas dos sé- culos XVII e XVIII, particularmente a francesa. A emancipação política não deveria ser eliminada, mas efetivamente concretizada a partir da abolição das relações de propriedade e de sua representação estatal. Os interesses universais do proletariado emergiriam dessa ruptura, constituindo sua dominação com a tomada do poder político: “O primeiro passo na revolução operária é a passagem do proletariado a classe dominante, a conquista da democracia pela luta” (MARX; ENGELS, 1998, p. 29). Temos no contexto das mudanças operadas nas esferas da economia e da política, sobretudo a partir da segunda metade do século XIX, o desenvolvimento crescente de organizações (sindicatos e partidos operários de massa que ampliam enormemente a participação política das classes subalternas) e conquistas (como o sufrágio universal) no terreno da política. Por outro lado, há também uma permanente luta pela expansão de direitos sociais, que vão sendo progressivamente conquistados, impondo-se ao Estado a incorporação também de outros interesses de classe. É nesse contexto que a temática da democracia − apesar de já estar presente nas preocupações marxianas (TEXIER, 2005) − torna-se recorrente no âmbito da tradição marxista. No interior dessa tradição, a questão da democracia é posta na pauta das estratégias de transição socialista (COUTINHO, 1994). Para o marxista húngaro Georg Lukács (2008), a democracia deve ser entendida como um processo de democratização que se expressa numa crescente socialização da participação política das classes subalternas, direcionada para a construção de transformações nas esferas políticas e econômicas que apontem para a socialização do poder. Nessa perspectiva, a plena realização da democracia implica a superação da ordem social capitalista e a construção de uma ordem social socialista. Rosa Luxemburgo capta exatamente essa concepção de democracia, ao dizer que: Jamais fomos [os marxistas] idólatras da democracia “formal”, mas isso quer dizer apenas o seguinte: sempre distinguimos entre o núcleo duro de desigualdade e servidão recoberto pelo suave invólucro da igualdade e da liberdade formais, mas não para rejeitar essas últimas, e sim para incitar a classe operária a não se contentar com elas e tomar o poder político a fim de preencher esse invólucro com um conteúdo social novo (LUXEMBURGO apud COUTINHO, 1984, p. 65). De acordo com Coutinho (1984), a democracia não pode ser vista como um elemento tático, mas sim como “conteúdo estratégico” da revolução. Ou seja, o autor destaca o vínculo indissolúvel entre democracia e socialismo. Defende, assim, a democratização como valor universal, já que o que tem valor universal não são as formas concretas que a democracia adquire em determinados contextos históricos — formas essas sempre modificáveis, sempre renováveis, sempre passíveis de aprofundamento —, mas é esse processo de democratização, que se expressa essencialmente numa crescente socialização da participação política (COUTINHO, 2000, p. 129). Para Netto (1990, p. 82-95), ao operar a já mencionada distinção entre “democracia- -método” e “democracia-condição social”, “a democracia-método, possível no marco do sistema capitalista, surge como um pressuposto que viabiliza a organização do proletariado para a tomada do poder, a partir do qual a classe operária pode transformar a estrutura econômica de forma a criar as condições da democracia- -condição social” (idem, p. 95). Para o marxista húngaro Georg Lukács (2008), a democracia deve ser entendida como um processo de democratização que se expressa numa crescente socialização da participação política das classes subalternas, direcionada para a construção de transformações nas esferas políticas e econômicas que apontem para a socialização do poder. Nessa perspectiva, a plena realização da democracia implica a superação da ordem social capitalista e a construção de uma ordem social socialista. Rosa Luxemburgo capta exatamente essa concepção de democracia, ao dizer que: Jamais fomos [os marxistas] idólatras da democracia “formal”, mas isso quer dizer apenas o seguinte: sempre distinguimos entre o núcleo duro de desigualdade e servidão recoberto pelo suave invólucro da igualdade e da liberdade formais, mas não para rejeitar essas últimas, e sim para incitar a classe operária a não se contentar com elas e tomar o poder político a fim de preencher esse invólucro com um conteúdo social novo (LUXEMBURGO apud COUTINHO, 1984, p. 65). De acordo com Coutinho (1984), a democracia não pode ser vista como um elemento tático, mas sim como “conteúdo estratégico” da revolução. Ou seja, o autor destaca o vínculo indissolúvel entre democracia e socialismo. Defende, assim, a democratização como valor universal, já que o que tem valor universal não são as formas concretas que a democracia adquire em determinados contextos históricos — formas essas sempre modificáveis, sempre renováveis, sempre passíveis de aprofundamento —, mas é esse processo de democratização, que se expressa essencialmente numa crescente socialização da participação política (COUTINHO, 2000, p. 129). Para Netto (1990, p. 82-95), ao operar a já mencionada distinção entre “democracia- -método” e “democracia-condição social”, “a democracia-método, possível no marco do sistema capitalista, surge como um pressuposto que viabiliza a organização do proletariado para a tomada do poder, a partir do qual a classe operária pode transformar a estrutura econômica de forma a criar as condições da democracia- -condição social” (idem, p. 95). A democracia formal-institucional é hoje amplamente enaltecida, sendo hegemonicamente considerada como o único sistema legítimo de governo. Não obstante as diferenças de concepções, prospecções e de conteúdos defendidos pelas diferentes tradições teóricas do pensamento liberal, a defesa das “regras do jogo” é um denominador comum incontornável nessa tradição. Como defende Sartori (1994, p. 29) “a democracia política enquanto método, ou enquanto procedimento, deve preceder qualquer grande realização que possamos exigir de uma democracia”. É na tradição marxista que encontramos uma definição de democracia que não se resume aos seus aspectos formal-institucionais. Ao contrário, nessa tradição, as conquistas dos componentes democráticos – que dão materialidade ao formal-institucional – são reconhecidas como patrimônio das lutas e das organizações dos trabalhadores. Democracia aqui é vista como um processo que tem a sua força motriz alimentada nos conteúdos das resistências, dos projetos e das ações organizadas e conscientes dos trabalhadores. Democracia, nessa perspectiva, é a erradicação das formas de concentração do poder econômico e político sob os quais se edificaram e se edificam os regimes democráticos hoje tão enaltecidos.

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