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As linguagens e a construção do conhecimento

Por:   •  24/6/2015  •  Pesquisas Acadêmicas  •  12.275 Palavras (50 Páginas)  •  104 Visualizações

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AS LINGUAGENS E A CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO - PARTE I

 

Terezinha Vieira

 

Fig. 44 _ Atividade Coletiva com Professoras-cursistas da UFU. Prata, jun./2003.

Introdução

Caro Professor,

Como você já viu, na Unidade 3 desse módulo, tratamos das relações entre o pensamento e a linguagem. Vamos voltar a falar um pouco mais sobre a linguagem, porque nosso mundo é feito de muitas linguagens. E nós, humanos, somos seres essencialmente comunicativos. Estamos sempre, para além da linguagem oral, exprimindo nossos sentimentos, intenções e desejos, por meio de nossos gestos, posturas e expressões faciais. Do mesmo modo, construímos "teorias" sobre as intenções, sentimentos e desejos dos outros, baseados em pistas fornecidas por tais formas de linguagem. Às vezes até mandamos mensagens para nós mesmos, em uma linguagem cifrada, metafórica - por exemplo, quando sonhamos -, linguagem essa que, na maioria das vezes, nem nós mesmos conseguimos interpretar.

Podemos, ainda, expressar, de forma gráfica, pictórica, plástica, musical, nossa maneira de apreender a realidade. E quando lemos uma poesia, escutamos uma canção, admiramos uma obra de arte criada por outras pessoas, é nossa sensibilidade e senso estético que estão sendo chamados a se manifestar.

Assim, tanto podemos nos exprimir por meio dessas linguagens, como somos sensíveis às produções culturais realizadas por outros, e que nelas se apóiam.

Também somos seres bastante brincalhões. Repartimos essa qualidade com os animais superiores da escala filogenética, principalmente aqueles que vivem da caça. Neste último caso, esses animais brincam apenas quando filhotes, durante um período em que se preparam para a vida adulta. Um gatinho, por exemplo, pode brincar com um novelo como se fosse agarrar um rato para o almoço do dia. Eles mostram, na brincadeira, aqueles comportamentos que lhes serão úteis mais tarde, na vida adulta, em situação de caça. Isso ocorre porque a situação real não permite muitos erros. Na selva, um animal que não coordene seus movimentos com precisão pode não chegar ao dia seguinte, quer por falta de alimento, quer porque se transforma em alimento de outros. Desenvolver tal precisão é, pois, para ele, uma questão de sobrevivência.

Para nós, é um pouco diferente. Construímos uma cultura, desenvolvemos nossa capacidade simbólica e continuamos gostando de brincar, mesmo quando adultos. Diz um experiente psicanalista chamado Winnicott que brincar é um sinal de saúde. E que, quando seus pacientes não conseguem brincar com suas idéias, a primeira coisa a fazer é recuperar neles esta capacidade.

Brincar, de fato, tem muito de criar. Quando pequenos, brincamos de um jeito.Quando grandes, nossas brincadeiras mudam, mas aí estamos nós outra vez sempre procurando um jeito de inovar, criar, fazer humor, brincar com as idéias, com as palavras, com as figuras, com as cores, com os sons, ou com o nosso próprio corpo.

E criar quase passa a ser, também para nós, uma questão de sobrevivência. Primeiro, porque vivemos em tempos difíceis e precisamos utilizar muito bem os poucos recursos de que dispomos para inventar novas formas de fazer frente às dificuldades, recombinando coisas velhas para atingir soluções novas. Em segundo lugar, porque vivemos em tempos de alta velocidade, com o mundo mudando muito rapidamente. E, se não formos suficientemente flexíveis, sucumbiremos frente à realidade.

Mas como fica a criança nisso tudo? Quando é que ela começa a tomar posse dessas novas formas de linguagem e utilizá-las? E que impacto essas linguagens têm sobre o seu próprio desenvolvimento? Como podemos educar uma criança para esse mundo em mudança se ignorarmos essas questões? Será que essa criança não precisaria de espaço, tanto no lar quanto na escola, para explorar essas linguagens, para poder melhor se expressar e apreender a realidade à sua volta?

E o professor também não precisaria desse espaço para resgatar, em si próprio, novas modalidades de dialogar consigo mesmo, com seus parceiros e com as crianças? Se o brincar se relaciona com o criar, como fica a possibilidade do criar para o professor, na sua sala de aula, e que conseqüências isto teria para o próprio criar do aluno?

