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A historicidade das coisas

Por:   •  9/12/2015  •  Trabalho acadêmico  •  3.807 Palavras (16 Páginas)  •  327 Visualizações

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Recortes do texto de Bruno Latour: A historicidade das coisas – Por onde andavam os micróbios antes de Pasteur?

  • ‘’Então’’, dirá a pessoa de bom senso, num tom ligeiramente exasperado, ‘’os fermentos existiam antes de Pasteur fazê-los? Não há como fugir à resposta: ‘’Não, não existiam antes de Pasteur surgir’’ – resposta óbvia, natural e mesmo, como mostraremos, de muito bom senso!
  • Pasteur deparou com uma substância vaga, nebulosa e cinzenta pousada humildemente nas paredes de seus frascos e transformou-a no fermento esplêndido, bem-definido e articulado a voltear magnificamente pelos salões da Academia.
  • O fermento era uma parte da realidade ‘’lá fora’’ que Pasteur ‘’descobriu’’ graças à sua percuciente observação.
  • Não, temos não só de repensar o que Pasteur e seus micróbios andavam fazendo antes e depois do experimento como remodelar os conceitos que o arranjo moderno nos transmitiu para estudarmos tais eventos. A dificuldade filosófica, suscitada pela pronta resposta que dei à pergunta acima, não reside, porém, na historicidade dos fermentos e sim na palavrinha ‘’fazer’’.
  • Se, por ‘’historicidade’’, entendermos apenas que nossa ‘’representação’’ contemporânea dos microrganismos data de meados do século XIX, não haverá problema. Teremos simplesmente voltado à linha divisória entre questões epistemológicas e ontológicas, que decidíramos abandonar.
  • A fim de eliminar essa linha, asseguramos historicidade aos microrganismos e não apenas aos humanos que os descobriram. Isso pressupõe que sejamos capazes de dizer que não apenas os micróbios-para-nós-humanos, como também os micróbios-para-si-mesmos mudaram desde os anos 1850. Seu encontro com Pasteur mudou-os igualmente. Pasteur, digamos, ‘’aconteceu’’ para eles.
  • Se, de outra perspectiva, entendermos por ‘’historicidade’’ unicamente o fato de os fermentos ‘’evoluírem no tempo’’, a historicidade de um fermento se enraizaria firmemente na natureza. Ao invés de estáticos, os fenômenos seriam definidos como dinâmicos. Esse tipo de historicidade, no entanto, não inclui a história da ciência e dos cientistas.
  • Novamente, a linha divisória entre o que pertence à história humana e o que pertence à história natural não seria cruzada
  • A epistemologia e a ontologia permaneceriam separadas, não importa quão agitado ou caótico se mostrasse o mundo de cada lado do abismo.
  • Na primeira seção, farei um levantamento do novo vocabulário de que precisamos para nos desembaraçar da sua categoria modernista.
  • Em seguida, a fim de testar a utilidade desse vocabulário, passarei a outro exemplo canônico da vida de Pasteur, o debate com Pouchet sobre a geração espontânea – descendo assim dos fermentos para os micróbios.

