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IPVA E A GUERRA FISCAL

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Por:   •  11/4/2014  •  4.667 Palavras (19 Páginas)  •  1.166 Visualizações

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O IPVA E O PACTO FEDERATIVO

Guilherme de Almeida Henriques

Marcelo Hugo de Oliveira Campos

1. Introdução

Em uma federação tripartite como a brasileira, os conflitos federativos são inevitáveis. Em 1787, Alexander Hamilton, em seus famosos “Artigos Federalistas”, ao criticar a independência dos Estados Confederados, já alertava:

Não é possível, sem cair em especulações dignas da utopia, pensar seriamente que se não hão de elevar freqüentes e violentas contestações entre os nossos estados, se eles se desunirem e formarem confederações parciais. Negar as possibilidades dessas contestações por falta de motivos para fazê-las nascer seria o mesmo que dizer que os homens não são ambiciosos, nem vingativos, nem ávidos; lisonjear-se de manter a harmonia entre um certo número de soberanias independentes e vizinhas seria o mesmo que perder de vista o andamento ordinário dos acontecimentos e contradizer a experiência de séculos.

Recentemente, tivemos a oportunidade de analisar esse tema sob a ótica dos impostos sobre o consumo, em obra intitulado “A Tributação sobre o Comércio Interestadual” , que aborda a conturbada relação entre os Estados chamados produtores (origem) e aqueles tidos como consumidores (destino), na busca pelo produto da arrecadação. No presente artigo, pretendemos analisar essa mesma problemática sob a ótica dos impostos incidentes sobre o patrimônio, em especial, o IPVA.

Isso porque, a cada ano, vem ganhando força a prática de alguns Estados de atraírem investimentos para seus territórios, como empresas de locação de veículos e frotistas, através de questionáveis isenções e alíquotas reduzidas desse imposto, como se pode perceber na exposição de motivos da Lei de Minas Gerais nº 14.937, de 23 de dezembro de 2003, in verbis:

(...) visando reduzir uma crescente evasão de receita, a proposta altera de 2,0% (dois por cento) para 1,0% (um por cento) a alíquota incidente sobre a propriedade de veículos destinados exclusivamente à locação, de propriedade de pessoa jurídica com atividade de locação devidamente comprovada nos termos da legislação aplicável, ou na sua posse em virtude de contrato formal de arrendamento mercantil ou propriedade fiduciária.

Assim, com o escopo de proteção da economia mineira, a redução revela-se necessária para manter registrados e licenciados em Minas Gerais os veículos pertencentes a empresas locadoras aqui estabelecidas, uma vez que os valores praticados de IPVA e de taxa de licenciamento cobrados pelo Estado do Paraná têm atraído o emplacamento destes veículos naquele Estado .

Por outro lado, as Secretarias de Fazenda de Estados que questionam tais benefícios vêm impondo restrições à circulação de veículos emplacados fora de seus respectivos territórios, como forma de coibir essa prática, como se pode perceber através da leitura do trecho da reportagem abaixo transcrito:

Em maio de 2007, a operação “Rosa Negra”, realizada em conjunto pela Secretaria da Fazenda, Polícia Civil e Ministério Público Estadual de São Paulo, além do Ministério Público e Polícia Federal do Paraná, prendeu 18 pessoas e apreendeu Certificados de Registro de Veículo (CRV) e Certificados de Registro e Licenciamento de Veículos (CRLV) de cerca de 5 mil veículos. Entre os detidos estavam 17 despachantes e funcionários de empresas do setor do Paraná, acusados de fraudar o registro de automóveis que circulam em São Paulo através de endereços fantasmas. O objetivo seria aproveitar a alíquota de 2,5% do valor do veículo cobrada no Paraná, contra os 4% tributados em São Paulo.

Quais os limites da autonomia dos Estados para concederem tais incentivos frente ao princípio federativo? As repressões impostas pelos Estados que questionam tais benefícios consistem em uma afronta à liberdade de tráfego? Quais os mecanismos constitucionais para o combate a tais práticas? O cumprimento das leis estaduais concessoras de tais benefícios pelos contribuintes deve ser reconhecido em nome da segurança jurídica?

Essas são algumas das reflexões a que nos propusemos no presente trabalho. E esse debate ganha maior relevo no momento atual, em que se pretende rediscutir o Pacto Federativo e os primeiros casos começam a ser julgados pelos nossos Tribunais Superiores, como veremos adiante. A ausência de bibliografia específica sobre o tema reforçou nossa convicção sobre a importância desta pesquisa.