Não se estaria, assim, abrindo um caminho para fazer com alegria aquilo que pode ser feito no ambiente da sala de aula?

Essas são algumas das questões que trazemos para você, professor, nesta última unidade do Módulo 5. Para buscar respostas a elas, vamos desenvolver as seguintes seções:

• As Múltiplas Linguagens da Criança: a Brincadeira de Faz-de-Conta, a Imitação e o Desenho

• O Brincar e a Construção do Conhecimento: Faz-de-Conta, História, Desenho e Escrita

• Os Processos Criativos no Contexto Educacional

Na primeira dessas seções, nossa intenção é mostrar-lhe as várias formas pelas quais a criança pode se expressar, além da linguagem oral, e o impacto que essas linguagens têm sobre o seu desenvolvimento.

Na segunda seção, vamos analisar como a brincadeira de faz-de-conta, as histórias e o desenho constituem sistemas de representação que se interligam à construção da escrita. Esses são conhecimentos interessantes para o professor alfabetizador.

Na terceira seção, vamos lhe falar sobre o que se entende por criatividade, para que você possa se repensar criativamente na escola.

Objetivos Específicos

Esperamos que, após o estudo dessas seções, você possa:

- estabelecer relação entre as diferentes linguagens e o desenvolvimento da criança;

- estabelecer relação entre as diferentes linguagens e a construção da escrita;

- estabelecer relação entre os processos criativos e a construção do conhecimento.

Texto Básico

Seção 1: As Múltiplas Linguagens da Criança: a Brincadeira de Faz-de-Conta, a Imitação, o Desenho

Objetivo específico: estabelecer relações entre as diferentes linguagens e o desenvolvimento da criança.

Professor, vamos começar esta seção lhe fazendo algumas perguntas: o que você pensa que significa a cruz da religião cristã? E a cruz suástica do nazismo? E o logotipo da rede Globo (a imagem de um globo terrestre), o que significa para você? E o que estes dois tipos de cruzes e o logotipo da Globo têm em comum?

Veja, quando nos referimos a algo, sempre o fazemos por meio de um outro algo. Não há como nos remetermos a qualquer elemento sem dispormos de um meio para tal. Assim, aquilo que será representado na linguagem precisa de um elemento representante, ou seja, aquilo que é significado na linguagem precisa de sua contrapartida significante. Se eu quero me referir à minha casa, preciso da palavra "casa" para exprimir o seu significado correlato.

 

Fig. 45 - Fonte: Curitiba. Prefeitura Municipal. Secretaria Municipal da Criança - Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (IPPUC). Creches em Curitiba: Espaço de Educação. Curitiba, 1992. p.54

Ou seja, a palavra, oral ou escrita, "casa" pode ser entendida como significante. O significado dessa palavra no dicionário é o significado ao qual estou me referindo ao dizer "casa". A esta relação significante/significado os lingüistas dão o nome de signo lingüístico.

O signo lingüístico é arbitrário, resulta de uma convenção da comunidade lingüística. Por que, por exemplo, determinado objeto se chama copo e não árvore? Por que um outro se chama rádio e não óculos? Há alguma relação direta entre o nome e a coisa por ele significada? Não! É a comunidade lingüística que vai construindo arbitrariamente os nomes das coisas até que se tornam convenções utilizadas nas práticas sociais. Mas se fossem apenas as palavras orais e escritas que designassem as coisas, então como saberíamos que a cruz dos cristãos representa a redenção do Cristo, que veio à terra para salvar a Humanidade, que a cruz suástica do Nazismo de Hitler representa uma cruzada pela eugenia da raça ariana, e que o logotipo da Globo representa a rede Globo como uma emissora que se espalha por uma grande área do globo terrestre? Porque essas cruzes e esse logotipo carregam em si mesmo, no seu formato, a idéia que querem transmitir.

Então, diferentemente dos signos, essas figuras não são arbitrárias, elas foram escolhidas porque sua forma já diz, diretamente, sobre a idéia a ser comunicada. Cruz dos cristãos = redenção pela morte de Cristo na cruz; cruz suástica = cruzada; logotipo da Globo = aldeia global. Os lingüistas costumam chamá-los de símbolos para diferenciá-los dos signos, que são arbitrários (embora nas traduções de textos de Vygotsky esta distinção entre símbolos e signos não chegue a ser feita. Vygotsky usa indiferentemente a palavra signo tanto num caso como em outro).

Atividade 1

Escreva, em um parágrafo, o que o logotipo da Globo, a cruz dos cristãos e a cruz suástica do Nazismo têm em comum.