As substâncias não têm histórias, mas as proposições têm

  • Temos agora duas listas de instrumentos: objeto, sujeito, lacuna e correspondência, de um lado; humanos, não-humanos, diferença, proposição e articulação, de outro.
  • Que transformações sofrerá a noção de história quando for instalada nesses dois cenários diferentes?
  • Sem a noção de articulação, era impossível responder ‘’não’’ à pergunta ‘’Os fermentos (ou os micróbios) existiam antes de Pasteur’’?, pois, assim incidiríamos numa espécie de idealismo.
  • Nós, porém, começamos a entender que o par humano-não-humano não envolve um cabo de guerra entre duas forças opostas. Ao contrário, quanto mais atividade houver por causa de uma, mais atividade haverá por causa de outra.
  • Em suas variadas formas – inclusive, é claro, o construtivismo social -, o realismo ostentou uma excelente virtude polêmica perante aqueles que atribuíam independência excessiva ao mundo empírico.
  • A grande vantagem das proposições é que elas não precisam ser ordenadas em apenas duas esferas. Das proposições se pode dizer, sem nenhuma dificuldade, que são muitas. Desdobram-se e não lhes é necessário ordenar-se numa dualidade. Graças ao novo quadro que tento pintar, o tradicional cabo de guerra é desmantelado duas vezes: não há vencedores ou perdedores, mas também não há duas equipes.
  • Certamente, a dicotomia sujeito-objeto apresenta uma grande vantagem: dá sentido claro ao valor de verdade de uma assertiva. Diz-se que uma assertiva faz referência se, e somente se, houver um estado de coisas que lhe corresponda.
  • A frase ‘’Os fermentos existiam antes de Pasteur fazê-los’’ significa duas coisas inteiramente diversas, quando é capturada entre os dois pólos da dicotomia sujeito-objeto e quando é inserida na série de humanos e não-humanos articulados. Chegamos agora ao x da questão. É aqui que descobriremos se nosso teste de torção se sustenta ou se esfacela.
  • Na teoria da correspondência da verdade, os fermentos estão no mundo exterior ou não; no primeiro caso, sempre estiveram lá e no segundo nunca. Não podem aparecer e desaparecer como os sinais luminosos de um farol.
  • As assertivas de Pasteur, ao contrário, correspondem ou não a um estado de coisas, e podem aparecer e desaparecer segundo os caprichos da história, o peso das pressuposições ou as dificuldades da tarefa.
  • Se utilizamos a dicotomia sujeito-objeto, então os dois – e apenas os dois – protagonistas não podem partilhar igualmente a história. A assertiva de Pasteur talvez tenha uma história – ocorreu em 1858 e não antes -, mas o mesmo não se pode dizer do fermento, pois ele sempre esteve ou nunca esteve ‘’lá fora’’.
  • Não haverá sentido na expressão ‘’história da ciência’’ se, de alguma forma, não afrouxarmos a tensão entre esses dois pólos (aquilo que tem e aquilo que não tem história) – mesmo que se possa dizer ainda que a natureza é dotada de dinamismo, o que representa outro tipo totalmente diverso de historicidade.
  • Felizmente, graças à noção de referência circulante, não há nada mais simples que afrouxar a tensão entre os dois pólos.
  • De que modo a referência circulante nos ajuda a definir a historicidade das coisas? É muito simples: toda mudança na série de transformações que compõe a referência fará uma diferença e as diferenças são tudo o que exigimos, de começo, para pôr em movimento uma historicidade vivida.
  • O que Pasteur deixou claro para nós é que nós passamos lentamente de uma série de atributos para uma substância. O fermento começou como atributos e terminou como substância, isto é, uma coisa claramente delimitada, com nome, com renitência, o que era mais que a soma de suas partes.
  • O estado de coisas, que a filosofia da linguagem tentou inutilmente alcançar por sobre a estreita ponte da correspondência, está em toda parte, sólido e duradouro na própria estabilidade das instituições. Aqui, aliás, chegamos bem mais perto do senso comum: dizer que os fermentos começaram a ser firmemente institucionalizados em Lille no ano de 1858 não pode, decerto, funcionar senão como truísmo.
  • As associações de entidades possuem uma história quando pelo menos um dos artigos que a constituem se altera.
  • Qualificamos de maneira correta o tipo de historicidade que no momento distribuímos, com extrema equanimidade, entre todas as associações que constituem uma substância.
  •  A história, por si só, não assegura que alguma coisa interessante aconteça. Superar a linha divisória modernista não é o mesmo que garantir a ocorrência de eventos. Se atribuímos um significado racional à pergunta ‘’Os fermentos existiam antes de Pasteur?’’, ainda não nos livramos da categoria modernista. Seu ímpeto não é apenas mantido pela polêmica linha divisória entre sujeito e objeto como reforçado também pela noção de causalidade.
  • Se a história não tem outro significado a não ser concretizar uma potencialidade – isto é, efetivar o que já existia na causa -, então, independentemente da sarabanda de associações que ocorrerem, nada, ou pelo menos nenhuma coisa nova, acontecerá jamais, porquanto o efeito estava oculto na causa como potencial.
  • Os estudos científicos não só deveriam abster-se de utilizar a sociedade para explicar a natureza, e vice-versa, como abster-se de utilizar a causalidade para explicar seja lá o que for. A causalidade vem depois dos eventos, não antes.
  • No esquema sujeito-objeto, a ambivalência, a ambiguidade, a incerteza e a plasticidade inquietavam apenas os humanos que abriam caminho rumo a fenômenos em si mesmos garantidos. Mas a ambivalência, a ambiguidade, a incerteza e plasticidade acompanham igualmente criaturas às quais o laboratório oferece a possibilidade de existência, uma oportunidade histórica.
  • A fermentação experimentou outras vidas antes de 1858, em outros lugares, mas sua nova concrescência, para empregar mais um termo de Whitehead, é uma vida única, data e localizada, oferecida por Pasteur – ele próprio transformado por sua segunda descoberta – e por seu laboratório.