2. A Distribuição da Competência Tributária na Constituição de 1988

Como ensina o Professor Roque Carrazza, para se conhecer a real dimensão da República Federativa do Brasil, não é necessário recorrer à história nem ao direito estrangeiro, bastando, para tanto, buscá-la em nossa própria Constituição, pois “é ela – e só ela – que traça o perfil e as peculiaridades da República brasileira” . Seguindo tal orientação, torna-se mister saber como a Lei Maior do País trata a delegação da competência tributária.

Ao distribuir o poder de tributar entre os Entes da Federação, a Constituição da República de 1988 atribuiu à União, Estados, Distrito Federal e Municípios a competência para instituir os impostos (tributos não vinculados) que asseguram os recursos necessários à consecução de seus fins, elegendo signos presuntivos de capacidade econômica que, concretizados no mundo real, farão surgir a obrigação tributária.

Para evitar a superposição contributiva, a Constituição adotou o critério da literalidade, como lembra o Professor Sacha Calmon Navarro Coêlho , delegando, privativamente, aos Estados e ao Distrito Federal a competência para instituir os seguintes impostos:

Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:

I - transmissão causa mortis e doação, de quaisquer bens ou direitos;

II - operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior;

III - propriedade de veículos automotores.

Apesar da rigidez do sistema, definir o conteúdo exato de expressões como “veículo automotor”, ou mesmo identificar, com precisão, o aspecto espacial da hipótese de incidência de alguns desses impostos não constitui tarefa fácil. Por essa razão, o constituinte reservou à lei complementar a função de definir seus fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes, além de dispor sobre eventual conflito de competência entre as pessoas políticas, como se percebe:

Art. 146. Cabe à lei complementar:

I - dispor sobre conflitos de competência, em matéria tributária, entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios;

II - regular as limitações constitucionais ao poder de tributar;

III - estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre:

a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes;

Todavia, no que toca ao imposto de competência dos Estados e do Distrito Federal incidente sobre a propriedade de veículos automotores (IPVA), objeto do presente estudo, o Congresso Nacional vem se omitindo em sua função constitucional de regulamentar a matéria, obrigando Estados e o Distrito Federal a exercerem a competência legislativa plena, nos termos do art. 24, §3º da Constituição e do art. 34, §3º do ADCT , como vem reconhecendo o Supremo Tribunal Federal:

Agravo regimental. IPVA. Como salientado no despacho agravado, ambas as Turmas desta Corte (e foram citados vários precedentes) já se manifestaram pela constitucionalidade da disciplina do imposto sobre propriedade de veículos automotores por lei local. E a questão relativa à inobservância do artigo 146 da Carta Magna, no tocante à exigência de Lei Complementar, foi largamente examinada e rejeitada. Agravo a que se nega provimento .

Dessa forma, a única limitação imposta pela Constituição aos Estados e ao Distrito Federal em matéria de IPVA é aquela inserida no inciso I do §6º do seu art. 155, introduzido pela Emenda Constitucional nº 42/03, ou seja, a que delega ao Senado Federal a competência para fixar as alíquotas mínimas do imposto, podendo tais alíquotas ser diferenciadas “em função do tipo e utilização do veículo”, conforme prevê o inc. II do mesmo dispositivo. No entanto, também em relação a esse aspecto, o Senado Federal tem permanecido inerte, o que demonstra, por um lado, a dificuldade em se encontrar um consenso sobre a matéria e, por outro, a ampla liberdade legislativa de que desfrutam os Estados e o Distrito Federal.

Vejamos, então, como a legislação estadual têm tratado esse imposto, tomando, como paradigma, a legislação do Estado de Minas Gerais.

3. Hipótese Tributária do IPVA

Logo após a alteração promovida na Constituição pela Emenda Constitucional nº 42/03, o Estado de Minas Gerais, em 23 de dezembro de 2003, promulgou a Lei Estadual nº 14.937, ingressando, definitivamente, na guerra fiscal, ao prever alíquotas diferenciadas para as locadoras de veículos, tendo definido da seguinte forma os aspectos da hipótese tributária do IPVA:

Art. 1º O Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores - IPVA - incide, anualmente, sobre a propriedade de veículo automotor de qualquer espécie, sujeito a registro, matrícula ou licenciamento no Estado.