Enfim, é importante guardar que não nos referimos às idéias apenas por meio de palavras, que são arbitrárias, mas que há também outros meios de representá-las, como o desenho e os gestos, por exemplo. Nesses últimos casos, dizemos que se trata de significantes motivados, porque existe uma semelhança entre o meio representante e aquilo que é representado (um significante que motiva nosso pensamento numa dada direção). E é por aí que construímos novas modalidades de linguagem, que podem ou não ser combinadas à linguagem falada ou escrita. Assim, a linguagem, para nós, enquanto "um sistema sofisticado de comunicação, que revela a capacidade do ser humano de criar um conjunto de signos para representar as entidades de nossa realidade" (Gregorim, 1997:25), não se esgota na linguagem oral ou escrita. Inclui, ainda, outras formas pelas quais podemos nos comunicar uns com os outros e compreender a realidade, como a linguagem pictórica, gestual ou plástica.

E a criança? Quando começa a dominar esses sistemas de linguagem? Para responder a essa questão, temos que nos lembrar do que você já viu nesse mesmo módulo, na Unidade 2, isto é, temos que nos lembrar de quando emerge a função símbólica para a criança, aquela função que lhe permite usar uma coisa para evocar, simbolizar, significar outra.

Essa função simbólica está sendo preparada no período sensório-motor, mas só emerge ao final desse período, quando a criança está ingressando no período pré-operatório. É aí, então, que ela começa a dominar as várias formas de linguagem que a função simbólica possibilita.

Para esclarecer um pouco mais o que foi dito, vamos tomar a idéia de árvore. Podemos representar árvore pela palavra escrita árvore, pela palavra falada árvore; pelo desenho de uma árvore; imitando uma árvore com nosso corpo; e mesmo brincando de ser uma árvore cansada que quer virar gente! Neste último caso, já estamos no domínio do jogo simbólico ou da brincadeira de faz-se-conta. Mas só conseguimos fazer isto depois da emergência da função simbólica.

Como as relações entre pensamento e linguagem já foram tratadas em módulo anterior, no presente módulo nosso interesse é destacar a importância que têm outras manifestações simbólicas da criança, como o desenho, a brincadeira de faz-de-conta e a imitação, para o seu desenvolvimento e para que possa construir conhecimentos. Essas manifestações simbólicas estão sendo entendidas como formas de linguagem porque constituem sistemas de símbolos por meio dos quais a criança se expressa e procura compreender o mundo à sua volta.

 

Fig. 46 _ Professora-cursista da FAFIPA e seus alunos. E.M. Tio Odaísa, Inhapim, 2004.

Atividade 2

Assinale com um F ou um V as afirmações que se seguem conforme sejam falsas ou verdadeiras, de acordo com o texto precedente.

a ( ) A relação significante-significado possibilitada pela função simbólica varia em função do sexo.

b ( ) A relação significante-significado possibilitada pela função simbólica é arbitrária para o signo mas não para o símbolo.

c ( ) É a função simbólica que nos capacita a usar diferentes linguagens: a oral, as do desenho, da imitação, do faz-de-conta.

d ( ) A função simbólica emerge muito cedo no desenvolvimento, estando presente desde o nascimento.

A imitação, o desenho e a brincadeira de faz-de-conta

É muito comum encontrarmos papais e mamães vaidosos mostrando como suas crianças sabem bater palminhas, dar adeus, mandar beijinhos para os outros! Na verdade, os gestos imitativos que acontecem na frente de um modelo começam cedo na vida da criança, bem antes que ela complete dois anos. Mas só por volta desta idade, ou próximo a ela, a criança se torna capaz de repetir um comportamento que observou há algum tempo atrás - portanto, sem a presença do modelo. Piaget denominou essa manifestação simbólica de imitação diferida ou defasada no tempo.

A imitação é muito importante para o faz-de-conta, uma brincadeira muito comum entre crianças dos dois aos seis anos, aproximadamente.Você certamente se lembra de quando brincava de casinha ou escolinha com suas bonecas ou amiguinhos, ou das brincadeiras de polícia e bandido, mais comuns entre os meninos, não? Nelas, a criança altera "de mentirinha" a sua realidade. Faz-de-conta que um objeto é outro. Por exemplo, pode usar um toquinho como carrinho, ou pode fazer de conta que bebe refrigerante, em um copo vazio. Também nesse caso, a criança imita o adulto nas suas atividades de trabalho e nas suas interações sociais: faz-de-conta que é a mãe fazendo comida ou dando banho no bebê, ou que é o médico atendendo a um paciente. A brincadeira de faz-de-conta também é chamada de jogo imaginativo ou jogo simbólico.