Um invólucro espácio-temporal para as proposições

  • Se eu quiser trazer a pergunta ‘’Onde estavam os fermentos antes de Pasteur?’’ para a esfera do senso comum, terei de mostrar que o vocabulário por mim esboçado explica melhor a história das coisas quando estas são encaradas exatamente como quaisquer outros eventos históricos, não como um leito estável sobre o qual a história social se desenrola e que só pode ser justificado pelo apelo a causas já presentes.
  • Para tanto, recorrei aos debates entre Luís Pasteur e Féliz Archimede Pouchet sobre a existência da geração espontânea.
  • O êxito de Pasteur em retirar o fenômeno comum de Pouchet do espaço-tempo requeria uma extensão gradual e meticulosa da prática laboratorial a cada terreno e a cada reivindicação de seu adversário.
  • ‘’Finalmente’’, a totalidade da bacteriológica emergente da agroindústria e da medicina, fiada desse novo conjunto de práticas, erradicou a geração espontânea, transformando-a em algo que, posto houvesse sido uma ocorrência comum durante o século, representava agora a crença num fenômeno que ‘’nunca’’ existira ‘’em lugar nenhum’’ do mundo.
  • A lenta expulsão da geração espontânea de Pouchet por Pasteur não significa que ela nunca foi parte da natureza.
  • Mesmo em nossos dias ainda podemos encontrar alguns bonapartistas, embora sua chance de alcançar a presidência seja nula; da mesma forma, topo às vezes com adeptos da geração espontânea que defendem a postura de Pouchet associando-a, por exemplo, à prebiótica, que é o estudo das eras prístinas da vida, e querem reescrever a história sem jamais conseguir publicar seus ensaios ‘’revisionistas’’.
  • Tanto os bonapartistas quanto os defensores da geração espontânea foram levados à parede, mas sua simples presença constituiu um indicador interessante de que o ‘’finamente’’ graças ao qual os filósofos da ciência puderam, no primeiro modelo, livrar para sempre o mundo das entidades que se haviam revelados errôneas é excessivamente brutal. E não apenas brutal: ele ignora também a quantidade de trabalhos que ainda precisa ser feita, todos os dias, para ativar a versão ‘’definitiva’’ da história.
  • Sempre é perigoso imaginar que, em algum momento da história, a inércia basta para preservar a realidade de fenômenos que só com muitas dificuldades foram produzidos. Quando um fenômeno existe ‘’em definitivo’’, isso não quer dizer que existirá eternamente independentemente de toda prática e disciplina, mas que foi inserido numa instituição de massa muito dispendiosa, que tende de ser monitorada e protegida com o máximo cuidado.
  • Assim, na metafísica da história que desejo pôr no lugar da tradicional, deveríamos ser capazes de falar serenamente sobre existência relativa. Talvez esse não seja o tipo de existência que os guerreiros da ciência desejam para objeto da natureza, mas é o tipo de existência que os estudos científicos gostariam que as proposições usufruíssem.
  • Existência relativa significa que acompanhamos as entidades sem as comprimir, enquadrar, espremer e seccionar com as quatros expressões adverbias ‘’nunca’’, ‘’em parte alguma’’, ‘’sempre’’, e ‘’em toda parte’’. Se utilizarmos tais expressões, a geração espontânea de Pouchet jamais terá existido em lugar nenhum do mundo; terá sido mera ilusão o tempo todo; não se lhe concede ter feito parte da população de entidades que constituem o espaço e o tempo. Os fermentos de Pasteur transportados pelo ar, no entanto, estiveram sempre ali e em toda parte, sendo membros bona fide da população de entidades que constituem o espaço e o tempo.
  • Embora forneça informação sobre a subjetividade e os passos dos agentes humanos, a história, nesse tipo de interpretação, não se aplica a não-humanos.
  • Ao solicitar que uma entidade exista – ou, mais exatamente, que tenha existido – em parte alguma e nunca, ou sempre e em toda parte, o velho acordo limita a historicidade aos sujeitos e despoja dela os não-humanos.
  • A única maneira de escapar ao relativismo é, segundo eles, retirar da história e da localização todo fato que se revelou correto e armazená-lo na segurança de uma natureza não-histórica, onde sempre esteve e já não pode ser alcançado por nenhuma espécie de revisão. A demarcação entre o que tem e o que não tem história representa, para eles, a chance da virtude.
  • Por isso, a historicidade é assegurada apenas ao humanos, partidos radicais e imperadores, enquanto a natureza vai sendo periodicamente escoimada de todos os fenômenos – não existentes. Segundo essa visão demarcacionista, a história não passa de um meio provisório, para os humanos, de ter acesso à natureza não-histórica: trata-se de um intermediário conveniente, de um mal necessário que, entretanto, não deverá ser, na opinião dos dois guardas do tesouro, um modo sustentado de existência para os fatos.
  • Essas reivindicações, embora feitas com muita frequência, são ao mesmo tempo inexatas e perigosas. Perigosas porque, como eu disse, esquecem–se de pagar o preço da manutenção das instituições necessárias para que os fatos continuem a existir e confiam, antes, na inércia gratuita da historicidade. Mas, o que é mais importante, elas são também inexatas.
  • Para os estudos científicos a demarcação é inimiga da diferenciação.
  • Não é uma demarcação absoluta entre o que nunca e o que sempre existiu, pois ambos são relativamente reais e relativamente existentes, isto é, subsistentes. Jamais dizemos ‘’existe’’ ou ‘’não existe’’ e sim ‘’esta é a história coletiva implícita na expressão geração espontânea ou germes transportados pelo ar’’.