Parágrafo único. O IPVA incide também sobre a propriedade de veículo automotor dispensado de registro, matrícula ou licenciamento no órgão próprio, desde que seu proprietário seja domiciliado no Estado.

Em relação ao critério temporal da hipótese tributária, tratando-se de fato gerador continuado, a lei mineira previu que o mesmo considera-se ocorrido: (i) no caso de veículo novo, na data de sua aquisição; (ii) no caso de veículo usado, no dia 1º de janeiro de cada ano; e, (iii) no caso de veículo importado, na data de seu desembaraço aduaneiro (art. 2º).

Já no tocante ao critério material, parece não haver grandes debates por parte da doutrina, diante do entendimento unânime de que “a propriedade não é fato gerador do imposto antes do licenciamento do veículo pelo órgão competente”. Caso contrário, esclarece o Professor Hugo de Brito Machado , as indústrias automotivas e as concessionárias de veículos se subsumiriam à hipótese tributária do IPVA tão logo estivesse concluído o processo de industrialização.

Por outro lado, o objeto da tributação deve ser o “veículo de transporte terrestre com propulsão própria”. Não obstante a tentativa da lei mineira de inserir em seu critério material a tributação da propriedade de veículos automotores “de qualquer espécie”, o Supremo Tribunal Federal tem excluído as aeronaves e embarcações do campo de incidência do imposto, pelo fato de entender ser o mesmo um sucessor da Taxa Rodoviária Única, devida exclusivamente pelos veículos terrestres . Nesse ponto, importante ressaltar as posições divergentes já manifestadas pelos Ministros Marco Aurélio e Joaquim Barbosa , que entendem ser amplo o campo de incidência do imposto, de maneira a abarcar, também, as embarcações e aeronaves. Posição esta, no entanto, minoritária na Corte.

O critério mais controverso relativo à hipótese tributária do IPVA refere-se à sua territorialidade. Isto porque, como visto acima, na ausência de uma lei nacional que discipline a matéria, cada Estado da Federação a regulamenta de acordo com seus interesses, o que, por vezes, sujeita o contribuinte a leis conflitantes.

A maior parte dos Estados brasileiros, dentre eles o Estado de Minas Gerais, prevê, em suas respectivas leis, que o imposto incidirá sobre a propriedade do veículo automotor registrado em seu território. E, seguindo o que dispõe o Código de Trânsito Brasileiro, em seu artigo 120, caput, entende que o veículo deve ser registrado no município de domicílio ou residência do proprietário, como se percebe:

Art. 120. Todo veículo automotor, elétrico, articulado, reboque ou semi-reboque, deve ser registrado perante o órgão executivo de trânsito do Estado ou do Distrito Federal, no Município de domicílio ou residência de seu proprietário, na forma da lei.

Ocorre que aquelas unidades federativas que buscam atrair contribuintes para os seus respectivos territórios, por meio de alíquotas menos onerosas, não observam esse mesmo critério, como se extrai do art. 2º, §5º da Lei Estadual do Paraná nº 14.260/03, que aceita o registro de veículos automotores em seu território, independentemente de os proprietários residirem ou estarem domiciliados no Estado, in verbis:

Art. 2º - O IPVA tem como fato gerador a propriedade de veículo automotor e será devido anualmente.

(...)

§ 5º - Em relação a veículo automotor registrado, matriculado ou inscrito neste Estado, o imposto incide independentemente do local de domicílio do proprietário. (grifamos)

Neste ponto reside o conflito federativo envolvendo o IPVA, pois, ao permitir o registro de veículos cujos proprietários não são domiciliados em seu território, Estados como o Paraná se valem de regra contrária ao Código de Trânsito Brasileiro, que, aliada a uma alíquota reduzida, culmina na atração de receitas que não lhe seriam devidas originalmente, em detrimento do esvaziamento dos cofres dos demais Estados, rompendo, assim, a neutralidade exigida pelo sistema constitucional tributário.