E por que as crianças começam a brincar de faz-de-conta? Vejamos a explicação que nos dá Vygotsky (1984) a esse respeito. De acordo com esse autor, a criança mais nova não sabe esperar quando deseja alguma coisa. Ela quer e quer mesmo e quando não obtém o que deseja, na mesma hora, costuma "abrir o berreiro", a não ser que consigamos distraí-la com alguma outra coisa.

No entanto, na medida em que vai crescendo, essa criança aprende a querer coisas que não pode obter de imediato. Por exemplo, quer ser como a mãe e fazer o que a mãe faz dentro de uma casa. Leontiev (1989) nos diz que essas novas necessidades surgem quando a criança começa a descobrir as ações humanas sobre as coisas, como dirigir um carro, manipular as vasilhas e o fogo para fazer o almoço, dar aulas (como a professora), utilizar o computador, movimentar uma máquina de costura, e assim por diante. Esses usos, por sua vez, são realizados em situações sociais durante as quais as pessoas interagem através de papéis como os de pai/mãe e filhos, professor e aluno, motorista e passageiro. Na verdade, o que está acontecendo é que a criança começa a se identificar com os adultos à sua volta e seus papéis sociais, interessando-se pelo que eles fazem, pelos instrumentos do trabalho humano, pelas interações que desenvolvem uns com os outros. Em outras palavras, a criança descobre as ações humanas sobre as coisas e as interações que se dão em situações sociais.

A partir daí, a criança quer ocupar o lugar do adulto, mas ainda não pode fazê-lo - nossos instrumentos de trabalho são altamente complexos, bem como nossas situações sociais. Assim, de certa forma, a criança se sente aleijada deste mundo adulto que começa a se descortinar para ela. Para resolver essa contradição entre querer e não poder ocupar o lugar do adulto, a criança cria o mundo ilusório do brinquedo, isto é, vivencia esse lugar, na situação de faz-de-conta, e transforma ficticiamente os objetos, imaginando que são os da situação real que representam, isto é, substitui uns pelos outros.

Assim, por exemplo, pode pegar um galho de árvore ou uma vassoura, dispô-la entre as pernas, com uma das extremidades tocando o solo e a outra, à sua frente, segurar com uma das mãos e imitar, com suas pernas, os movimentos do trotar de um cavalo, como se estivesse cavalgando. Nesse caso, a criança cavalga numa situação imaginária, evocando a situação real de cavalgar. E o galho de árvore ou o cabo de vassoura são transformados em cavalo de faz-de-conta. Isto indica que a criança está ignorando o significado real do objeto, galho ou vassoura, para atribuir-lhe, pela sua ação, um novo, o de cavalo. Assim, com seus gestos e o auxílio do objeto, ela significa o animal ausente. Logo, tais gestos e objetos podem ser entendidos como significantes (motivados) para um determinado significado, a idéia de cavalo, porque a ela nos remete.

Certa vez, presenciamos uma brincadeira muito interessante entre duas crianças na área externa de uma creche. Uma garotinha mexia com um pauzinho um pouco de terra dentro de um copinho de plástico, como se estivesse fazendo comidinha. Um garotinho se aproximou e disse para ela: "você é a mãe, eu sou o filhinho. Eu vou subir no telhado..." E, correndo, entrou no labirinto que estava próximo (significando-o como telhado da casa), mas a garotinha não prestou atenção. Então, o menino deu para ela uma pista: "Fala não, e vem me bater". O garoto, portanto, montou todo o "roteiro" a partir do fazer comida da garota, que ele assimilou ao papel de mãe e, a partir daí, criou uma situação imaginária de subir no telhado, a qual deveria ser corrigida, disciplinada pela mãe. A menina não entrou na brincadeira e essa acabou naquele mesmo momento.

Vamos pensar um pouco, agora, sobre algumas razões pelas quais essa linguagem lúdica é importante para a criança. Entre outras coisas, ajuda-a a falar de si mesma, pois ainda é difícil para ela expressar-se, como o fazemos, pela linguagem oral. Desse modo, através do símbolo lúdico, ela pode expressar seus sentimentos corporal e metaforicamente. Temos visto, trabalhando em hospitais, crianças com diabetes montando festinhas com docinhos diet, ou crianças com leucemia reproduzindo parte do tratamento pelo qual passam. Nesses ambientes marcados por ansiedade, frustrações e conflitos, o brincar se presta para a criança expressar suas angústias, seu sofrimento e suas dificuldades. Mas ao colocar-se no lugar do adulto, quem a criança faz passar pela situação difícil é quase sempre a boneca. A própria criança é sempre o médico, a enfermeira, a mãe, enfim, aquele outro que a manipula ou de quem recebe instruções para agir de uma ou outra forma. Na brincadeira, a criança muda de lugar com esse outro e vai fazer com a boneca aquilo que fazem com ela.