Exposição A

  • A extensão das associações e a estabilidade das conexões ao longo de diversas substituições e mudanças de ponto de vista explicam suficientemente o que entendemos por existência e realidade.
  • À primeira vista, essa abertura da realidade a qualquer entidade parece desafiar o bom senso.
  • Essa equanimidade parece sem dúvida excessivamente democrática para evitar os perigos do relativismo: tal crítica, no entanto, esquece que nossa definição de existência e realidade é extraída, não de uma correspondência direta entre uma assertiva isolada e um estado de coisas, mas de uma assinatura única elaborada por associações e substituições através do espaço conceitual.
  • Como os estudos científicos tantas vezes demostraram, a história coletiva é que nos permite avaliar a existência relativa de um fenômeno.
  • A segunda dimensão é aquela que captura a historicidade. A história da ciência não documenta a viagem, ao longo do tempo, de uma substância preexistente.
  • Os estudos científicos documentam as modificações dos ingredientes que compõem uma articulação de entidades. A geração espontânea de Pouchet, por exemplo, é no começo constituída de vários elementos: experiência de senso comum, antidarwinismo, republicanismo, teologia protestante, história natural, habilidade em observar o desenvolvimento do ovo, uma teoria geológica das criações múltiplas, o equipamento do museu de história natural de Ruão, etc. Ao enfrentar a oposição de Pasteur, Pouchet altera muitos desses elementos.
  • Ao compromisso entre associação e substituição chamo de exploração do coletivo.
  • Toda entidade é uma exploração desse tipo – uma série de eventos, um experimento, uma proposição do que tem a ver com o quê, de que tem á ver com quem, de quem tem a ver com o quê, do que tem a ver com quem.
  • Se Pouchet aceitar os experimentos de seus adversários, mas perder a Academia e conquistar a imprensa popular de oposição, sua entidade – a geração espontânea – será uma entidade diferente. Ela não é uma substância que atravessa, imutável, o século XIX; é uma série de associações, um sintagma constituído por compromissos variáveis, um paradigma – no sentido linguístico, não kuhniano do termo – que explora aquilo que o coletivo oitocentista pode suportar.
  • Também Pasteur explora, negocia, tenta descobrir o que tem a ver com o quê, quem tem a ver com quem, o que tem a ver com quem e quem tem a ver com o quê. Não há outra maneira de obter realidade. Mas as associações que ele escolhe e as substituições que ele investiga geram um conjunto socionatural diferente.