Por outro lado, os Estados que se sentem prejudicados por tais medidas acabam por autuar os contribuintes que se valem desse tratamento privilegiado, exigindo novamente o imposto, amparados por decisões de seus respectivos Tribunais de Justiça, como se pode perceber pela leitura das ementas abaixo:

Ação anulatória de débito fiscal - Operação “De Olho na Placa” - Veículo autuado por falta de inscrição no cadastro de contribuintes de IPVA do Estado de São Paulo - Possibilidade - Constatada a existência de estabelecimento diverso no endereço da filial da empresa locadora de veículos Subsistente o auto de infração e imposição de multa, o veículo deve ser registrado, licenciado perante o órgão executivo de trânsito do Estado no Município de domicílio ou residência de seu proprietário (art. 120, do CTB) Sentença mantida - Recurso improvido.

APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO ORDINÁRIA - COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA DO ESTADO DE MINAS GERAIS PARA COBRANÇA DE IPVA SOBRE VEÍCULO CUJO PROPRIETÁRIO RESIDE NESTE ESTADO, AINDA QUE LICENCIADO EM ESTADO DIVERSO - ART. 120, DO CTB - ART. 127, DO CTN - IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO INICIAL - RECURSO A QUE SE NEGA PROVIMENTO.

MANDADO DE SEGURANÇA - APELAÇÃO - IPVA - IMPOSTO DEVIDO NO LOCAL DE RESIDÊNCIA DO PROPRIETÁRIO - DIREITO LÍQUIDO E CERTO INEXISTENTE - DENEGAÇÃO DA ORDEM. O mandado de segurança não é a via adequada para a hipótese em que inexiste direito líquido e certo e prova pré-constituída dos fatos alegados pela parte autora. Por óbvio, da leitura do art.120 do CTB com o art. 1º da Lei Estadual nº 14.937/03 e art.127, I, CTN, vê-se que, residindo o proprietário, como no caso em apreço, no Estado de Minas Gerais, se sujeita ao registro da propriedade do veículo neste Estado e, conseguintemente, sobre essa propriedade incidirá o IPVA, de competência inafastável do Estado de Minas Gerais.

Do voto do Desembargador Belizário de Lacerda, relator do acórdão supracitado, extrai-se que o objetivo destes Tribunais é a preservação da unidade político-econômica da Federação Brasileira, in verbis:

O critério fixador do domicílio tributário em relação ao IPVA é o previsto no art. 127 do Código Tributário Nacional, que determina às pessoas físicas que registrem seus veículos no Estado da Federação onde residam com habitualidade, e às pessoas jurídicas de direito privado que registrem seus veículos onde tenham as respectivas sedes.

O Código de Trânsito Brasileiro (Lei 9.503/97) determina que todo veículo automotor deve ser registrado perante o órgão de trânsito no município de domicílio ou residência de seu proprietário, na forma da lei (artigo 120). Portanto, o IPVA relativo ao veículo automotor terá de ser obrigatoriamente pago no local do domicílio ou residência de seu proprietário.

Conquanto a questão ainda não tenha chegado aos Tribunais Superiores, acreditamos que a conduta dos Estados que, sob a alegação de atração de investimento para seus territórios, acabam por caminhar em sentido contrário à proteção da unidade político-econômica da Federação deve ser combatida, sob pena de fomentarmos o “germe separatista”, para utilizarmos a expressão consagrada pela professora Misabel de Abreu Machado Derzi .

Todavia, esse combate deve ser através dos mecanismos nacionais previstos pela Constituição para a proteção da Federação, quais sejam, a Lei Complementar (art. 146, incs. I e III), a Resolução do Senado Federal (art. 155, §6°, inc. I) e, em último caso, a Ação Direta de Inconstitucionalidade (Art. 102, inc. I, alínea ‘a’).

Exigir dos proprietários de veículos automotores que, consciente ou inconscientemente, cumpriram uma obrigação tributária, ainda que menos onerosa, fundamentada em lei estadual vigente, portanto, presumidamente constitucional , novo pagamento do imposto, parece uma quebra de confiança e, portanto, uma afronta à segurança jurídica, incompatível com os princípios de um Estado Democrático de Direito.