Além de poder expressar sua angústia e seus temores por meio dessa linguagem, ao mesmo tempo em que brinca, a criança está como que ganhando distância da situação que vive na vida real e buscando compreendê-la, de um outro ponto de vista - aquele do adulto. Seria o equivalente à nossa capacidade de reflexão.

Convém lembrar aqui, ainda, o quanto é importante a brincadeira coletiva para o desenvolvimento sócio-cognitivo da criança. Nestas situações, as crianças precisam se manter como elas mesmas, sendo ao mesmo tempo o outro, no desempenho do papel, além de precisarem aprender a coordenar sua ação com a ação de outra criança também na representação do papel. Segundo Elkonin (1998), um discípulo de Vygotsky, esses movimentos demandados pelo faz-de-conta coletivo favorecem a capacidade de descentração da criança, porque requerem que cada um apreenda a perspectiva do outro. A simbolização, então, ocorre nesse encontro. Resulta de um ato partilhado.

 

Fig. 47 _ Alunos de uma Professora-cursista da UFJF no Projeto Histórias para Viver e Contar _ Conhecendo Piraúba. E.M. Monsenhor Ibrahim Gomes Caputo. Piraúba, set./ 2003.

De acordo com Piaget (1971), com o desenvolvimento, a brincadeira de faz-de-conta vai se tornando cada vez mais organizada e coerente, e as crianças procuram imitar cada vez mais fielmente a realidade. Por exemplo, uma criança mais nova pega um graveto e faz-de-conta que atira, apontando-o em qualquer direção e emitindo sons onomatopaicos como tum... tum... tum... A criança mais velha já insere essa ação com o graveto numa brincadeira de polícia e bandido. Ou as crianças mais velhas representam uma festinha de aniversário com todos os seus detalhes e assim por diante.

Piaget assinalou ainda que essa linguagem lúdica é altamente importante para a criança, porque o símbolo lúdico constitui uma linguagem mais adequada que a linguagem convencional. Por meio dela, a criança pode expressar-se e compreender a seu modo a realidade do mundo adulto à sua volta, quando ainda não dispõe de estruturas cognitivas suficientemente elaboradas, devido ao estágio de desenvolvimento em que se encontra (você se lembra da noção de estádio, estudada na Unidade 5 Módulo 2).

Atividade 3

Assinale com um F ou um V as afirmações que se seguem, conforme sejam falsas ou verdadeiras, de acordo com os parágrafos precedentes.

a ( ) O professor pode se comunicar melhor com a criança, se observar o seu brincar e se comunicar com ela pela linguagem lúdica.

b ( ) Ao brincar de faz-de-conta, a criança pode se colocar no lugar que o adulto assume em relação à ela no cotidiano.

c ( ) A fantasia da brincadeira de faz-de-conta costuma ser prejudicial para o desenvolvimento da criança.

d ( ) A brincadeira de faz-de-conta é típica de crianças mais novinhas, que estão no período sensório-motor.

No que diz respeito ao desenho, a criança, em suas primeiras produções, realiza não mais que garatujas e rabiscos (entre aproximadamente dois e quatro anos). Em seguida, a criança passa a uma fase pré-esquemática entre quatro e sete anos e evolui, nos anos seguintes, em direção à fase esquemática (entre 7 e 9 anos)(Lownfeld & Brittain, 1970). Ao longo deste período, vai atingindo os esquemas. Segundo os autores mencionados, um esquema pode ser entendido "como o conceito a que a criança chegou e que repetirá uma ou outra vez enquanto nenhuma experiência intencional a influenciar para que mude" (p.181).

Uma característica da fase esquemática é o desenho de raio-x, isto é, a criança desenha coisas e pessoas como que transparentes: uma casa com seus móveis no interior, uma pessoa vestida com as pernas aparecendo sob a roupa, etc. Outra característica é o destaque que dá a certos aspectos figurativos que tenham mais significado para ela, desconsiderando tamanhos relativos: se quer desenhar um menino pegando uma maçã pode fazer o braço muito longo enfatizando o gesto.