A instituição da substância

  • Mostrei que podemos esboçar os movimentos de Pasteur e Pouchet de forma simétrica, recuperando tantas diferenças entre eles quantas quisermos sem utilizar a demarcação entre fato e ficção.
  • A diferença entre Pouchet e Pasteur não é que o primeiro acredita e o segundo sabe: tanto um quanto o outro estão associando e substituindo elementos, poucos dos quais são similares, e testando as exigências contraditórias de cada entidade. As associações reunidas por ambos os protagonistas são similares apenas porque cada uma tece um involucro espácio-temporal que permanece local e temporalmente situado, e empiricamente observável.
  • A similaridade não implica que Pasteur e Pouchet estejam urdindo as mesmas redes e partilhando a mesma história. Os elementos das suas associações quase que não apresentam intersecção.
  • Acompanhar ambas as redes em pormenor nos levaria a definições completamente disparatadas do coletivo do século XIX. Isso significa que a incomensurabilidade das duas opções – incomensurabilidade que parece tão importante para emitir um juízo ao mesmo tempo moral e epistemológico – é, em si mesma o produto da lenta diferenciação dos dois conjuntos. Sim, no final das contas – final local e provisório -, as posições de Pasteur e Pouchet se tornaram incomensuráveis. Não há dificuldades em reconhecer as diferenças entre as duas redes depois que se aceita sua similaridade básica. O involucro espácio-temporal da geração espontânea tem limites tão precisos quanto o dos germes transportados pelo ar, que contaminam as culturas microbianas.
  • Essa vantagem é importante porque nos permite continuar qualificando, situando e historicizando até mesmo a extensão de uma realidade ‘’final’’. Quando dizemos que Pasteur derrotou Pouchet e que desde então os germes transportados pelo ar estão ‘’em toda parte’’, esse ‘’em toda parte’’ pode ser documentando empiricamente.
  • Agora podemos comparar os dois ‘’campos ampliados’’ sem estabelecer uma diferença entre ‘’paradigmas’’ incompatíveis e intraduzíveis – aqui, no sentido kuhniano, que iria afastar para sempre Pasteur de Pouchet.
  • Esses dois paradigmas não são incompatíveis. Quem os fez assim foi a série de associações e substituições de cada um dos dois conjuntos de protagonistas. Eles simplesmente foram tendo cada vez menos elementos em comum.
  • Esse remanejamento da noção de substância é importante porque toca num ponto muito mal explicado pela história da ciência: de que modo os fenômenos continuam a existir sem uma lei de inércia? Por que não podemos dizer que Pasteur estava certo e Pouchet estava errado? Bem, podemos dizer isso, mas desde que explicitemos com toda a clareza e precisão os mecanismos institucionais, que ainda operam para conservar a assimetria entre as duas posturas. A solução para este problema é formular a pergunta da seguinte maneira: em que mundo estamos vivendo agora, no mundo de Pasteur ou no mundo de Pouchet? Não sei quanto ao leitor, mas eu estou vivendo dentro da rede pasteuriana sempre que tomo iogurte pasteurizado, leite pasteurizado ou antibióticos.
  • Aquilo que foi um evento deve continuar a sê-lo. Basta–nos prosseguir historicizando e localizando a rede para descobrir quem e o que irá formar seus descendentes.
  • Posso dizer simplesmente que herdei os micróbios de Pasteur, que sou descendente desse evento – o qual, por seu turno depende daquilo que eu fizer nele hoje (Stengers, 1993). Afirmar que o ‘’sempre e em toda parte’’ de tais eventos cobre por inteiro o campo espácio-temporal seria, na melhor das hipóteses, um exagero.
  • O escândalo não consiste no fato de os estudos científicos pregarem o relativismo, mas de, nas guerras de ciência, aqueles para quem o esforço de preservar as instituições da verdade pode ser interrompido sem risco de passarem por modelos de moralidade.