E sem confiança não há meios de se promover s justiça, como nos ensina a Professor Misabel Abreu Machado Derzi:

A vida somente é possível quando se trabalha com confiança. Por isso, do fundo ético-jurídico do sistema, em situações de mudança, de risco ou de crise, uma vez estabelecidas certas condições, sempre emerge, claramente o princípio da proteção da confiança, que nele subjaz. Dentro da extrema mobilidade do mundo e da alta das sociedades de risco contemporâneas, o sistema jurídico se presta a fornecer estabilidade, se presta a acolher as expectativas legitimamente criadas e, portanto, a proteger a confiança. A confiança é um dos instrumentos mais eficazes de redução de complexidade. Se assim não for, a ordem jurídica confundir-se-á com os elementos do ambiente, sociais, econômicos, morais... enfim, fundir-se-á com os demais sistemas e desaparecerá como instrumento que possibilita a vida, o convívio e a tomada de decisões assentadas em um mínimo de confiança. (...). Já disse o grande escritor BRASILEIRO, Guimarães rosa: ‘Viver é perigoso’. E NIKOLAS LUHMANN, por sua vez, completou: ‘Sem confiança não é possível a vida’. O homem seria tomado por um medo insuportável.

4. O Princípio Federativo na Constituição de 1988

Na Constituição da República de 1988, a indissolubilidade da Federação vem afirmada logo no art. 1° e ganha ares de cláusula pétrea ao se proibir, expressamente, no art. 60, § 4º, inc. I , qualquer proposta de emenda constitucional tendente a abolir a forma federativa de Estado.

Como desdobramento desse princípio na esfera tributária, ao tratar das limitações ao poder de tributar, a Magna Carta veda as limitações ao tráfego de pessoas ou bens, por meio de tributos interestaduais e intermunicipais, exigindo, também, tributação federal uniforme em todo o território nacional e proibindo o tratamento discriminatório em razão da origem ou destino (arts. 150, inc. V , 151, incs. I e III e 152 ).

Neutralidade e uniformidade de alíquotas, no entanto, não significam que todos devam pagar o mesmo tributo em qualquer parte do território nacional, mas que não pode haver agravamento do ônus tributário em razão da transposição de fronteiras. A interpretação sistemática desses dispositivos é que permitirá definir as bases do Princípio Federativo na Constituição de 1988, devendo-se levar em consideração as características da sociedade na qual está inserido.

O sistema brasileiro misto de controle de constitucionalidade das leis tem permitido ao Supremo Tribunal Federal analisar, tanto em sede de controle concentrado, como em sede de controle difuso, a adequação da concessão de incentivos e benefícios fiscais em face da Carta Magna, especialmente quanto ao ICMS . Mutatis mutandi, o raciocínio a ser empregado no caso do IPVA deve ser o mesmo. Conforme já assentado pelo STF, “onde existe a mesma razão, prevalece a mesma regra de direito: ubi eadem tatio, ibi eadem legis dispositio”.

O Princípio Federativo não pode se curvar a esse germe separatista que tem provocado profundas distorções no sistema tributário nacional, culminando na proliferação de leis estaduais conflitantes, concessoras de benefícios fiscais que, quando obedecidos pelo contribuinte, seu cumprimento não é reconhecido pelos demais entes da Federação.

Os incentivos adotados por alguns Estados ao reduzirem a alíquota do IPVA concomitante à permissão para registro de veículos de não residentes ou domiciliados em seus respectivos territórios, constitui flagrante ofensa ao pacto federativo e à unidade político-econômica do Estado Brasileiro. Todavia, os remédios para se coibir tais práticas já estão previstos na Lei Maior do País, em especial no art. 102, inc. I, alínea ‘a’, que delega ao Supremo Tribunal Federal a competência para processar e julgar originariamente “a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal”.

Neste sentido, as práticas repressivas de apreensão de veículos, à semelhança da glosa de créditos no caso de ICMS, surgem como mecanismos políticos não autorizados pela Constituição para cobrança de tributos , que, para além de não contribuírem para a solução do problema, estimulam, ainda mais, a Guerra Fiscal entre os Estados.

Não é por outro motivo que, há muito, o ilustre ministro Sepúlveda Pertence pontuou: “Na guerra fiscal, portanto, a solitária força da paz aquartela-se neste salão: é o Supremo Tribunal Federal, que tem feito recolher-se ao bom comportamento constitucional todos os beligerantes que, um dia, denunciam, mas, no outro, são denunciados” .

Daquela mesma oportunidade, conquanto tratando das inconstitucionalidades que permeiam as concessões de benefícios fiscais às margens do CONFAZ, como determina o art. 155, §2°, inc. XII, ‘g’ da Constituição, e analisando o argumento dos Estados de que tais benesses apenas serviriam de proteção e retaliação às normas de outros Estados de mesmo teor, surgiu a célebre expressão tão reproduzida quando se trata de Guerra Fiscal e as medidas unilaterais adotadas pelos Estados:

O propósito de retaliar preceito de outro Estado, inquinado da mesma balda, não valida a retaliação: inconstitucionalidades não se compensam.