É após essa fase esquemática que a criança respeitará mais claramente a perspectiva e os tamanhos relativos das figuras em função da distância com que os objetos são representados, assim como dos diferentes pontos de vista que devem ser considerados para visualizar algo. A imitação, no caso da subordinação à imagem visualizada, participa menos das fases iniciais do desenho e mais de desenhos ulteriores.

Segundo Piaget, a evolução do desenho se dá paralelamente ao desenvolvimento das noções espaciais. Vygotsky, por sua vez, enfatiza que, na medida em que o desenho vai evoluindo, vai se tornando subordinado à linguagem interna, de modo que, inicialmente, a criança é incapaz de antecipar o que vai desenhar. É o desenvolvimento da linguagem interna que lhe dá condições para antecipar e planejar os seus desenhos. Para Vygotsky (1984:127) na verdade, o "desenho é uma linguagem gráfica que surge tendo por base a linguagem verbal".

Vamos tratar mais detalhadamente, na próxima seção, de algumas implicações dessas múltiplas linguagens da criança para a construção do conhecimento, mais específicamente para a construção da escrita como um sistema de representação.

Sintetizando

As palavras são meios de que dispomos para recriar a realidade e evocar coisas ausentes. Mas também podemos recriar a realidade por meio do desenho, da imitação e da brincadeira de faz-de-conta ou jogo simbólico. A criança adquire a capacidade para usar tais linguagens por volta de dois anos, quando da passagem do período sensório-motor para o período pré-operatório. É, pois, durante essa passagem que emerge a função simbólica.

Tais linguagens são muito importantes para o desenvolvimento da criança e para a construção do conhecimento. O simbolismo lúdico (do desenho, do faz-de-conta) permite à criança lidar com seus medos e suas angústias, retomar sob seu controle acontecimentos traumáticos do seu cotidiano, satisfazer desejos. Mas essa linguagem é importante não apenas do ponto de vista emocional, como também do ponto de vista sócio-cognitivo, já que, por meio dela, as crianças podem comunicar-se entre si durante suas brincadeiras, sendo a brincadeira coletiva o principal meio de desenvolvimento da criança da faixa pré-escolar.

Seção 2: O Brincar e a Construção do Conhecimento: a Brincadeira de Faz-de-Conta, a História, o Desenho e a Escrita

Objetivo específico: estabelecer relações entre as diferentes linguagens e a construção da escrita.

Para abordar a temática desta seção, vamos apontar algumas relações existentes entre: (a) a brincadeira de faz-de-conta e a história, ambas atividades importantes, não só para a construção da imaginação, mas também para a capacidade de produção de textos; (b) a brincadeira de faz-de-conta e o desenvolvimento da abstração que, por sua vez, é também fundamental para a construção da leitura e da escrita como um sistema de representação; e (c) entre a brincadeira de faz-de-conta e o simbolismo de segunda ordem, o qual é uma das características do processo de alfabetização em suas fases iniciais.

 

Fig. 48 _ Fonte: Revista Galileu. Ano 9, nº 108, jul./2000. p.89

Brincadeira de faz-de-conta e história

Você já reparou que uma criança quando brinca, entra e sai da brincadeira em vários momentos? Por exemplo, uma criança pode estar rodando um carrinho no chão, fazendo-o entrar e sair de uma garagem, enquanto simula os sons do motor em funcionamento "bruuummm... bruuummm... bruuummm... bruuummm...", mas, eventualmente, pode parar, conversar algo com o colega do lado, voltar a rodar o carrinho, revirar o carrinho nas mãos, observar a rodinha e voltar a brincar. Isto acontece porque as fronteiras da brincadeira são muito fluidas. A criança entra e sai dela com facilidade.

Ainda enquanto brinca, ela pode comportar-se como um sujeito ator - como as duas crianças que citamos antes, uma das quais se dizia o filhinho e atribuía à outra o papel de mãe -, ou pode se comportar como uma espécie de diretor de cena, ficando mais afastada, manipulando pequenos objetos nos quais projeta o faz-de-conta, como no caso do carrinho, ou no caso de atuar com fantoches.

Além disso, a representação pode ser curta, ou ser mais complexa, envolvendo uma seqüência de ações.

Certa vez, em uma creche, observamos três crianças sentadas em um banco de pedra "dirigindo o carro em uma viagem". Num determinado momento, uma delas disse que o carro tinha parado, que era por causa da vela e que ia buscar a vela. Saiu, pegou um graveto, voltou, colocou-se sob o banco e enquanto mexia com o graveto sob o banco, perguntou:"pegou?" E os de cima: "rrráaaammm...rrráaaammm... rrráaaammm... pegou! O garoto voltou a subir no banco, deixou o graveto sobre o mesmo e "dirigiu" mais um pouco, antes que a brincadeira terminasse.