O enigma da causação retroativa

  • Ainda há, bem o sei, inúmeras pontas soltas nesse uso generalizados das noções de evento e proposição em lugar de expressões como ‘’descoberta’’, ‘’invenção’’, ‘’fabricação’’ ou ‘’construção’’.
  • Outra, a pronta resposta que dei no início desse capitulo à pergunta ‘’Os micróbios existiam antes de Pasteur’’? Sustentei que minha resposta, ‘’Claro que não’’, era ditada pelo senso comum. Não posso encerrar o capitulo sem demostrar por que penso assim.
  • Que significa dizer que havia micróbios ‘’antes’’ de Pasteur? Contrariamente à primeira impressão não existe nenhum mistério metafisico nesse muito tempo ‘’antes’’ de Pasteur, mas apenas uma ilusão de óptica bastante simples que desaparece quando o trabalho de ampliar a existência no tempo é documentada tão empiricamente quanto sua ampliação no espaço. Minha solução, em outras palavras, é historicizar mais e não menos. Logo que estabilizou sua teoria dos germes transportados pelo ar, Pasteur reinterpretou as práticas antigas a uma nova luz, afirmando que o que saía errado na fermentação da cerveja, por exemplo, era a contaminação fortuita dos tonéis por outros fermentos.
  • Disseminar germes num meio de cultura é a rearticulação, por Pasteur, daquilo que outros antes dele – sem saber do que se tratava – chamaram de doença, invasão ou acidente. A arte da fermentação do ácido láctico torna-se uma ciência de laboratório. No laboratório, as condições podem ser controladas à vontade. Quer dizer, Pasteur reinterpretou as práticas antigas da fermentação como uma busca, nas trevas, de entidades contra as quais podemos agora nos proteger.
  • Como chegamos a essa visão retrospectiva do passado? O que Pasteur fez foi produzir em 1864 uma nova versão dos anos 1863, 1862 e 1861, que agora incluía um novo elemento: ‘’micróbios combatidos inconscientemente por práticas falhas e casuais’’.
  • Foi exatamente o que ocorreu a Pasteur. Ele retroadaptou o passado com sua própria microbiologia: o ano de 1864, elaborado depois de 1864, não tinha os mesmo componentes, texturas e associações produzidos pelo ano de 1864 em 1864.
  • Se essa gigantesca obra de retroadaptação - que inclui narrativa, redação de manuais, fabricação de instrumentos, treinamento físico, e criação de lealdades e genealogias profissionais – for ignorada, então a pergunta ‘’Os micróbios existiam antes de Pasteur?’’ assumirá um aspecto paralisante, capaz de obnubilar a mente por um minuto ou dois.
  • Depois desse lapso de tempo, porém, a pergunta se torna empiricamente respondível: Pasteur também procurou ampliar sua produção local para outro tempos e lugares, fazendo dos micróbios o substrato das ações involuntárias de outras pessoas.
  • Substância não significa existência de um ‘’substrato’’ durável e a – histórico por baixo dos atributos, mas possibilidade, graças à sedimentação do tempo, de transformar uma entidade nova naquilo que subjaz a outras entidades. Sim, existem substâncias que sempre estiveram por aí, mas à condição de serem o substrato de atividades, tanto no passado quanto no espaço. Portanto, temos agora dois significados práticos da palavra substância: a instituição que mantém unido um amplo conjunto de estruturas, como já vimos, e o trabalho de retroadaptar, que considera um evento mais recente como aquilo que ‘’subjaz’’ normal a um mais antigo.
  • Se a ciência não houvesse sido sequestrada para fins inteiramente diversos, não teríamos nenhum problema em descrever o surgimento e o desaparecimento de proposições que nunca deixaram de ter uma história.
  • Não conseguiremos sacudir o fardo moral e político que o acordo modernista colocou de modo tão injusto sobre os ombros dos não-humanos. Os não-humanos nascem livres e estão por toda parte encadeados.

Exposição B

  • Portanto, é licito afirmar sem contradição tanto que ‘’Os germes transportados pelo ar foram criados em 1864’’ quanto que ‘’Eles sempre estiveram por ai’’.

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