A expressão, ainda tão atual, merece a atenção dos juristas e de nossos Tribunais Superiores. Assim é que, em recente decisão proferida nos autos da Medida Cautelar n° 2.611, ainda sobre a adoção de medidas unilaterais para a cobrança de tributos (glosa de créditos de ICMS de mercadorias oriundas de Estados que concedem benefícios fiscais unilaterais), a eminente ministra Ellen Gracie reafirmou:

Conforme já destacado na decisão recorrida, o Estado de Minas Gerais pode arguir a inconstitucionalidade do beneficio fiscal concedido pelo Estado de Goiás em sede de Ação Direta de Inconstitucionalidade, sendo certo que este Supremo Tribunal Federal tem conhecido diversas ações envolvendo tais conflitos entre Estados, do que é exemplo a ADI 2.58, rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 15.6.2007.

Mas a apura e simples glosa de créditos apropriados é descabida, porquanto não se compensam as inconstitucionalidades, nos termos do que decidiu este tribunal quando apreciou a ADI 2.377-MC, DJ 7.11.2003, cujo relator foi o Min. Sepúlveda Pertence.

Andou bem a ilustre ministra ao reconhecer, ainda que liminarmente, o pleito do contribuinte que, mais uma vez, teve de arcar com as conseqüências da Guerra Fiscal travada pelos Estados e que entre eles deveria ser resolvida, não onerando, ainda mais, aqueles que cumprem a legislação.

Calha mencionar, em manifestação ainda mais recente do Supremo Tribunal Federal, o debate travado entre os ministros daquele Corte, no tocante à Lei n° 9.582 da Paraíba que, em obediência ao Protocolo ICMS n° 21, estipulou a cobrança de um verdadeiro diferencial de alíquota adicional de ICMS na aquisição de mercadorias à distância (internet, telemarketing ou showroom), por consumidor final, na mais clara violação à regra prevista no art. 155, §2°, inc. VII, ‘b’ da Constituição de 1988 .

Trata-se de nova medida adotada pelos Estados com o claro propósito de retaliar os Estados produtores, que vem concentrando em seus cofres parcela significativa do ICMS nessas operações, dado o novo modelo de comércio surgido nos últimos anos, o chamado e-commerce. É ver o teor da ementa do acórdão, que ratifica a liminar concedida na medida cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 4.705/DF:

1. (...)

2. Os entes federados não podem utilizar sua competência legislativa privativa ou concorrente para retaliar outros entes federados, sob o pretexto de corrigir desequilíbrio econômico, pois tais tensões devem ser resolvidas no foro legítimo, que é o Congresso Nacional (arts. 150, V e 152 da Constituição).

3. Compete ao Senado definir as alíquotas do tributo incidente sobre as operações interestaduais.

4. A tolerância à guerra fiscal tende a consolidar quadros de difícil reversão.

O debate travado entre os Ministros da Corte Excelsa deixa clara a preocupação com a manutenção do pacto federativo, como se observa:

O SENHOR MINISTRO JOAQUIM BARBOSA (RELATOR) – Mas aqui o meu voto, a minha decisão se concentra basicamente na questão federativa, que é grave. Não cabe a um Estado dispor sobre essa matéria, e dispor de forma retaliatória, indicando, apontando os Estados na origem dos quais as mercadorias tenham iniciado a circulação. É essa a questão principal e urgente; nós não podemos deixar uma norma dessa natureza...

Com acerto as ponderações do ilustre ministro Joaquim Barbosa, ao reconhecer que a interpretação das legislações estaduais no tocante à repartição de competência tributária não pode passar por outro caminho se não pela análise do princípio federativo, na incansável luta pela manutenção da unidade político-econômica do país. Do contrário, ruiria toda a estrutura federativa do Estado Brasileiro, tornando letra morta o disposto no art. 60, §4°, inc. I, da Constituição, que elevou o princípio federativo ao status de cláusula pétrea, não podendo ser abolido nem mesmo pelo legislador derivado. Nesse sentido, veja-se trecho do voto do Relator:

É impossível alcançar integração nacional sem harmonia tributária. Adequado ou não, o modelo escolhido pelo Constituinte de 1988 para prover essa harmonia e a indispensável segurança jurídica se fixou na “regra da origem” (art. 155, § 2º, II, b da Constituição). O Confaz ou cada um dos estados-membros singelamente considerados não podem substituir a legitimidade democrática da Assembleia Constituinte, nem do constituinte derivado, na fixação dessa regra.