Você pode observar que esta brincadeira teve um enredo mais elaborado, do que o da criança que fazia o carrinho entrar e sair da garagem, porque a criança problematiza um defeito no carro. Os enredos tendem a tornar-se mais complexos com o evoluir da brincadeira, na medida em que a criança se desenvolve. A brincadeira de faz-de-conta também vai-se tornando mais organizada e caminhando em direção a um simbolismo coletivo.

Você pode ter percebido que existe uma semelhança entre a brincadeira de faz-de-conta (sobretudo as mais complexas) e a história, no que diz respeito à produção de enredos.

Certamente se lembra das histórias de sua infância, não é mesmo? Quem não conhece a aventura do Chapeuzinho Vermelho, ou da Bela Adormecida, ou da Branca de Neve e tantas outras que nos faziam sonhar quando crianças! Segundo Apllebee (citado por Perroni, 1992), a história é um tipo de narrativa que representa "um dos muitos usos da língua em nossa cultura" (p.31). Costuma começar com expressões do tipo "era uma vez", terminar com expressões como "fim", ou "foram felizes para sempre". Geralmente, conta-se uma história usando os tempos passados dos verbos e com várias mudanças na entonação de voz, para dramatizar as situações narradas. A história apresenta uma estrutura global, de modo que, de início, o narrador prepara o ouvinte para determinado problema ou conflito que deve emergir. A esse conflito se seguem sua resolução e o fechamento da história. Por exemplo, na história do Chapeuzinho Vermelho, a intenção da menina é levar o bolo para a vovó. A complicação surge quando aparece o lobo, que corre na frente de Chapeuzinho, engole primeiro a vovó e depois Chapeuzinho. A solução chega com o caçador, que mata o lobo. E a história se fecha com Chapeuzinho e a vovó novamente juntas.

Por outro lado, sabe-se que, embora a linguagem oral e a escrita sejam bem diferentes, a história oral apresenta uma estrutura semelhante à do texto escrito. Sabe-se também que crianças que ouvem muitas histórias antes de se alfabetizarem costumam ter mais facilidade nas suas produções escritas. Disso se deduz que oferecer espaços para as crianças brincarem de faz-de-conta nos anos pré-escolares, contar-lhes e ou ler-lhes histórias, ajudá-las a produzirem suas próprias histórias são fatores que podem repercutir, mais tarde, no letramento dessas crianças.

Mas também há diferenças entre a brincadeira de faz-de-conta e a história. Na primeira, como já dissemos, a criança assume um papel de ator ou diretor de cena, mas não tem compromisso com uma platéia: a criança não está representando para ninguém em particular assistir, como, por exemplo, ocorre na representação teatral, em que os atores representam para uma platéia. Assim, como ator ou diretor na brincadeira, a criança pode sair e reentrar na atividade quando bem entender. Ou seja, a criança não brinca para que alguém a veja brincando. Brinca para sua própria diversão. Já a narrativa da história supõe uma audiência e um fio condutor. As fronteiras, nesse caso, precisam ser mais definidas, e a criança assume o papel de narrador.

Atividade 4

Resuma, em um parágrafo de aproximadamente oito linhas, as principais semelhanças e diferenças entre a brincadeira de faz-de-conta e a história.

A brincadeira de faz-de-conta e a abstração

Passemos agora a um segundo aspecto pelo qual a brincadeira de faz-de-conta se aproxima da construção do conhecimento e, mais especificamente, da aprendizagem da escrita.

Quando a criança é mais nova, ela só age em função daquilo que vê. Isto significa também dizer que, para essa criança, a motivação (para agir) e a percepção estão unidas. Se você lhe dá, por exemplo, um graveto, ela pode bater com ele sobre alguma superfície, pode esfregá-lo no chão, deixá-lo cair, exercer sobre ele uma série de ações sensório-motoras conhecidas. Ela vê um graveto e age sobre ele tal qual ela o vê, ou conforme ele é. Porém, quando chega ao faz-de-conta, ela, além disso, pode alguma coisa mais: pode agir como se ele fosse alguma outra coisa diferente de um graveto. Já demos o exemplo de uma criança que usou um graveto como vela de carro. Isto acontece porque as ações da criança estão começando a ser motivadas não apenas pelo que ela vê, mas também por suas idéias, pelo que ela pensa, pelo que ela deseja, pela lembrança de situações ausentes. Isso indica que ela está começando a se apropriar do signo, está começando a ser capaz de representar.