Por outro lado, além da segurança jurídica institucional, a retaliação unilateral prejudica o elemento mais fraco da cadeia de tributação, que é o consumidor.

Nos dizeres do sempre citado professor Sacha Calmon Navarro Coêlho, “sendo a Federação um pacto de igualdade entre as pessoas políticas, e sendo a autonomia financeira o penhor da autonomia dos entes federados, tem-se que qualquer agressão, ainda que velada, a estes dogmas, constitui inconstitucionalidade. Entre nós, a federação é pétrea e indissolúvel, a não ser pela força bruta de uma revolução cessionista ou de outro Estado, vencedor de uma guerra inimaginável” .

D’outra margem, a apreensão de veículo emplacado em Estado diverso daquele em que residente ou domiciliado seu proprietário, com base em lei estadual autorizativa deste procedimento, em que pese a determinação do Código de Trânsito Brasileiro, nos parece medida excessiva e política para a cobrança do imposto, constituindo exemplo de prática que há muito vem sendo rechaçada pelo Supremo Tribunal Federal. Urge, então, que o legislador federal saia da inércia e cumpra seu papel constitucional, dispondo sobre as normas gerais desse imposto, de forma a impedir a proliferação de legislações estaduais tendentes a violar o Pacto Federativo.

5. Conclusão

As reflexões realizadas ao longo deste artigo nos permitiram chegar às seguintes conclusões:

1. O estudo da tributação sobre a propriedade, em especial, do IPVA, parece ainda não ter conquistado a atenção que merece, principalmente nas questões que dizem respeito aos conflitos federativos, o que se observa pela escassez de bibliografia específica sobre o tema e pelas raras decisões encontradas em nossos Tribunais Estaduais, que ressaltam a importância do presente trabalho.

2. A omissão do Congresso Nacional em estabelecer as normas gerais em matéria de IPVA conferiu ampla liberdade legislativa para os Estados e o Distrito Federal disporem sobre o assunto, de acordo com seus respectivos interesses, o que permite a coexistência de leis estaduais conflitantes, trazendo insegurança para o sistema constitucional tributário.

3. A previsão contida no art. 120 do Código de Trânsito Brasileiro de que os veículos devem ser registrados no município de residência ou domicílio de seus proprietários não vem sendo observada por alguns Estados, que buscam atrair contribuintes para os seus respectivos territórios, por meio de alíquotas menos onerosas, rompendo, assim, com a neutralidade exigida pela Constituição.

4. Por outro lado, as retaliações adotadas pelos Estados que questionam tais benefícios, por meio de sanções políticas impostas aos contribuintes, contrariam o pacto federativo, em especial, os dispositivos constitucionais que proíbem a limitação ao tráfego de bens ou pessoas por meio de tributos, o que acaba por fomentar a famigerada Guerra Fiscal.

5. Existindo mecanismos constitucionais para a correção destas distorções, exigir dos contribuintes que, consciente ou inconscientemente, cumpriram uma obrigação tributária, ainda que menos onerosa, fundamentada em lei estadual vigente, portanto, presumidamente válida, novo pagamento do imposto, parece uma quebra de confiança incompatível com o Estado Democrático de Direito.

6. O Supremo Tribunal Federal, embora não tenha se pronunciado especificamente sobre o tema, tem reconhecido que os entes federados não podem utilizar sua competência legislativa privativa ou concorrente para retaliar outros entes federados, sob o pretexto de corrigir desequilíbrio econômico, e que a integração nacional só pode ser atingida com a harmonia tributária, o que impede condutas que prejudiquem o elemento mais fraco da relação tributária, que é o contribuinte.

7. Urge, pois, que o Congresso Nacional cumpra sua função constitucional e disponha sobre as normas gerais desse imposto, através da competente lei complementar, de forma a prevenir os conflitos federativos, objetivando, assim, alcançar a tão propalada harmonia tributária por meio da repartição tributária que, se não puder ser justa, que seja ao menos segura, pois sem segurança não há justiça!

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