É a capacidade simbólica que lhe permite evocar coisas ausentes, que lhe permite usar uma coisa no lugar de outra, de modo que começa a se libertar da força determinadora dos objetos presentes, que ditavam para ela o que podia ser feito com eles. Essa conquista significa um giro de 180o na sua maneira de lidar com a realidade: antes a realidade imediatamente dada se impunha à criança. Agora, isso não mais acontece porque ela pode alterar simbolicamente esta realidade, fazendo de conta que uma coisa é aquilo que ela não é, ou fazendo de conta que uma situação acontece de acordo com seus desejos. Por meio do símbolo lúdico ela pode, na sua imaginação, até criar um novo mundo.

Quando um garoto cria um defeito imaginário em um carro, durante a representação de uma viagem, temos aí o embrião da fantasia que atravessa o mundo da dramaturgia, dos romances, dos filmes, da ficção de modo geral. Mas, de acordo com Vygotsky, esta conquista do signo não se faz de uma só vez. E é aí, para consolidá-la, que entra a ajuda da brincadeira de faz-de-conta. E como isto acontece? O objeto usado pela criança - por exemplo, o galho que é usado como cavalo - funciona como uma cunha, como um objeto pivô, separando a idéia de cavalo de um cavalo real. Esse objeto pivô é alguma coisa de concreto que permite à criança separar estes dois campos, o do pensamento e o da realidade. E é nesse sentido que favorece o desenvolvimento da capacidade de abstração.

Ou seja, nesse momento, ela precisa ainda se apoiar no objeto pivô ou representativo, que é concreto, material, para desenvolver sua abstração, como se a linguagem lúdica da brincadeira do faz-de-conta fosse uma linguagem intermediária entre a ausência da capacidade de representar e esta capacidade em estágio mais avançado.

Se nos lembrarmos de que o nosso sistema de escrita é um sistema de representação altamente abstrato, apoiado no uso de signos, fica então mais evidente ainda a necessidade que todas as crianças têm de brincar de faz-de-conta no período pré-escolar. Ou seja, o brincar de faz-de-conta, ao favorecer o desenvolvimento da abstração e a apropriação do signo, disponibiliza mais a criança para a construção da leitura-escrita, que também envolve um sistema altamente abstrato e cujas primeiras fases de construção são simultâneas ao período da brincadeira de faz-de-conta, por ocorrerem na faixa pré-escolar.

 

Fig. 49 _ Fonte: Folder comemorativo dos 20 anos do Centro de Desenvolvimento da Criança _ UFMG.

A brincadeira de faz-de-conta e o simbolismo de segunda ordem

Um terceiro aspecto pelo qual a brincadeira de faz-de-conta se aproxima da leitura/escrita refere-se ao fato de que o faz-de-conta pode estar favorecendo um simbolismo de segunda ordem, como é a escrita: quando a criança começa a aprender a escrever, apóia-se na palavra oral que já representa alguma coisa, sendo, portanto, essa palavra oral, um simbolismo de primeira ordem em relação à coisa representada. Já a palavra escrita que está apoiada na palavra oral (por exemplo, na fase de soletração), representa um simbolismo de segunda ordem em relação à coisa representada, porque precisa passar antes pela palavra oral. Posteriormente, quando a criança se torna um escritor mais fluente, dispensa o apoio na palavra oral. Logo, a escrita passa a simbolismo de primeira ordem porque estaria representando a idéia sem necessitar de outras mediações além dos próprios signos que ela envolve.

Atividade 5

Marque com um F ou um V as afirmações que se seguem, conforme sejam falsas ou verdadeiras, de acordo com o texto precedente.

a ( ) O objeto representativo (pivô), ao separar o campo do significado do objeto real, favorece o desenvolvimento da abstração na criança.

b ( ) Uma criança que usa um pedaço de jornal como se fosse dinheiro ao brincar de compra e venda está submetida ao objeto em vez de submetê-lo à sua imaginação.

c ( ) O simbolismo de segunda ordem pode ser demonstrado para a escrita mas não para o faz-de-conta.

d ( ) Por favorecer o desenvolvimento da abstração, o faz-de-conta se aproxima da construção da leitura e da escrita.

e ( ) O professor que favorece o faz-de-conta está ajudando no desenvolvimento da abstração da criança

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